solipsismo Bruno Andreata

Enquanto esperava o primeiro ônibus da sua vida ela conheceu o sujeito mais cético do mundo.


Short Story Not for children under 13.
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Depois de uma caneca de chá maior do que a média, a menina ia pra cama. Seu quarto era muito (muito) mais bagunçado que a média, também. Menos sua cama. A cama era impecável, com a coberta dobrada pouco abaixo da altura do travesseiro. De certa forma lembrava uma embalagem. Um envelope, como ela gostava de imaginar. Deitava e colocava a coberta presa entre o colchão e a cama, deixando bem apertado. Não é bom deixar as coisas soltas no envelope, ela dizia. Podem quebrar na viagem.


Enquanto esperava o primeiro ônibus da sua vida ela conheceu o sujeito mais cético do mundo. Ele era literalmente o mais cético que já existiu, se ceticismo pudesse ser medido. E de certa forma dava um pouco de medo nela porque usava capuz mesmo no sol. Ele virou duas vezes pra ver quem estava do seu lado, mas não disse nada. Na terceira, perguntou se ela sabia que, às vezes, os dedos do pé podem cair espontaneamente. Primeiro um pequeno tecido grosso é formado na base do dedinho do pé. A mãe dele chamava de “mindinho”, mas não quis compartilhar isso pra alguém estranho no ponto de ônibus, era informação demais. Depois, esse tecido começa a encolher, enforcando o dedinho, até que ele cai. A pessoa não pode fazer nada para impedir, só assistir seu dedinho do pé cometer suicídio. Isso pode levar anos. E não existe tratamento. Aliás, não sabem nem o que causa isso. A palavra pra quando não sabem o que causa alguma doença chamava-se idiopatia. O sujeito mais cético do mundo e a menina da cama-envelope ficaram se olhando por alguns segundos, e ele disse que a vida era idiopática. Nunca mais se sentaram ao lado um do outro no ônibus, mas acabaram virando grandes amigos por correspondência.


Um dia ele disse que contaria a ela seu maior medo, como prova de confiança, e que ela não precisava contar nada a ele. Porque ele não acreditava em acordos. Seu maior medo era abrir os olhos a noite e ter um contato alienígena de primeiro grau, ou ver um fantasma. Real mesmo. Por ser tão cético, ele nunca acreditaria no que acabou de acontecer, apesar de seu cérebro refutar essa ordem. Enlouqueceria. Então pra evitar eventuais problemas ele não tinha móveis que projetavam sombras sem querer, e eliminava tudo que fizesse barulho desnecessário.


A menina nunca soube bem o que dizer depois dessas informações vomitadas nas cartas, mas fazia pequenos desenhos engraçadinhos que se saíam melhor que qualquer resposta. Ela deitava no seu envelope e se imaginava estampando o selo para mundos diferentes, baseados no que acabou de ouvir. Mundos povoados por mindinhos (ela chamava assim, mas nunca contou pro sujeito, tinha vergonha) independentes, em busca de aventura. Onde todo objeto era na verdade algum ser se escondendo e ninguém tinha contato nenhum.

March 9, 2019, 5:37 a.m. 0 Report Embed Follow story
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