De madrugada, mesmo que o silêncio reinasse em boa parte dos bairros, havia áreas com vida noturna bem ativa, decoradas com letreiros em neon que guiavam qualquer um que ansiasse por diversão noite adentro. Caminhando pelas ruas desalinhadas, uma figura masculina encarava atentamente as fachadas coloridas com um semblante sério enquanto parecia procurar algo em específico. Seu trajeto o guiou até o final da rua, diante de uma das boates mais populares da região, tanto que havia uma fila considerável na entrada.
O letreiro que piscava em um tom de rosa neon denominava o local como “Bacco’s Paradise” e, assim que adentrou na boate, recebeu diversos olhares de imediato, atraídos por sua presença. O local estava cheio, se embrenhou na multidão para chegar ao bar e, assim que alcançou o balcão, pode ver como a estrutura era larga e muito bem equipada com tudo o que pudesse se relacionar a criação de drinks, como garrafas diversificadas e copos de vidro reluzentes de diversos formatos.
— O que vai querer? — o barman perguntou assim que terminou de atender o cliente ao lado.
— O dono da casa.
— Há! — deixou um riso escapar com a resposta, recolhendo alguns copos do balcão — O patrão é bem popular, como sempre... Ele está ali, mas já está acompanhado... Se quiser tentar a sorte mesmo assim, fique a vontade.
Não acompanhou a descontração do funcionário, mas agradeceu a informação mesmo assim e se afastou, seguindo na direção indicada. Nos fundos, do lado direito da boate, havia bancos de couro vermelho acomodados contra a parede e com uma bela mesa de vidro redonda no centro, local usado quando queriam mais privacidade e conforto. Quando conseguiu passar pela multidão outra vez, finalmente encontrou aquele que era o dono da boate sentado de maneira desleixada, abraçado com duas mulheres. Elas estavam claramente excitadas, avançando sobre ele sem nenhuma vergonha, com beijos e toques ousados.
— Então é aqui que tem se escondido! — anunciou sua chegada em alto e bom tom para ser ouvido acima da música eletrônica que tomava conta do ambiente.
— Oh! — ao refrear os avanços das moças, abriu um sorriso debochado para o recém chegado — Não estou realmente me escondendo, mas se quer colocar desse jeito... Sente-se, fique a vontade. Para o meu irmão, o melhor da casa! Pode escolher o que quer beber e quem foder...
— Não estou interessado. — a sugestão foi recusada, mantendo a educação — Vim de muito longe para lhe ver... Podemos conversar Dioniso?
— Tão sério, como sempre... — um suspiro abandonou seus lábios enquanto se acomodava melhor no banco, soltando as moças — Como quiser, Apolo.
Dioniso se levantou do banco e com um gesto silencioso, indicou que deveria ser seguido para outro lugar. Apolo apenas concordou, o seguindo enquanto encarava as costas largas do irmão a sua frente, guiando-os para um elevador escondido nos fundos da boate. Levou apenas alguns minutos para chegarem ao segundo andar que aparentava ser um escritório, embora não estivesse bem organizado. Haviam móveis dispersos sem coerência, com gavetas entreabertas e alguns papéis espalhados pelo chão.
A larga mesa de vidro também estava bagunçada, com um notebook aberto, papéis e canetas espalhadas na superfície. O grande sofá arredondado de tecido azul escuro era a única coisa mais intacta naquele lugar, posicionado diante de uma parede de vidro onde era possível visualizar toda a boate, sendo um excelente ponto de observação sobre qualquer evento no primeiro andar. Dioniso se acomodou no sofá e, vendo que o irmão continuava de pé ao analisar o ambiente caótico com desaprovação, deu duas batidas no estofado para convidá-lo a se sentar.
— Pois bem... O que te fez sair de seu pedestal divino e vir até aqui para me ver? Lembro-me bem quando disse que jamais voltaria ao mundo humano... — Dioniso estava curioso, observando atentamente as expressões do outro.
— Não posso visitá-lo? — rebateu assim que se sentou — Não havia mais nada para fazer aqui... Os humanos abandonaram suas crenças em nós, o que nos restou foram registros antigos e alguns estudiosos devotados a desvendar nossa história, cultos e ligações. — Apolo dissertou rapidamente sobre a atualidade e como eles, seres divinos, foram quase totalmente esquecidos — A maior parte dos Deuses decidiu se recolher no Olimpo e observar a humanidade de longe, interferindo cada vez menos em suas vidas... Você é um dos poucos fez exatamente o oposto.
— Não deveria estar surpreso com isso. — o lado irônico de Dioniso floriu com uma risada rouca e baixa — Me esconder no Olimpo nunca foi uma opção para mim, ainda mais com aquela mulher... — se referia a Hera, pois jamais a perdoaria pelo que fez com sua mãe e consigo — Meu lugar é aqui, me divertindo com os mortais e guiando-os para os mais diversos tipos de prazeres. Não temos a mesma intensidade de antes, mas ainda podemos influenciá-los... Foi assim que construí este lugar, o meu próprio paraíso inebriante e devasso.
A divindade, uma vez conhecida pela influência festiva e caótica, admirou através do vidro todas as pessoas na boate, inebriadas pelas bebidas, levadas pela música e instintivamente roçando umas nas outras, alimentando a libido de cada um. Um sentimento nostálgico acabava atingindo-o com isso, lembrando-se dos antigos cultos em sua homenagem e que sempre eram regrados de muita bebida, música e sexo. Ao observar a expressão do irmão, Apolo suspirou por compreender que aquele lugar era o mais perto de reproduzir as doutrinas que Dioniso tanto amava.
— Pelo menos você conseguiu manter seus princípios... No meu caso, minhas atribuições e qualidades foram desviadas para outro deus. — houve um resmungo ressentido por parte do deus solar, lembrando-se do surgimento do cristianismo que deu início a queda da supremacia dos deuses — Uma figura de respeito, ordem e justiça como eu acabou sendo desvirtuada e jogada na sombra de outro deus, como se nada do que fiz para este mundo tivesse valido de alguma coisa. A ingratidão dos mortais reforçou a minha decisão de não voltar mais...
— Foi uma pena, realmente... Estava acostumado a ser reverenciado e temido, claro que foi um choque para você. Eu já conhecia o lado mais sombrio dos mortais, por isso não me surpreendi quando se voltaram contra nós. Você deveria relevar esta mágoa, já faz tanto tempo... — Dioniso lançou um dos braços por trás do outro e o puxou repentinamente em sua direção, fazendo com que Apolo quase tombasse em seu colo — Já sei! Por que não voltamos para a boate e aproveitamos o resto da noite? Supere o seu rancor nos braços de alguma beldade, sempre há uma grande variedade de homens e mulheres afinal... — completou com uma piscadela, pois se lembrava de que o irmão já tivera amantes de ambos os sexos.
Apolo foi pego de surpresa com aquela atitude, apoiando uma das mãos no peito do outro sem pensar e encarou o rosto de Dioniso com atenção. Os traços másculos delineava perfeitamente sua face e seu corpo era moldado de tal forma que poderia seduzir até o mais convicto dos homens. O sorriso emoldurado pelos lábios devassos parecia provocar o irmão, como se tentasse contra a racionalidade e virtude de Apolo, seu extremo oposto. Ao fechar os olhos, o deus do sol pode sentir o cheiro do vinho que impregnava toda a essência de Dioniso como se estivesse em uma vinícola tomada de uvas suculentas.
— Esqueça, não estou aqui para me divertir ou superar ressentimentos... Eu vim apenas para te ver. — Apolo respondeu assim que abriu os olhos novamente, oferecendo um sorriso caloroso para o irmão — A única coisa que quero é que me sirva uma boa taça de seu vinho... Estou cansado do néctar dos deuses, desejo sentir o sabor frutado e intenso de suas uvas outra vez.
Foi a vez de Dioniso ser surpreendido, presenteado pelo sorriso do irmão que mais parecia um raio de sol invadindo a escuridão de seus pensamentos perversos. Quase havia esquecido aquele sorriso e da sensação de ter Apolo por perto, sendo este um deus tão imponente que sua presença não passava despercebida onde quer que fosse. Dono da ordem e da moral, ia contra tudo o que Dioniso sempre praticou e ainda assim conseguia respeitá-lo e até admirá-lo, até querendo manter aquela luz ali por mais tempo do que seria considerado adequado.
— Satisfazer sua vontade será um prazer para mim, Apolo.
A frase, claramente formada com um duplo sentido, foi melodicamente entoada com um desejo oculto, fazendo com que o deus do sol sentisse um ligeiro arrepio. Ainda assim, Apolo era o único capaz de resistir a influência sexual que Dioniso impunha, pois mesmo que fosse conhecido pela dedicação ao cultivo das uvas e consumo do vinho, era capaz de enlouquecer os outros e levá-los a praticar as mais intensas orgias para satisfazer sua lasciva divina. Essa resistência de Apolo era, de certa forma, vista como um atrativo aos olhos de Dioniso, tendo mais vontade de provocá-lo por saber que o irmão não cederia aos seus encantos.
Enfim Dioniso esticou uma das mãos e se concentrou, mantendo a palma da mão aberta virada para cima até que surgiu um cálice dourado cheio de seu precioso vinho, trazendo o objeto para perto de Apolo. O mesmo aceitou a oferta e sentiu o aroma frutado ao aproximar o cálice do rosto, reconhecendo ser o mesmo cheiro que sentiu impregnado no irmão. Assim que o vinho invadiu sua boca, o sabor encorpado das uvas manipuladas pela divindade envolveu seu paladar como se ainda estivesse envolto pelos braços de Dioniso e entorpeceram seus sentidos, causando uma sensação deliciosa por todo seu corpo. No entanto, isso durou apenas alguns segundos por ser incapaz de embriagar-se pelo vinho, assim como não poderia ser seduzido pelo outro.
— Está delicioso, tal qual eu me lembrava... — Apolo comentou, tomando mais um gole da bebida antes de encarar o irmão — Os mortais nunca irão esquecê-lo... Presenteá-los com o conhecimento do vinho é um legado que jamais irá se apagar.
— Eles também não viraram totalmente as costas para você. — retrucou, observando atentamente as expressões de Apolo ao saborear seu vinho — Os mortais podem não clamarem mais o seu nome, mas eles precisam de você todos os dias... A luz de todas as manhãs, aquele que guia a humanidade e os rege no alto do céu com toda a sua imponência. Divino Sol... Sem você, os mortais padecerão nas trevas para sempre e nosso tio terá problemas para acomodar tanta gente no submundo.
Parecia irônico dizer que uma entidade caótica como Dioniso fora capaz de levantar a moral de um ser iluminado e harmonioso como Apolo, mas isso aconteceu. O deus do sol sentiu-se elevado com as palavras do irmão, reconhecendo a verdade nelas e abriu um sorriso mais largo, irradiando sua beleza e sendo admirado pelo outro. O vinho se tornou ainda mais saboroso depois de seu astral melhorar e Dioniso resolveu acompanhá-lo, materializando mais uma taça para si e cujo conteúdo não desaparecia, mesmo tomando goladas generosas.
Eles desfrutaram da bebida e da companhia um do outro pelo resto da noite, afinal não sabiam quando estariam juntos novamente. Apolo não ousaria demonstrar a saudade que sentia, apesar de ter descido do Olimpo especialmente para encontrar seu extremo oposto. Dioniso também não mostraria sua completa satisfação com a visita, mas tratou de manter o irmão por perto, a sua disposição. Estavam cientes de que, quando separados, Apolo voltaria a iluminar a todos sob o céu enquanto Dioniso mergulharia em seus prazeres descabidos pela terra uma vez mais.
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