O dia estava horrível.
Era um daqueles dias em que o ar é insuportavelmente úmido, as nuvens de chuva pairam no céu, cobrindo-o em um cinza maciço, e a luz do sol tenta se esgueirar por toda brecha que encontra, na vã tentativa de fazer as últimas folhas que sobram nas árvores perdurarem pelos próximos meses.
—Sierra! Desça aqui, a comida está na mesa! -a voz de mamãe me tirou do transe.
Saltei do parapeito da janela, onde eu sentia o vento em meu rosto e observava o céu, para dentro do meu quarto, coloquei minhas meias e corri para o andar inferior. O cheiro das panquecas já se espalhava pela casa, infestando-a com o doce aroma de framboesa. Assim que adentrei a cozinha, mamãe franziu o cenho.
—Está pretendendo criar passarinhos no seu cabelo?
Esbocei um sorriso. Eu tinha consciência de que meu cabelo deveria estar terrível. Entretanto, só para conferir, dei alguns passos para trás e encarei meu reflexo no espelho preso à parede ao lado da cozinha.
—É apenas para te mostrar que o inverno está chegando. -falei, enquanto tirava algumas folhas enroscadas em meus fios laranjas.
Ao ouvir a palavra inverno, automaticamente os olhos de dona Eva desceram para meus pés, certificando-se de que eu estava devidamente protegida do pavoroso piso gelado.
Como que para me gabar, aproveitei seu olhar em meus pés e dei passos para dentro do cômodo novamente, lentos e provocantes. Andei até a mesa e apoiei meus dois braços na superfície escura, apoiando meu queixo em minhas mãos logo em seguida. Abri o sorriso mais travesso que tinha e olhei fundo em seus olhos.
—Quando você se comporta assim, parece se esquecer que sou sua mãe. Eu não vi, e ainda sim tenho certeza de que você acabou de colocar essas meias.
A sustentação do meu sorriso foi impossível, dando lugar a uma risada envergonhada.
—Tome logo seu café e coma essas panquecas, ou vai acabar se atrasando.
—Sim, senhora! -bati continência e puxei a cadeira para me sentar.
—Me chame de senhora de novo e eu vou gastar todo meu salário em cremes para rugas. -mamãe ameaçou.
Não contive o riso debochado, recebendo um olhar mortal da mulher à minha frente.
—Vou esconder todos os seus cremes. -ameacei, gargalhando.
—Coma. -falou seriamente, mas logo acabou rindo junto à mim.
Enquanto eu comia, observei mamãe com os olhos atentos. Apesar das brincadeiras, era impossível notar as rugas em seu rosto. Finas linhas de expressão enfeitavam seu olhar, denunciando uma vida regada à risadas e sorrisos. Nem mesmo seu trabalho como policial na delegacia local foi capaz de fazê-la menos sorridente.
Fitei-a enquanto ela ajeitava a trança em seus cabelos com alguns fios brancos e logo colocava o quepe azul escuro.
Tal ação me fez recordar de quando eu era criança e a admirava enquanto vestia sua farda, exatamente como agora. Por volta dos 7 anos, resolvi questionar seu emprego, sabendo como era perigoso e me sentindo completamente incapaz de viver sem ela. Sua resposta, satisfatória para mim na época, costumava me causar questionamentos no dia de hoje.
—Mamãe, hoje minha professora me disse que ser policial é um trabalho perigoso. -reclamei emburrada, abraçando meu coelho de pelúcia.
—Ela disse? -dona Eva questionou, ganhando tempo para formular uma explicação.
—Uhum! E eu não quero que você tenha um trabalho perigoso. -fiz bico.
Mamãe deixou o espelho em que se arrumava em seu quarto e andou até mim, sentada na cama, se abaixando para ficar à minha altura.
—Talvez um dia você entenda o motivo disso. Mas, por enquanto, apenas saiba que sua mãe precisa pagar pelos pecados que ela cometeu. Acho que salvar vidas e prender pessoas más é um bom jeito de tentar. -murmurou a última parte como que para si mesma.
—Eu disse para minha professora que você é uma super heroína! -ri, orgulhosa de minha mãe.
Mamãe sorriu, as poucas linhas de expressão ao redor de seus olhos ficando mais aparentes. A trança em seu cabelo cor de chocolate escondida pelo quepe.
—Eu também quero ser uma heroína um dia, mamãe! Como você!
Sua expressão risonha se dissipou, e eu fui capaz de ver a tempestade passando em seus olhos. Eva tentou disfarçar a preocupação com um sorriso amarelo.
—Você será, meu amor. Você irá salvar o mundo.
Pisquei, deixando as lembranças de lado. Mamãe me fitou, o carinho palpável em seu olhar.
—Não esqueça de ir ajudar a igreja hoje, Sierra. Eles precisam de voluntários para arrumar a decoração de natal.
—Tudo bem, passarei lá depois do trabalho.
—Ótimo. -ela veio até mim e me deu um beijo na testa. —Bom trabalho, filha.
—Tchau, mamãe! -aumentei o tom de voz quando ela deixou a cozinha.
—E coma suas panquecas! -a ouvi gritar antes de fechar a porta ao sair de casa.
Suspirei, me concentrando em tomar meu café da manhã. O silêncio tomava conta da casa, me trazendo uma sensação de tranquilidade.
Ao terminar minha refeição, lavei a pouca louça suja e subi as escadas em direção ao meu quarto. Amarrei meu cabelo em um rabo de cavalo alto, passei um pouco de rímel e busquei meu casaco em meu guarda roupa. Calcei minhas botas quentinhas e peguei minha bolsa de todos os dias.
Por um momento, um sentimento incômodo tomou conta de mim. Estava tudo silencioso demais. Como se na vizinhança não houvesse uma alma viva sequer.
Desci as escadas devagar, com o coração acelerado por algum motivo desconhecido. Assim que abri a porta da frente, porém, tudo voltou ao normal. Vi a Anna e o Brendon, netos dos meus vizinhos, os Russel's, correndo até o ponto do ônibus escolar. Vi Josh tirando o carro da garagem e Grace chegando na casa dos pais com o filho no colo.
Balancei a cabeça, mandando a sensação estranha embora e tranquei a porta atrás de mim. Peguei minha bicicleta no quintal e comecei a pedalar até o Joe&John's Coffe, para mais um dia de trabalho.
Assim que adentrei o aconchegante café, tirei meu casaco, caminhei para os fundos, peguei meu avental pendurado ao lado da porta da cozinha, e o vesti. Ajeitei os fios soltos do meu cabelo e peguei o bloquinho de pedidos e a caneta.
—Bom dia, Sierra. -Joe falou assim que me avistou.
—Bom dia, Joe! -sorri e logo vi John saindo da cozinha com farinha em todo seu rosto, resmungando sobre como Joe não o ajudava. —Bom dia, John!
—Olá garota, como vai? -sorriu afetuoso para mim. Então, ele se voltou novamente para Joe, franzindo o cenho. —Você vai perder um braço se colocar a quantidade certa de fermento na massa dos pãezinhos? Eles estão gigantes! Não são mais pãezinhos, são baguetes! Por Deus, eu posso usá-los para bater em alguém!
Joe revirou os olhos com o drama de seu marido, o ignorando. O loiro me fitou, o sorriso brincando nos lábios.
—Pense bem antes de casar, minha querida. Veja o que te espera! -apontou para John de modo divertido.
O moreno, ouvindo as palavras de Joe, fez uma pose convencida.
—E mesmo assim, você me ama! -acusou o marido.
—Com todo meu coração. -afirmou. —Vamos salvar esses pãezinhos. -decidiu, adentrando a cozinha e sendo seguido por um apaixonado John.
Eu observava tudo com um sorriso contido, sinceramente feliz por saber que meus chefes nutriam um sentimento tão lindo entre eles.
—O que é essa cara de apaixonada? -uma voz feminina conhecida me tirou dos pensamentos.
Revirei os olhos, ainda sorrindo, e encarei Amber que caminhava em minha direção, vinda do salão do café.
—Apenas pensando em algumas coisas.
A loira me fitou enquanto me analisava. Seus olhos azuis buscando qualquer sinal escondido em minhas feições.
—Sem um romance, então? -suspirou, parecendo decepcionada.
—No momento, estou apaixonada por conseguir entrar na faculdade. -confidenciei, pegando a caixa com os copos descartáveis dentro e levando para o balcão da cafeteria.
Amber sorriu, assentindo enquanto me seguia.
—Eu te entendo! Estou caidinha por um cara chamado Administração, acredita nisso?
—Invista nele, oras!
—Infelizmente, ele não liga para minha personalidade incrível. Ele só quer meu dinheiro.
Gargalhamos com sua última frase, tirando os copos de dentro da caixa e os empilhando ao lado da máquina de café.
—Amber, pode pegar a caixa com as tampas para mim, por favor? Vou esquentar a água e o leite.
A loira assentiu e voltou para os fundos da cafeteria, enquanto eu me abaixei para pegar a jarra para por água dentro do armário. Coloquei o líquido transparente na máquina de café e liguei a mesma. Amber chegou com a caixa e eu me dirigi até a cozinha, em busca da caixa de leite.
Assim que adentrei o cômodo branco e limpo, percebi John e Joe ainda discutindo pelos pãezinhos. John ameaçava usar as baguetes como armas para bater em seu marido. Peguei o leite sem fazer barulho e saí do local antes que eles me notassem, rindo baixinho.
Enquanto eu atravessava os fundos da cafeteira, o silêncio estranho pairou sobre mim novamente. Eu não ouvia mais meus chefes, nem Amber empilhando as tampas dos copos no balcão.
Senti os fios de meu cabelo balançando, mas não havia vento do lado de dentro do estabelecimento. Meu coração estava disparado novamente.
De repente, a porta dos fundos se abriu e eu dei um grito, derrubando a caixa de leite no chão.
—Sierra! -Michael entrou no local, correndo até mim.
—Sierra, você está bem? -Amberly apareceu nos fundos também.
—O que houve? -John colocou a cabeça para fora da porta da cozinha.
—E-Eu levei um susto quando Michael entrou! Me desculpem, não sei o que deu em mim! -falei envergonhada.
—Está tudo bem, Sie! -Amber garantiu, e John concordou.
—O leite também sobreviveu, aparentemente. -Michael brincou, apontando para a caixa de leite no chão, que não havia estourado.
—Deixe que o Michael faça isso, Sie, me ajude a limpar as mesas. -Amber comandou.
—Você que manda, loira! -Michael bateu continência, nos fazendo rir.
—John, me ajude aqui, sim? -a voz de Joe se fez ser ouvida de dentro da cozinha.
O moreno nos fitou com um sorriso engraçado e retornou para seus pãezinhos.
Michael se ocupou de colocar o leite para esquentar e organizar os doces nos mostradores, enquanto eu e Amber pegamos nossos paninhos e os umedecemos antes de seguir para limpar as mesas no salão.
Assim que terminei a última mesa, o sino da porta soou, indicando a chegada de um cliente. Amber correu pegar seu bloquinho de pedidos e atendeu o casal. Me dirigi até o balcão e preparei o café do homem e o chocolate quente da mulher, enquanto Michael pregava os croissants recheados e os colocava em pratinhos.
Logo, demos início a mais um dia de trabalho, correndo contra o tempo para fazer os pedidos na cafeteria lotada. Na última hora de expediente, eu revezava com Amber, anotando os pedidos, e Michael cuidava do caixa quando o sino soou novamente.
Terminei de anotar o pedido de uma senhora e me dirigi ao homem que havia acabado de entrar e sentado em uma mesa próxima à porta. Ele trajava um terno e sapatos sociais, observando tudo à sua volta.
—Bem-vindo ao Joe&John's Coffee, qual seu pedido?
Estendi o mini cardápio em sua direção e o homem me fitou, pegando o objeto de minhas mãos.
Seus olhos castanhos dourados fitavam os meus com curiosidade, entretanto, a grande corrente prata com um crucifixo em seu pescoço foi o que me chamou a atenção. Ela tinha detalhes azuis vívidos, como se fossem verdadeiras pedras preciosas.
—É Tanzanita. -sua voz me fez desviar o olhar do colar.
—Perdão?
—O nome do cristal em meu colar. Se chama Tanzanita.
—É muito bonito. -eu não sabia o que dizer. Estava envergonhada por ter sido pega observando. —Já escolheu seu pedido? -mudei bruscamente de assunto.
—Sim, claro. Eu gostaria de um macchiato e uma fatia de torta de maçã, por favor.
Anotei seu pedido e retirei o cardápio antes de seguir para a bancada onde Amber se encontrava.
—Um macchiato e um mocca, Amber.
A loira se ocupou em fazer os cafés e eu peguei a fatia de torta de maçã e o croissant de chocolate. Separei os pedidos na bandeja e entreguei primeiro o da senhora, que me agradeceu, e então o do homem de terno.
Voltei para a bancada e suspirei, sentindo o cansaço se apoderar do meu corpo.
—Aquele homem está te encarando. -Amber se aproximou e sussurrou para mim.
Não ousei me virar para verificar.
—Eu fiquei encarando o colar dele e ele percebeu. Estou morrendo de vergonha.
Minha amiga deu uma risada baixa, sem conseguir se conter.
—Porque ficou encarando o colar dele?
—Ele tem gemas azuis incrustadas, são lindas. O homem me disse que é Tanzanita. -falei e me aproximei mais, sussurrando ainda mais. —Eu não sei o que é Tanzanita. -confidenciei.
Dessa vez a risada de Amber saiu um pouco mais alta, e eu senti minhas bochechas queimarem. Michael virou em nossa direção e balançou a cabeça em negação, porém com um sorriso. Ele sabia que Amber contaria para ele minha vergonha depois do expediente.
—Eu vou começar a lavar a louça, tudo bem? -falei, antes que Amber dissesse mais alguma coisa.
Ela assentiu e eu fui até a pia, me ocupando com os pratos e talheres sujos. Não olhei para trás uma única vez, entretanto, eu podia sentir os olhos do homem queimando em minha nuca.
Ignorei a sensação até lavar o último prato e, quando me virei, o salão já se encontrava vazio e Michael trancava a porta da frente.
—Precisa de ajuda com mais alguma coisa? -perguntei à Amber, que varria o chão do salão.
—Não, pode ir. Michael chegou atrasado, ele pode fechar o caixa. -falou. —Você vai ajudar a igreja com a decoração de natal?
—Sim, vou para lá agora. Te vejo amanhã?
—Como sempre. -sorriu. —Até amanhã, Sie.
—Tchau, Amber. -falei e então aumentei o tom de voz. —Tchau, Michael!
Deixei a parte da frente e voltei aos fundos, pendurei meu avental ao lado da porta da cozinha e a abri para me despedir de meus chefes. Joe lavava a louça da cozinha e John limpava o fogão.
Assim que me despedi, saí do estabelecimento e peguei minha bicicleta, pedalando até a Igreja da cidade.
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