NO COMEÇO, OUVI APENAS os bipes eletrônicos de aparelhos hospitalares. A escuridão em minha volta não afetava só minha visão; eu conseguia senti-la. Sua presença era tão forte, tão pungente, que tornava meu vazio ainda mais solitário. Não é fácil descrever o vácuo que me acometia, mas me parece adequado caracterizá-lo como infinito e solitário. A dor que eu sentia ultrapassava a tristeza ou a mágoa; não era nada tão frívolo. Ela se tornava fatalmente intrínseca. Os bipes eletrônicos se misturam ao choro desmoderado de uma mulher; me soa tão familiar. É minha mãe, mas por que ela implora por perdão?
O vazio retrocede e sinto minha essência retornando; o turbilhão de incertezas existenciais preenche o vácuo cruel e eu acordo. Minha cama está tão quente quanto meu corpo; me sinto febril. Após massagear minhas têmporas e me esforçar para esquecer o pesadelo cabalístico, me levanto e estico o corpo tenso. Esfrego os olhos ainda sonolentos e espio o relógio na cômoda: oito da noite. Acordar nessas horas é tão absurdo quanto esperar sonhos agradáveis de sonecas da tarde. Sinto um calor repentino subir meu corpo. Será que estou doente?
Caminho até meu guarda-roupa; só um banho será capaz de me forçar a voltar ao normal. Abro as portas do móvel e vejo o inconcebível: o reflexo no espelho do guarda-roupa não é meu. O grito de pânico escapa de mim instantaneamente. Me afasto do espelho com o coração apressado e estudo a imagem com mais atenção; enxergo uma mulher parecida comigo, mas seu corpo carbonizado torna difícil identificá-la. Encaro seus olhos castanhos arregalados e sinto vontade de gritar ainda mais; o desespero em seu olhar me causa arrepios. Ao contrário de mim, a invasora se aproxima do espelho, se rende ao desalento e abre a boca em um berro silencioso.
Mesmo assustada com a aparição, sigo o exemplo da mulher carbonizada e encurto a distância entre ambas de nós; quando me aproximo, seu corpo se incendeia e eu finalmente ouço seu grito agonizante, não com a minha audição, mas internamente, como se ela estivesse aqui dentro. Fecho as portas do guarda-roupa velozmente e me afasto até cair sentada em minha cama. É desafiador respirar entre tanta confusão e nervosismo; tusso mais e mais até que meu desconforto é interrompido por duas batidas rápidas na porta do quarto. Minha mãe não aguarda uma resposta antes de entrar.
— Que grito foi esse, Beatriz? — perguntou ela. — Teve um pesadelo?
Minha mãe usa um luxuoso vestido violeta de seda e seu cabelo preto está meticulosamente ajeitado; ela está de saída. Não consigo responder de imediato: ainda ofego com o espanto causado pela imagem aterrorizante no espelho.
— Tive, mas não foi isso — explico entre arfadas. — Eu vi algo no espelho.
— Viu o quê? — Eu me encolho na cama quando ela caminha até o guarda-roupa e abre suas portas. — Não tem nada aqui.
Tento ignorar meu medo e estico o corpo para olhar o espelho: lá está ela, os olhos ardentes me encarando.
— Ainda tá aí!
— Beatriz, me escuta. — Mais séria do que estou acostumada a vê-la, minha mãe fecha as portas e continua em tom mais baixo. — Você não viu nada. Não fale, não veja, não ouça. Eles não podem descobrir que você sabe.
— Oi?
Minha desorientação é tão urgente que acabo esquecendo o medo.
— Volto mais tarde. Senti uma energia ruim na casa hoje, então deixei algumas velas acesas, não se assuste. — Sem mais explicações, ela se retira do quarto e logo ouço o portão de casa bater.
Decidindo ignorar a estranheza do começo de noite, me isolo no banheiro e ligo a água quente. O vapor se acumula rapidamente e só consigo olhar o espelho quando sei que não verei reflexo algum. Para minha surpresa, vejo algo pior: a palavra “acorda” está escrita no vidro embaçado. Ouço os bipes eletrônicos novamente; estão mais altos. Tento sair dali, mas a porta está fervendo e a fumaça já invade o banheiro através de suas frestas. Minha pele arde e minha consciência queima, grita e retorna ao meu despertar. Sinto as incertezas me abandonarem e o vazio me dominando. Uma única questão me atormenta:
Quantas vezes viverei este dia até despertar do coma?
Gracias por leer!
O que você vê quando encara seu reflexo no espelho? Gabriel conseguiu transformar um ato do cotidiano em um conto mórbido e cheio de reviravoltas. Ficamos presos a cada palavra do texto, cada vez mais tensos com os comportamentos dos personagens. O autor, com maestria, entrega uma obra aterrorizante em setecentas palavras. Merecidamente, o vencedor do primeiro lugar do #arrepiainks.
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