tomasrohga Tomas Rohga

Quando Carlos, um garoto de doze anos, descobre que uma entidade raptou sua avó e a levou para dentro de uma floresta, ele corre para resgatá-la. Armado apenas de um punhal, Carlos está hesitante, pois sabe que terá de fazer algo terrível para encontrá-la.


Horror Literatura de monstruos Sólo para mayores de 18.

#incêndio #ambiental #horror #floresta #anhangá #terror #fogo #matou #menino #gatilho
Cuento corto
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O engodo


Os passos de Carlos ecoavam pela trilha de pedrisco, percebendo com um tremor que o pôr do sol escapava através das copas altas da floresta. Ele olhou para lá e para cá e, embora trouxesse uma lâmina na mão direita, sentia a solidão começando a sufocá-lo.

Naquele momento, um medo primordial invadia os sentidos de Carlos, mas tinha de produzir coragem se quisesse resgatá-la, obrigando as pernas naquele passo após o outro, ainda que o ritmo fosse tão vagaroso. O crepitar dos sapatos se fundia aos barulhos da mata: pássaros cantando com penúria, insetos zumbindo agudo, o farfalhar do vento através das folhas, o rumorejo de um riacho à distância e o assobio…

Carlos não podia afirmar de onde vinha. Era como se a própria floresta assobiasse, arrepiando-lhe dos pés à cabeça.

Uma sensação duvidosa invadia o peito do menino, que prosseguia pela trilha na mesma intensidade que queria dar meia-volta e retornar à segurança do casarão de sua avó Josefina.

Carlos tinha doze anos, mas não se considerava desobediente como as outras crianças. Não era metido a ousado. Tinha consciência das próprias limitações, por isso sabia que uma situação como aquela demandava a ajuda de um adulto. Desejava ter vindo com alguém… nem que fosse com aquele velho desagradável.

Verdade era que Carlos ansiara pelo início daquelas férias. Quando a mãe lhe contara que ficaria na casa da avó, tivera um ataque de euforia pouco antes de se lembrar de Augusto, o novo marido da idosa. Por que vovó se casou com um cara tão chato, mãe? Havia perguntado à época. Foi quando a mãe explicou que as pessoas tinham de respeitar a escolha das outras.

Havia um bom tempo desde que Carlos concluíra não gostar de Augusto, mas se a avó estava feliz, que oposição poderia fazer?

Carlos deu de ombros e suspirou, sentindo o frio se espalhar pela trilha, penetrando no tecido das roupas. Ele esfregou os braços numa tentativa de se aquecer e espantar o nervosismo, encarando o brilho faiscante do punhal ao se lembrar do momento que o marido da avó lhe entregara a arma.

Minutos atrás, assim que chegara à propriedade para ajeitar suas malas no quarto de hóspedes, perdera algum tempo procurando pela idosa, mas qual fora a surpresa quando Augusto viera lhe contar que Josefina sumira na floresta que se erguia para além da propriedade.

Inicialmente, não acreditou muito na conversa. A avó já vivia por aquelas bandas desde menina, porém, no momento que Augusto explicara que tinha sido culpa de Anhangá — o mesmo diabo das histórias da avó —, Carlos compreendera que só podia ser verdade.

Sabia que era um tipo de demônio que só se revelava para as crianças, por isso viera sozinho, mas Carlos precisava fazer mais uma coisa para que Anhangá aparecesse… uma coisa cujos detalhes Augusto havia lhe contado e quase o fizera botar o almoço para fora.

O punhal prateado estremecia na mão direita enquanto se embrenhava cada vez mais para o interior da floresta. Ali, o frio se tornou um companheiro de trilha. Vamos… qualquer um… Carlos jamais se afastara para tão distante do casarão, mas quando pensou em correr pelo caminho de volta…

O assobio misterioso ecoou ainda mais intenso que antes, fazendo fileiras de árvores balançarem no lugar. Um vento de gelar os ossos rodopiou por ali.

Para não perder a coragem, Carlos cravou os pensamentos na avó e correu o olhar a toda volta. Procurando… buscando… até que o avistou.

Não era Anhangá, mas era o meio para encontrá-lo.

Trepada numa árvore, distinguiu uma preguiça com seu filhote às costas. Estavam à altura do meio do tronco, subindo lentamente para o topo.

Carlos se achegou ao bicho, que o fitou com olhos solícitos. Tinha que fazer.

Respirou fundo e, apanhando a preguiça pelo cangote, arrancou-a da árvore. Separou o filhote da mãe e, mais uma vez, fitou o animal, que o encarava numa prece de quem pedia por clemência. Largado pelo chão, caminhava o filhote num passo desajeitado na tentativa de voltar para junto dela.

Carlos engoliu em seco e olhou para cima, enfiando o punhal de uma vez no coração da preguiça adulta. Não houve grito, nem protesto, apenas o som chapinhado do metal afundando na carne, depois o gorgolejo do sangue fluindo em bolhas que escapavam pelo talho do pulmão.

Carlos se levantou; o rosto cortado de arrependimento. Trôpego, caminhou até o tronco mais próximo e se apoiou desajeitado, dessa vez vomitando de arder a garganta. Começou a chorar, mas não reclamaria. Julgava-se merecedor de qualquer sofrimento a partir daquele ponto, tornando-se refém de contrações intensas o bastante para o punhal despencar da mão.

Quando o estômago enfim se esvaziou, cuspiu para os pés e limpou a boca. Ele respirava ruidosamente, sentindo um ardor na língua e o suor mesclado às lágrimas. A camisa estava empapada e o colarinho grudado no pescoço.

Virou-se para trás, enxergando que o filhote tingira a própria pelagem de vermelho. Havia alcançado a mãe morta e a abraçava. O pequeno — o pobre e indefeso — só a queria de volta, como qualquer filho desejaria; como qualquer neto desejaria. Não emitia nenhum ruído, nenhuma lamúria, mas encarou Carlos com olhos de quem queria chorar, mas não podia. Olhos de quem questionava o porquê de ele ter feito algo tão hediondo. Brilhavam como fachos de quem tinha uma alma viva dentro de si. Mas animais não têm alma. Tá na Bíblia! Augusto lhe garantira!

— É pela minha avó! — gritou Carlos, não aguentando a acusação silenciosa. Tirou o punhal do solo. Precisava finalizar o serviço. — Me desculpa. Não tem outro jeito, amiguinho…

Aproximou-se do filhote. Viu duas íris grandes e úmidas; a pelagem suja com o sangue da própria mãe. Tão pequeno, mas parecia compreender a Morte. Carlos ergueu a lâmina. O filhote se encolheu…

Desceu apertando as pálpebras. Não queria ver de novo.

Mas foi impedido no meio do ar quando uma força lhe segurou pelo braço.

Carlos sentiu uma mão ossuda sobre o pulso, obrigando o pescoço, naquele momento rígido como uma junta enferrujada, a se virar para trás.

Rolou pelo solo, encarando o crânio alvo e esquelético de um cervo coberto por um manto que sacudia como se um vento forte corresse pela mata fechada, fosco e limoso como as próprias cores da floresta. Tinha contornos humanos, mas além da cabeça fantasmagórica, o único pedaço de corpo visível eram os dedos longos de e ossudos que saltavam para fora do manto.

Carlos estremeceu no lugar — a isca havia funcionado —, porém, para surpresa do menino, Anhangá o soltou e correu a mão com gentileza por sobre o cadáver da preguiça, chorando gotas incandescentes que escorreram a partir dos olhos vazios. Cada soluço de Anhangá era um assobio entrecortado. A criatura apanhou o filhote de preguiça e aninhou-o nos braços, afagando-o.

— Devolve a minha avó! — gritou Carlos.

Mas Anhangá se limitou a encarar o menino, ainda chorando um cordão de fogo.

A entidade ajeitou o indicador esquelético à frente do crânio e ordenou que fosse feito silêncio. Carlos, no entanto, apertou o punhal ainda mais forte, criando coragem e guinando para frente.

Não durou mais que um instante.

Carlos enfiou a lâmina para dentro do corpo de Anhangá.

Ele não queria machucar ninguém, nem mesmo um demônio. Sentia como se estivesse fazendo algo ruim; algo que talvez entristecesse a mãe quando ela soubesse, mas não havia outro jeito de sua avó retornar. Augusto tinha sido claro na explicação: Carlos precisava matar a criatura para obtê-la de volta. Mamãe vai ficar orgulhosa por eu ter resgatado a vovó.

Contudo, começou a notar algo estranho. O sangue apenas vertia através do manto de Anhangá. O líquido cor de magma atingia o solo fértil e entrava em combustão.

— Vamos! Faça sua mágica. Faça minha avó aparecer.

Anhangá despencou em silêncio, largando o filhote de preguiça. Carlos arregalou os olhos e soltou o punhal, sentindo-se repentinamente sujo, testemunhando horrorizado enquanto o corpo da entidade se transformava num fogo arrasador.

Quando deu por si, Carlos estava encurralado pelas chamas; sozinho na floresta.

A avó não tinha aparecido.


*******


Parado à varanda do casarão, Augusto observava as chamas consumirem a mata além da propriedade.

Conversava ao telefone; um sorriso de triunfo lhe tomara o semblante.

— Por Deus, Augusto, o que é aquele tamanho de fogaréu? — perguntou a mulher.

Ela se aproximava pela trilha de ladrilho que cortava o enorme quintal gramado.

O homem sacudiu os ombros, encerrando a ligação.

— Como foi lá na cidade? — desconversou. — Conseguiu resolver o problema com o banco?

— Graças ao bom Deus, mas foi uma verdadeira amolação. Pediram um monte de documentos. — Ela parou ao lado de Augusto, voltando-se hipnotizada para as chamas. — Carlinhos já chegou?

— Ainda não, Josefina — respondeu impassível. Augusto desconversou: — Mas eu tenho uma novidade para contar a você.

— O que é? — Josefina arqueou uma sobrancelha para o marido.

— Comprei noventa cabeças de gado.

A mulher arregalou as órbitas e escondeu a boca com as mãos.

— I-isso é maravilhoso, Augusto! Mas onde vamos arranjar espaço pra tanta vaca?

O homem apontou com a cabeça para as chamas. Uma grande coluna de fumaça preta subia rumo ao céu da tarde.

— O prefeito liberou pra queimar tudo. Chega de torrar dinheiro público com instituições de proteções fajuta. A mata vai nos dar bons alqueires de pasto.

— Poxa, agora me deixou impressionada. Não sei o que fez, mas nunca conseguimos botar fogo nela. — O tom de Josefina soava sonhador. — Contava meu pai que, antes de eu nascer, finado vô Dito e tio Florêncio arriscaram com gasolina e tudo. O que sei é que os dois acordaram com queimaduras terríveis no dia seguinte, de grudar a pele no colchão. Dizia ele que Anhangá protegia essas árvores.

— Se existe algum demônio naquela mata, ele só impede a nossa prosperidade. Não protege coisa alguma!

Josefina sorriu.

— Você tem razão, meu amor.

Augusto concordou satisfeito, abrindo uma expressão faceira para a esposa.

— Que acha de comemorarmos tomando umas taças de vinho?

Ela pensou um pouco.

— Acho que seria uma ótima maneira de esperarmos por Carlinhos.

A mulher entrou em casa, mas o marido não a seguiu de imediato, permanecendo estático à varanda enquanto sorria. O reflexo do fogo queimava por sobre os olhos de Augusto. O crepitar da madeira era música para seus ouvidos.

Deu as costas para a floresta.

26 de Enero de 2021 a las 18:04 2 Reporte Insertar Seguir historia
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Fin

Conoce al autor

Tomas Rohga Um reles garimpeiro de palavras. Comecei a escrever ainda criança na mesma tarde em que terminei de ler o primeiro livro. Desde então, passei a vagar por este mundão munido apenas de uma ideia na cabeça, um caderno embaixo do braço e uma caneta na mão.

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Rodrigo Martins Rodrigo Martins
Muito bom. Acertou dois coelhos com uma cajadada só. E ainda mostra um reflexo dos nossos tempos.
June 12, 2021, 19:34

  • Tomas Rohga Tomas Rohga
    Obrigado, Rodrigo. Realmente criei este conto num momento de revolta. July 04, 2021, 03:48
~