doispontospe Pê Berthel

Crescer é uma tarefa difícil, e alguns, nem o fazem de fato. Na iminência do abandono da infância, uma imaginativa garota do interior se vê entre a cruz e a espada. Continuar na inocência e nas brincadeiras de criança ou abandoná-las de vez?


Short Story All public.

#infância #amadurecimento #fazenda #interior #criança
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capítulo único

A ventania era forte, bateu janelas e portas, fez tábuas carcomidas do tempo rangerem como as velhas pás do moinho do alto da colina. A senhora de avental bordado de flores e pássaros correu para botar os bichos de casa, assustados, para dentro. Nada da neta, aquela moleca inventiva que cismava em fugir para Deus sabe onde. A mulher idosa, lá pelos sessenta e vários, olhou a marrequinha de estimação— de coleirinha e tudo, dada para a neta nuns aniversários atrás — e suspirou.

— Menina dos diabos.

A copa das árvores por cima dela tremulavam, como bandeiras da paz anunciando o fim daquela guerra inútil. Aliás, toda guerra é inútil. Guerra? A do Vietnã, não vê não? O rádio ao fundo, com aquelas suas interferências ocasionais, descrevia tudo demoradamente, como a avó nunca diria. Não diria por que

— Ora! Tenho mais o que fazer, menina. — Falava fazendo sinal para que parasse de lhe perturbar, matar seu tempo com "invencionices de criança". Guardava os prendedores no cestinho, botava o lençol seco no braço e assim dava o assunto por encerrado.

Mas não era a guerra que a interessava no momento, era o livro que tinha nas mãos. Júlio Verne e aquele tal de centro da terra. Pareciam longe um bocado as cidades ditas e repetidas no velho mundo. A Europa devia ser mais longe do que a viagem ao centro do planeta, milhas e milhas, léguas e léguas submarinas.

As ovelhas, nos vastos potreiros de grama começando a ficarem ralas, agitaram-se. Os animais sentem o tempo, são muitos mais atentos que os idiotas que se dizem racionais. Esse era o tipo de coisa que tia Lúcia sempre dizia, estalando os dedos e olhando ao longe. Ela era a irmã sabida, que estudara tão pouco quanto qualquer um da família, mas tinha o que os outros chamavam de O Dom. Isso não passava de rezas e benzedeiras, mas era o que curava o cobreiro do gado e fazia a terra infértil germinar.

Paty espiou o rosário por dentro da camisa cujo primeiro botão estava aberto, junto dele o sutiã que pegara da última gaveta da prima Mary Jane, durante um almoço na casa dos tios paternos, quando ninguém estava olhando. Usava ele às vezes— o rosário, o sutiã —, em geral para ir a missa, agradar a avó, ver se o filho do leiteiro notava.

Uma gota caiu sobre a página do livro aberto nas pernas da menina. Ergue a cabeça, uma garoa fina tinha começado a salpicar o campo, os pássaros indo se esconder nas árvores, as ovelhas e as poucas vacas por debaixo de galpões de ripas podres.

A avó gritava para o caseiro recolher os animais, que o céu já estava preto e vinha temporal. O homem de longe via Paty, sentada ao pé da ingazeira, mas nunca dizia nada, apenas acenava e prosseguia seu trabalho, assoviando tranquilo, sem medo de tempestade. Se ia pra casa, com o livro por dentro do casaco para não molhar, os cabelos umedecendo na chuva que engrossava.

— Por onde andava?

— Por aí.

Todo dia a mesma história, o mesmo papo furado. O caminhão de leite vinha uma vez por semana buscar os litros de Coca-Cola sem Coca-Cola e enquanto a avó contava os trocados, a menina se ia escondida na cabine. No que chamavam de "cidade" — se é que dava lá para considerá-la cidade — entre as vendinhas, as mercearias, o botequim, o único banco, achava sempre um cestinho com livros velhos, revistas com páginas faltando e jornais de meses atrás. Era a festa dos pobres achar um livro bom, desses de autores de nome, capa inteirinha e páginas bem cuidadas — mas aí era coisa rara. Em geral, desses só pegava na mão quando a professora trazia da própria casa e ia de um por um emprestando, quase que sob jura sagrada para guardar com a vida. Nem tão longe assim de casa, às vezes embaixo de alguma árvore ou num galho alto como uma macaquinha, lia sem pressa, tempo ao tempo, como se tudo tivesse parado.

— Ainda me mata, viu?

Deixava a senhora a berrar sozinha, procurando-a em cada canto da chácara como uma gata arisca que só volta a noite para comer. Da rápida passada no centro da cidade, Paty buscava sempre se apressar com os livros e acabava voltando com o filho do leiteiro, que na moto velha seguia para aqueles lados demorando mais do que o necessário por caminhos de fácil acesso, só para ter na garupa da moto a menina de trancinhas e livros sacolejando na bolsa de pano.

— Mato nada, vózinha. — Dizia sempre bajulando a mulher de cabelos grisalhos, passando a mão neles, dando beijos na pele manchada de sol e da idade.

Quando chegou ensopada em casa, as botinas velhas e enlameadas foram deixadas no portão — que a chuva lavasse! — e foi pela varandinha descalça, os olhos enormes, os nós dos dedos roxos segurando o encadernado de Júlio Verne.

O fogo aceso, a cadeira de balanço, o som das agulhas a tricotar um tapete ou um gorro ou qualquer coisa. A gata dando de mamar para os filhotes, a marrequinha encoleirada chamando pela dona.

Uma camionete vermelha e empoeirada chegava de tardezinha, dela um homem descia com uma rosa ou uma margarida nas mãos, os pés também imundos, e ia fazendo um rastro do portão até a porta de madeira simples que se repartia em duas.

A menina admirava aquele amor tão terno do avô pela avó e vice versa, aquele carinho que permanecia a mais de quarenta anos, nas fotografias, nas histórias de família. Será que um dia ela, logo ela, receberia um "eu te amo", uma declaração ou um pedido?

As copas das árvores balançando e a chuva no telhado faziam um barulho do qual ela tinha medo quando menor. Ia se esconder nos lençóis dos avós, esperava lhe dizerem que tudo ia ficar bem para que realmente ficasse. Agora não. Tudo não passava de um pretexto para ficar até mais tarde em vigília, lendo sob a luz da vela, sonhando com o amanhã.

Era incrível como o tempo demorava para passar quando ela queria que as coisas fossem pra já. Ser criança às vezes era chato, tudo igual toda hora e não podia fazer nada. Não podia ir em bailes, usar maquiagem, nem atirar em latas como o avô e os primos mais velhos faziam. Era pequena demais, diziam, mesmo que com a mesma idade sua prima já tivesse boas histórias para contar.

Um dia após o outro, cada um tem seu tempo. Era o que tia Martha dizia quando ela se irritava por bobagem com alguém, botando a mão em seu ombro e sorrindo. Essa não era tão inteligente quanto Lúcia, mas era paciente e dedicada a tudo que fazia, por que nem todos eram com ela.

Dia mais, dia menos, agora os potreiros pareciam mais verdes, as vacas mais gordas e a menina mais alegre. Lia O Conde de Monte Cristo num fascínio, numa concentração absoluta. A brisa leve movimentava os cabelos agora soltos, cheios de caracóis e voltas mirabolantes, como as dos seus pensamentos, indomáveis.

A senhora, na porta do casebre bem nos degraus de madeira que rangiam um absurdo, batia a poeira dos tapetes espantando as galinhas. Onde será que a neta estava?

Haviam um movimento mata adentro, mas ela não notou nada. Um galho quebrando e um pulo agressivo, algo ou alguém voou no seu pescoço, a assustando.

— Oi — Ele disse, dando-lhe vários beijos no pescoço que a fizeram rir.

Não era mais o filho do leiteiro que mexia com ela, fazia seu coração balançar. Era um qualquer coisa que morava na cidade e tinha TV em casa, negócio de rico.

Nem um terremoto mexeria tanto com ela, faria tanto estrago naquela cabecinha já louca, desgarrada do real. Quando se viram pela primeira vez, pensou logo que estivesse sonhando acordada, vendo aquilo que já pensava muito. Andava matutando sobre amor, desejando um para si.

Engraçado. Bonito. Intimidador. Ele era os dois primeiros com uma pitadinha do último, como daquelas pessoas perfeitas com um pecado mortal. Fazia ela sentir não só a paixão, mas um medo estranho. Uma vontade de sair correndo, se esconder debaixo de cama.

— Satã é sedutor — Dizia a avó, meio que para afugentá-las dos perigos, logo depois de ir confessar.

— Nem se preocupa, vovó. Isso já sei de cor e salteado. — Dizia uma versão um pouco menor dela, fazendo um sinal da cruz antes de sair, só pra garantir.

Ele não pegava na sua mão como nos livros, pegava em lugares que ela não entendia bem o por que de suas mãos estarem lá. Não beijava doce e demoradamente, era um misto de ansiedade e desejo, daquele tipo que só se vê em histórias mais deturpadas, não nos romances. Ninguém devia fazer daquele jeito, isso matava o amor, a apavorava.

Quando voltou a encará-lo, os olhos não eram mais azuis, como os de um cavaleiro numa armadura, eram negros e desesperadores, como um abismo. As mãos nem tinham mais o tato suave da primeira vez, eram ásperas, grossas e fortes.

Qual era o sentido daquilo tudo? Qual a graça de ser adulta com uma mente de criança? A tempestade lhe apavorava menos que aquilo.

Dos medos de pequena, o mais forte ainda era o do diabo.

Empurrou o garoto, mas tropeçando em uma das raízes da árvore amiga sua de tempos, foi ao chão, encolhida e tremendo. No canto da boca dele via um sorriso, as mãos estendidas talvez tentassem ajudar, mas quem poderia dizer?

O vestido estava sujo de terra, mas no momento ela nem se ligou nisso. Deixou o garoto — que, convenhamos, ainda era tão criança e tão perdido quanto ela — todo confuso, lá parado com cara de idiota.

Paty correu como um raio para debaixo da saia da avó, que ficou surpresa com a neta que andava tão sumida ultimamente. Sem mais pressa de crescer, nada mais daquela vontade desenfreada de abandonar os livros e as traquinagens de menina, fez uma oração em segredo, apertando o crucifixo junto ao peito.

Que tudo ainda demorasse muito, Deus do céu.

June 1, 2019, 1:25 a.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

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