Avisos: violência infantil implícita.
***
Uma vez, eu conheci um monstro.
Ele morava em um armário pequeno, esquecido no alto do sótão em meio as tralhas que ninguém queria e as memórias que meus tios preferiam esquecer. Eu o encontrei em meu segundo dia no casarão, o móvel antiquado de madeira roída ainda conservava sua austeridade e agitava-se ao menor sinal da minha presença. Com a respiração curta e uma curiosidade infantil incessante, eu me aproximei.
O nariz coçava com todo o pó acumulado e eu sabia que me arrependeria posteriormente daquela incursão quando estivesse deitado na cama, espirrando e tossindo sem parar, mas, mesmo assim, não consegui parar. Havia algo naquele armário que me atraía cada vez para mais perto até que estaquei a dois passos de distância e apenas encarei a pintura lascada que outrora tivera um belo tom de azul brilhante. A madeira sacudiu, fazendo meu coração saltar no peito com o susto. Naquele ponto, qualquer pessoa comum já estaria correndo para longe aos berros, mas eu não o fiz. Nem mesmo quando uma voz gélida ecoou pelo cômodo, dominando o ambiente com não mais do que algumas palavras:
— Está longe de casa, pequeno — ela disse.
Eu estremeci e tropecei, caindo para trás e erguendo uma pesada nuvem de poeira que rodopiou ao meu redor, seus grãos iluminados pela única janela redonda no alto da parede. A voz riu.
— Não é engraçado — eu resmunguei, esfregando o cotovelo dolorido e me colocando de joelhos para continuar a fitar o armário.
— Há muito tempo eu não vejo humanos, deve me perdoar por querer rir um pouco. — O tom se tornou triste.
— Você está aqui sozinho?
— Por muitos e muitos anos.
— Eu também estou sozinho. — Aquela faísca de entendimento me fez relaxar a postura e sentar diante do móvel abraçado as minhas pernas. — Você é a primeira pessoa com quem converso em dias. — Minha testa se franziu diante a percepção que havia acabado de me atingir. — Você é uma pessoa?
— Quem sabe? — A voz respondeu enigmática. — Talvez eu seja aquilo que sua espécie chama de monstro.
Antes que eu pudesse responder, os berros de minha tia soaram escada acima, o tom irritado que sempre me fazia tremer desde a primeira vez que o havia ouvido há alguns dias. Era o tom que significava que alguém estava encrencado e precisaria pagar pela malcriação.
— Eu preciso ir. — Levantei-me, afastando-se do armário e corri de volta para as escadas.
— Você irá voltar? — A voz perguntou, ansiosa.
Meus passos pararam e eu pensei na criatura escondida no escuro, sempre solitária e sem ninguém para conversar. Eu conhecia a sensação e não gostava nem um pouco dela.
— Eu vou — respondi. — Prometo.
Ao fim daquele dia, eu mantive minha palavra e voltei.
Naquele enorme casarão em meio ao campo, o monstro no armário era meu único amigo. Eu o visitava por entre as tarefas que meus tios me delegavam, e subia as escadas para o sótão silenciosamente quando eles dormiam. A fazenda era bem isolada, afundada nas grandes plantações de trigo e pastos verdejantes, sem sinal algum de outra criança que morasse por perto.
Os dias eram longos e pontuados por ordens, preenchidos pelo arder dos músculos a trabalhar enquanto eu corria de um lado para outro carregando água e alimentando os animais. Mas as noites, ah, eram essas que eu temia. Elas pareciam nunca terminar. No escuro do meu quarto, o movimento da maçaneta girando me fazia encolher na cama, os lábios apertados com as preces aprendidas na escola e as mãos bem cerradas sobre o cobertor. Eu prendia a respiração e suspirava aliviado quando a porta não se abria, só então podia parar de tremer e mergulhar em um sono inquieto pontuado por pesadelos.
No fim, os minutos passados diante do armário acabaram por se tornar meus únicos momentos de conforto.
Nas manhãs claras de verão, o monstro me pedia que lhe contasse histórias sobre lugares distantes que ele jamais havia visto. Eu lia para ele, viajando pelos mundos imaginários e infinitos, em meio as areias do deserto sob o Sol escaldante, saltando sobre as ondas acompanhado por piratas ferozes e em meio aos prados à sombra de um valente cavaleiro em sua armadura. Em todas as histórias criaturas da noite apareciam e eram derrotadas, mas isso não parecia incomodar o meu amigo, ele apenas se divertia dizendo que aquilo não passava de ficção e que os homens nunca derrotariam um monstro na vida real. Eu não gostava da vida real e muito menos queria que alguém derrotasse o meu monstro.
— Você não tem medo de mim? — Ele perguntava ao me ouvir dizer essas palavras.
— Não. — Era sempre a minha resposta. — Tenho medo dos monstros que não estão presos em um armário.
Nos fins de tarde, ao crepúsculo, o monstro nunca falava sobre as manchas roxas que ocasionalmente apareciam por minha pele, apenas contava piadas que já havia ouvido até que toda a dor desaparecesse e todo o som que sobrava era a mescla de nossas risadas.
— Onde você aprendeu essas coisas se nunca saiu desse armário?
— Você não é o primeiro humano que eu conheço. Em outra época houveram outros que gostavam de brincar e riam até mesmo pelo simples bater de asas de uma borboleta.
— E o que aconteceu com eles?
A voz entristecia sempre que eu tocava no assunto.
— As risadas morreram, mas eu os ajudei a se libertar.
— Você pode me ajudar? — eu sussurrava, temeroso demais que mais alguém pudesse de algum modo ouvir.
— Apenas se você pedir.
No escuro da noite, o monstro me perguntava sobre os meus tios e o porquê de eu morar com eles.
— Meus pais morreram em um acidente e meus tios foram os únicos parentes que conseguiram contatar, então me mandaram para cá — expliquei, abraçado aos joelhos para conter as memórias que não gostava de lembrar. — Quando minha tia está com raiva, ela diz que meus pais apenas fingiram sua morte para se livrar de mim, que eles não me queriam.
— E isso dói, não é, pequeno?
— Sim — Doía tanto que as vezes era difícil respirar. —, mas como você sabe? Monstros têm pais?
— Todos viemos de algum lugar — a voz respondia em seu tom enigmático que em algum ponto passara a ser tranquilizador.
Eu apertava mais a coberta que trazia nessas noites ao redor do corpo e repousava a cabeça no ninho que eram meus braços apoiados sobre os joelhos, antes de partir para a próxima questão em minha lista de curiosidades.
— Como eram seus pais?
— Eu não lembro muito deles. Eles me trancaram aqui por ser assustador demais.
— Sinto muito.
— Não se preocupe, pequeno. — Havia um tom apreciativo em sua voz. — Eu os fiz sofrer por isso.
— E isso fez a dor passar?
— Sim — ele murmurava como se fosse um segredo.
Nas madrugadas de dor, o monstro me fez promessas.
— Eu posso fazer isso parar — ele disse.
— Você pode? — sussurrei, a voz rouca pelo choro recente e as lágrimas ainda marcadas nas bochechas. Meu coração batia feroz, rugindo sobre os ouvidos com toda a raiva infantil acumulada ao longo dos anos. Não era algo impressionante, mas o monstro entendia. Ele também estava sempre com raiva.
— Tudo o que você precisa fazer é abrir a porta.
Minhas pernas estavam trêmulas quando me pus de pé sobre elas. Avancei os dois passos que me separavam do móvel e estendi a mão para o puxador enferrujado. Foi apenas um movimento, uma simples virada de pulso, só o suficiente para a porta se entreabrir e então o mundo se tornou escuridão.
Eu vi o meu monstro naquele momento: olhos verdes muito arregalados, arranhões sangrentos e pele flácida envolta em vários membros alongados que terminavam em garras enegrecidas. Seu cabelo escuro e pesado escorria até o chão, a saliva pingava da boca repleta de presas afiadas e sua pele cinzenta pela falta de luz do Sol reluzia banhada pela Lua. Ele se assomou diante de mim, muito mais alto do que qualquer pessoa ou animal que eu já houvesse visto e falou em um tom suave:
— Não tenha medo, pequeno, eu não vou machucar você.
Eu sabia que isso era verdade. Ele era meu amigo, meu único amigo naquele lugar enorme e abandonado, não um monstro a ser temido. Eu sabia que ele jamais me machucaria.
— Não tenho medo de você — respondi, dando um passo à frente para abraçá-lo.
Quando a cortina de sombras me envolveu e visão se tornou nada além de um borrão difuso, eu sorri. Aquilo em breve estaria terminado. Não lembro dos gritos ou das expressões de medo em seus rostos ao ver o monstro descer as escadas com seu riso reverberante, não lembro do vermelho que banhou os móveis ou de suas súplicas implorando por perdão após tantos pecados cometidos. Havia apenas a doce sensação de paz, sem mais dor, sem mais medo.
Em todas as histórias que li, dizem que os monstros são seres malévolos que causam medo e trazem apenas dor e sofrimento aqueles que os encontram. Naquele dia, eu aprendi que elas estavam erradas, pois aquela criatura que vivia preso no armário não era assim.
O meu monstro havia me libertado.
Quando ergui o olhar para o espelho, em meio ao cheiro pungente do sangue espalhado pela sala, o monstro havia desaparecido e era meu próprio rosto pálido a me encarar de volta. O armário a partir de agora estaria vazio, porque aquele monstro nele escondido habita em todos nós e está apenas à espera de uma porta entreaberta por dedos trêmulos e vencidos pelo medo para se libertar.
E uma vez livre, ele nunca mais retornaria ao escuro novamente.
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