“… A meia-estação se fora.
As árvores ganharam uma coloração de bronze,
que brilhou algum tempo e depois desbotou.
Ao término de uma chuva fina e persistente,
em meados de outubro as folhas começaram a cair…”
Stephen King, O Cemitério.
O sol brilhava no céu como uma imensa gema de ovo flutuando na imensidão azul, embora uma brisa atípica nos envolvesse enquanto subíamos a Trilha do Rato Morto até o início da Floresta de Afogados, ziguezagueando animados entre o mato alto e ruidoso.
Petty corria na frente igual aqueles cachorrinhos desembestados que nunca saem de casa, a camiseta vermelha escrita Mamãe Me Ama empapada de suor e as pernas das calças jeans salpicadas de carrapicho, e eu (um tanto gorducho devido à rotina de lanches, refrigerantes e cappuccinos no refeitório do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas), seguia atrás levando a cesta de piqueniques, acompanhando a programação da Bosque dos Querubins FM num radinho Sony amarelo.
— Você está na BDQ, a rádio que toca o seu momento! — anunciava a vinheta, sendo complementada pelo locutor: — E para embalar esta bela manhã de terça-feira de 1989…
Sutilmente os arranjos de Stand By Me se iniciaram, fazendo os versos de Ben E. King ecoarem pelos arredores como uma espécie de trilha sonora debatendo-se pelos recônditos da famigerada Floresta de Afogados.
(…)
Não, não vou ter medo
Oh, eu não vou ter medo
Enquanto você ficar
Ficar comigo
— Devagar, Petty! — gritei, pois o danadinho estava prestes a sumir numa curva do caminho.
— Está vendo, quem manda comer demais?
— Espertinho… duvido você correr… levando isto.
Peter sorriu em seu modo espirituoso de criança arteira, as bochechas salientes e o suor escorrendo pelo rosto engraçadinho parecido com o da mãe, e voltou a correr. Ah, e como meu rapazinho corria! Corria e brincava, pulando atrás de borboletas, espantando passarinhos, recolhendo mamonas e atacando em inimigos imaginários, por vezes empunhando gravetos e fazendo pose, berrando "Pelos poderes de Grayskull. Eu tenho a força!" ou "Thunder, Thunder… Thundercats - Ho! Ele era filho único e devido ao meu emprego e certos problemas de saúde vivíamos afastados numa residência da zona sul paulistana. Diversão ao ar livre era rara e quando a oportunidade surgia Peter se esbaldava.
Lembrar disso fez meus olhos se encherem de lágrimas, mas seguirei o conselho de Ben. E. King:
(…)
Não vou chorar, não vou chorar
Não, eu não vou derramar uma lágrima
Enquanto você ficar
Ficar comigo…
A manhã estava agradável e prosseguimos animados como uma dupla inusitada de velhos amigos, trocando gracejos, vencendo breves percursos de matagal, passando sobre troncos caídos ou minas d'água e coletando um e outro fruto silvestre.
— Olha isso — pedi, mostrando uma frutinha vermelha. — É morango-do-mato.
Peter se aproximou, as mãos cheias de maria-pretinha e amoras do campo, o rosto rechonchudo comicamente lambuzado.
— Vou levar para a mamãe…
(...)
Quando a noite tiver chegado
E a terra estiver escura
E a lua for a única luz que veremos
Não, eu não terei medo.
Desde que você fique.
Fique comigo…
Eram quase dez da manhã, quando consultei meu Casio digital de pulso, após finalmente atravessarmos a Floresta de Afogados, alcançando a extensa clareira flanqueada de figueiras-brancas e eucaliptais — e, ao centro, o lendário Lago de Cromo.
— A água é de ouro, pai! — disse Peter, encantado.
À distância, o sol se avolumava no céu de tal modo que seus raios incidiam feéricos no lençol ondulante d'água, refletindo-se num fulgor cromado em todas as direções. A paisagem era de fato estonteante.
— Ele é mais precioso que isso, Peter — murmurei, passando o braço sobre seus ombros.
Aproximamo-nos aos poucos, o brilho tornando-se tão intenso que tivemos de bloquear os olhos com as mãos. O local em si nada mais tinha de atrativo, algo prosaico como se um trator houvesse escavado um imenso buraco e a natureza se encarregado de enchê-lo de água, decorando suas margens com uma coroa verde de grama. No entanto, era o seu passado de glória que o tornava especial; glória que se fazia presente na memória de muitos adolescentes que viveram em Bosque dos Querubins nos anos 60 e 70, quando a vegetação nos arredores era menos densa e a lagoa recebia afluências do Rio Itatinga ao norte, permitindo nadar e até pescar.
Naqueles dias de sol, em meio às férias ou fins de semana, a gente se encontrava sob o coreto da Praça Chora Menino, lá no centro da cidade, e quase nunca reclamava do longo trajeto a percorrer: era mais de uma hora de caminhada e pouco recordo sobre o que conversávamos, mas sem dúvida era tempo precioso para reforçar a importância de nossa interação física e o apreço à amizade. Que época maravilhosa aquela, estampada em minha mente por flashs de dias inteiros na companhia de amigos que se preocupavam apenas em curtir a liberdade da juventude.
Moradores de cidade grande definitivamente não sabem o quão renovador é se livrar das comodidades cosmopolitas e se embrenhar na natureza —e quem via aquele meu rapazinho tagarelando e se divertindo jamais imaginaria o significado de poder estar naquele lugar.
(…)
Não, eu não terei medo.
Desde que você fique.
Fique comigo…
Contornamos o lago, indo para um ponto de terra batida, sob uma exuberante figueira-branca.
— Pai, tem um monte de nomes aqui.
Peter fez a observação caminhando em volta do tronco, ao passo que eu limpava o chão com os pés para estender a toalha verde de piquenique. No rádio Michael Jackson embalou Bilie Jean, após o locutor anunciar uma possível mudança brusca de temperatura à tarde.
— A gente pode colocar o nosso?
Fui até ele, notando a vasta quantidade de nomes garatujados na superfície da árvore.
— Difícil será achar um lugar para escrever…
Mas encontramos; na verdade, tivemos que escrever "Petty e Papai" numa das grossas raízes que se projetavam do solo — e não foi tarefa fácil.
— O que está fazendo?
Ele fez a pergunta assim que me viu se afastar e retirar a camisa e desabotoar as calças.
— Indo pegar minha recompensa… ou acha que vou deixar aquela banheira gigante dando sopa?… Quem chegar por último beija a bunda do padre!
Gracias por leer!
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