zephirat Andre Tornado

Na noite de Natal existem muitas almas solitárias. Mas basta um toque de luz para que a solidão se quebre, para que a magia exista.


Short Story For over 18 only. © História original de minha autoria.

#natal #luz #noite #solidão
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Capítulo Único


Agarrava o volante com firmeza e fixava os olhos na estrada escura.


A noite estava quieta como só aquela noite sabia ser. Não havia outra noite assim em todo o ano – silenciosa, envolvente, sussurrante.


Era o único automóvel no caminho. Todos já deviam estar em casa havia horas, na típica reunião familiar daquela época do ano, à volta de uma lareira, a provar das iguarias saborosas que se serviam nestas festividades. Bebia-se, confraternizava-se, a televisão ligada nos habituais programas coloridos, histriónicos, que celebravam a quadra. Acendiam-se as luzes, os vidros das janelas enfeitavam-se com motivos semelhantes que invocavam sinos, anjos, pinheiros, estrelas. Prendas e peúgas vermelhas penduradas. Música sagrada e profana.


Na escuridão onde ele viajava todos esses enfeites e cenários rebuscados de alegria e de convívio pareciam fúteis. Não necessariamente inúteis, mas longínquos, como se pertencessem a uma outra existência, uma dimensão diferente daquela onde ele se encontrava a ter aqueles pensamentos. Era quase como se o que ele imaginava como sendo a realidade das outras pessoas não significasse uma coisa realmente concreta, era apenas a projeção de um sonho, da sua imaginação, de uma espécie de ideia sobre como deveria ser aquela noite se fosse perfeita.


Ou seja, no mundo só havia ele e o seu pensamento. A realidade e a invenção. Ele, a curtir a solidão, e os outros, que não eram gente real, rodeados de amigos e de familiares.


Era a noite de Natal e ele estava sozinho, ao volante do seu automóvel, à espera que aquele último troço da estrada corresse bem. Lutava para não se deixar influenciar pelo marasmo e cair no sono, para enfim também ele regressar ao lar.


Não era uma perspetiva demasiado animadora. Não tinha ninguém à sua espera no apartamento situado num condomínio de luxo, não haveria um abraço e um sorriso calorosos à chegada. Nem tinha uma árvore coberta de enfeites num canto da sala, com presentes debaixo dos ramos artificiais curvados pelo peso das esferas, nem existia um presépio mínimo com as figuras essenciais ou uma estrela desenhada por um designer exclusivo em exposição numa ampla parede alva. Na mesa não estava nenhuma refeição lauta de bacalhau com couve, polvo cozido, sobremesas tentadoras como formigos, rabanadas, filhós ou aletria.


Por outro lado, queria muito voltar a casa. Tirar os sapatos e pisar a alcatifa com os pés descalços, o aquecimento estaria ligado pois já tinha dado a instrução ao sistema inteligente através da aplicação certa no seu telemóvel de última geração. Tomaria um duche escaldante depois de se descartar das roupas amassadas. Comeria qualquer coisa ligeira pois não se sentia com apetite. Beberia um digestivo enquanto espreitava os últimos relatórios que tinha exigido aos seus colaboradores na véspera e que estariam na sua caixa de correio eletrónico.


A noite continuaria a ser morna e expectante, mas então ele já estaria protegido no interior do seu castelo. Naquela estrada sentia-se demasiado exposto e vulnerável. Era um veículo solitário no meio de nenhures, amplas vias desertas e avenidas urbanas vazias. Quem o visse passar, através de uma daquelas janelas enfeitadas por autocolantes natalícios, haveria de apontá-lo como o desgraçado que não tinha uma alma que lhe fizesse companhia na noite de consoada.


Dispensava a piedade dos outros. De facto, abominava-a e o seu estômago apertou-se de revolta.


Aumentou o volume de carro e deixou que Beethoven preenchesse os espaços vazios que se tinham apoderado de si próprio. Relaxou os músculos e experimentou alívio ao avistar as primeiras luzes da cidade no horizonte. Estava perto do seu descanso e resolveu abstrair-se do sossego extraordinário da noite que o rodeava num manto escuro, pacífico e abençoado. Pesava-lhe demasiado nos ombros fatigados e não queria contaminar-se com adjetivos desnecessários.


Quando abrandava à vista do portão que dava acesso ao parque de estacionamento privado do condomínio, quando pressionava o comando que destravava o mecanismo que faria abrir esse portão, finalmente em casa, viu o homem. Uma ruga nasceu-lhe no centro da testa que ele crispou com aquela observação.


A visão era estranha. Porém, possivelmente nada de anormal acontecia, pois no mundo existiriam muitas pessoas sozinhas na noite de Natal, outros solitários por opção – tal era o seu caso – ou por destino. O homem aguardava junto à porta do condomínio. Usava um sobretudo surrado e puxara o capuz para a cabeça para se proteger da humidade noturna. Abraçava-se a um volume embrulhado em papel manteiga, atado com cordéis, e os braços tremiam-lhe. Era alguém velho, gasto e magro.


Num primeiro instante, ele exasperou-se. Era desprestigiante haver um mendigo na entrada daquela propriedade requintada. Olhou para o aparelho de telemóvel pousado no banco do pendura e pensou em ligar para a polícia. Depois houve um detalhe que lhe captou a atenção e a ruga alisou-se, pois que a pele da testa se alisou com a perplexidade que lhe inundou o rosto.


Parou o carro defronte do portão que se encontrava totalmente aberto. Saiu e aproximou-se do velho. Era o senhor Alfredo, o alfarrabista que tinha uma loja numa rua inconspícua e que tinha sido notícia no início do mês por ter sido forçada a encerrar, pois o prédio iria ser demolido para dar lugar a um hostel. O turismo estava a crescer, fora a explicação. Costumava visitar a vetusta livraria onde procurava volumes raros a pedido de algum colega do escritório que precisava de um presente diferente para dar a alguém especial.


Cumprimentou o velho, perguntou-lhe o que fazia ali. Era muito tarde para andar na rua, era noite de Natal. Sim, invocou a quadra festiva como argumento.


Os olhos do velho brilharam ao reconhecê-lo. Cumprimentou-o de volta, chamou-o pelo nome. O velho sabia o nome dele. Sentiu um calafrio, uma emoção, o peito a pesar-lhe por causa do sobressalto. Estendeu-lhe o volume embrulhado em papel manteiga, atado com cordel. Disse-lhe que era um livro, disse-lhe que se tinha lembrado dele, porque era noite de Natal. Disse-lhe que o tinha guardado desde que lhe tinham fechado a loja e desbaratado os livros. Mas aquele não, aquele sempre estivera guardado. Um presente, acrescentou. E porque era, efetivamente, noite de Natal.


Ele aceitou o volume, comovido. Colocou-o debaixo do braço, convidou o velho para a sua casa. Insistiu, não aceitou as recusas e as desculpas, não aceitou as explicações constrangidas.


Encomendou uma ceia satisfatória, mesmo sendo tão tarde. Sentou-se à mesa com o velho e escutou maravilhado as suas histórias incríveis sobre os amigos mais extraordinários e completos que alguém poderia ter – sobre os livros amados do velho alfarrabista.


Quando bebiam um cálice de vinho do Porto, ele desembrulhou o volume.


Era um livro de ilustrações sobre animais. Um livro que ele tinha tido quando era criança, que ele adorava, que se tinha perdido num incêndio florestal que devastara a sua região, a antiga casa dos pais, as memórias, há muito tempo. Os olhos marejaram-se. O velho confessou que o tinha observado a cobiçar aquele livro, de todas as vezes que fora à sua loja. Ele acenava com a cabeça, emocionado. Passou a mão trémula pela capa dura, verbalizou um agradecimento. Havia ali luz. Um toque de luz.


Luz de Natal.

Dec. 24, 2018, 10:22 a.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

Meet the author

Andre Tornado Gosto de escrever, gosto de ler e com uma boa história viajo por mil mundos.

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