movemontes Mateus Bandeira

Não importa o quanto se procure, não importa o quanto se insista... no fim, é Deus quem faz as coisas acontecerem por aqueles que sabem reconhecer o que é verdadeiro do que é falso sob a luz da Lua. "O Elmo Dourado" é um conto de vingança, mistério e revelações que pode mudar seu jeito de enxergar como funciona o interior de uma mente com mágoas.


Adventure Not for children under 13.

#vingança #ação #drama #medieval
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O Elmo Dourado

É uma pena

Ninguém gostava da visita dos homens do barão. Eles reviravam as mesas, armários, cômodas, tapetes e camas de todas as casas do vilarejo em busca de algo de valor que lhes interessasse. Quando não encontravam nada, perturbavam o sossego dos moradores, seja sujando a cidade ou aliciando as moças bonitas. Os pobres habitantes de Bosque Limpo não podiam fazer nada para mudar isso – e os que tentaram foram mortos ou encarcerados.

Até que num pacato domingo, tendo recebido a visita dos arruaceiros, Gilg ficou inquieto. Um dos homens estava tentando levar sua filha, Jarnan, para a cama – sem consentimento. Irritado, Gilg viu a oportunidade bater à porta: o homem estava sozinho, sem nenhum de seus amigos ali por perto. Com uma enorme pedra que havia por ali, ele golpea o crânio do sedutor, matando-o na hora.

– O que foi que fez, pai? Agora eles irão matá-lo!

– Não se preocupe com isso. Chame seu irmão para me ajudar a esconder o corpo. Agora.

Jarnan sai pela porta dos fundos e vai até seu irmão, Alast, que estava colhendo alguns tomates de sua horta para dar aos homens do barão.

– Nosso pai precisa da sua ajuda, urgente – ela disse com firmeza.

Alast largou tudo e foi até dentro de casa, sem fazer perguntas. Deparando-se com o corpo, se desesperou.

– Que diabos! Ele está morto?

– Sim, eu o matei. Precisamos escondê-lo – respondeu Gilg.

– Espera um pouco. Primeiro: por quê você o matou? Segundo: se descobrirem, estaremos todos condenados. Sabe disso, não é?

– Agir primeiro, falar depois. Abra o alçapão, depois me ajude a carregar o corpo. Quando for noite, o enterramos na margem do lago e pronto, sem mais preocupações.

Alast precisava de respostas mas sabia que aquela não era hora de fazer exigências. Ele abriu o alçapão que levava ao porão, e junto de seu pai, eles jogaram o corpo lá.

– Estou com um péssimo pressentimento sobre isso – disse Jarnan.

– Devia era estar grata! – Respondeu seu pai.

– Não é hora da fazer escândalo – interrompeu Alast. – Ajam como se nada tivesse acontecido. Qualquer sinal estranho já aciona desconfiança neles. Então vamos ficar calmos, e quando eles vierem aqui, damos a eles o que querem.

Dito e feito. Pouco tempo depois, eles entraram. Antes que pudessem revirar os móveis, Alast lhes entregou uma cesta repleta de tomates, Jarnan lhes deu um colar com um pingente de quartzo e Gilg ofereceu um chá de ervas.

- Com o tempo as coisas vão se encaixando - disse um dos homens. - Quem diria? Até vocês aprendem a respeitar as autoridades. Não é mesmo, pessoal?

Seus amigos concordaram, num ar de deboche. Eles recusaram o chá de Gilg e foram embora – sem revistar absolutamente nada. Aliviado, Gilg se senta e chora, pensando no medo que havia acabado de sentir. Ele já estava velho para passar por esse tipo de coisa e quase sentiu seu coração sair pela boca. Seus filhos o consolaram.

Tendo chegado a noite, Alast e seu pai colocaram o plano em prática. Com o cadáver, uma pá e um lençol em cima do carrinho de mão, eles foram em silêncio até o lago, que ficava à aproximadamente vinte minutos de caminhada do vilarejo. Alast começou a cavar a cova – sem pressa, sendo iluminado pela luz da Lua. De repente, ele ouviu um ruído perto dali.

– Tem alguém aqui – sussurrou.

– Sim, sou eu – disse uma voz misteriosa que vinha por de trás de Gilg. – Nem pense em se levantar, se não corto sua cabeça.

Alast viu no lago o reflexo da espada por de trás de seu pai. Ele não conseguiu ver o rosto do homem porque um elmo dourado lhe cobria o rosto.

– Não o machuque.

– Ah, eu não quero. Mas preciso saber o que estavam fazendo aqui. Tenho certeza que essa cova não é em vão. O que tem no carrinho?

– Não é da sua conta – respondeu Gilg.

– Se eu perguntei, então é da minha conta, velho.

– É um corpo. Estávamos escondendo ele – disse Alast.

– Mal criado! – Exclamou Gilg.

– Velho ingrato, não vê que ele está tentando salvar sua vida? – Disse o soldado. – Mostre-o pra mim, sem truques, ou seu pai morre.

Alast foi lentamente até o carrinho, tirou o lençol e ergueu a cabeça do morto em direção ao homem.

– Pobre Hiunas, ainda tinha muito para viver, é uma pena. Mas ele não valia nada mesmo.

– Então vai nos deixar ir?

– O quê? Claro que não.

Ele colocou os dedos da mão esquerda dentro da boca e assobiou bem alto. Pouco tempo depois, chegaram alguns de seus colegas e então começaram a conversar.

– Encontrei nossa ovelha perdida. E ela está fria como gelo.

– Um golpe forte na cabeça, nem se quer teve chance de pedir perdão pelos pecados. Sabe quem fez isso? – Disse um deles.

– Desconfio que tenha sido esses dois aqui, já que estavam tentando escondê-lo.

– Eu o matei - disse Alast.

– Não escutem esse tolo, fui eu quem matou esse verme – contestou Gilg.

– Que bonitinho, papai tentando proteger o filhinho. Pouco importa quem matou, os dois estavam tentando esconder o corpo e isso é inadmissível. Terei que matar pelo menos um de vocês, para que o outro volte e sirva de exemplo. Que dúvida cruel.

– Lance sortes – recomendou um amigo.

– É verdade! Como pude me esquecer da querida Duquesa?

Ele levou a mão esquerda para trás do corpo e puxou um punhal afiado que estava na cintura. De cada lado da lâmina estavam entalhados dois símbolos. Alast não conseguiu identificá-los. O homem jogou o punhal para o alto e o esperou cair no chão para revelar qual dos dois ele iria matar. Todos observaram atentamente a lâmina ir de cima para baixo até tocar o chão.

– É. Isso também é uma pena.

Ele segurou a espada com ambas as mãos, jogou os braços para trás e depois os trouxe de volta num rápido golpe, cortando a cabeça de Gilg.

NÃO! - gritou Alast, como se tivessem arrancado suas entranhas.

– Não fique triste, rapaz. Você ainda está vivo.

Eles pegaram o corpo de Hiunas e partiram, rindo e fazendo chacotas, como se nada tivesse acontecido. Alast ficou ali, ajoelhado, com o rosto em prantos. Ele abraçou o corpo decapitado de seu pai e passou a noite nessa mesma posição, sem dormir, abalado. Depois de tanto chorar e secar os lábios de engolir suas salgadas lágrimas, o único gosto que Alast queria sentir na boca era o da vingança.

Uma cabeça por uma bênção

Passaram-se sete anos desde a morte do velho Gilg. No início, Jarnan culpava seu irmão, mas agora ela já havia se acostumado, até porque havia se apaixonado e estava prestes a se casar – não sentia mais falta de seu pai. Alast não apoiava nem um pouco o matrimônio, já que seu futuro cunhado, Vitcren, era um dos homens do barão. Ele tinha um sentimento ruim em relação a homens como ele, por causa de sua mágoa.

Vitcren precisava da bênção de Gilg para se casar com Jarnan – conforme o costume dos povos do sul. Mas como Gilg havia morrido, a responsabilidade pulou de pai para filho, e Alast era quem precisava permitir que sua irmã caçula se casasse. O dilema era grande, mas ele tinha ideia que parecia infalível.

– Alast, o dia está lindo hoje, não é verdade?

– Porque veio me incomodar durante meu descanso? – Alast estava dormindo na varanda de casa, deitado sobre um amontoado de cobertores.

– Perdoe minha intromissão. Não queria incomodá-lo de maneira alguma.

– Se não quer me incomodar, então vá embora e nunca mais volte.

– Não posso fazer isso, sua irmã e eu... estamos apaixonados.

– Para sua sorte – respondeu, levantando-se, pegando um balde vazio e indo até os fundos da casa, enquanto Vitcren o seguia.

– Eu tenho algo para perguntar a você. Sobre o casamento. Eu sei que preciso da sua bênção, e você também sabe disso. Então eu vim perguntá-lo o que é que eu preciso fazer para convencer você.

Eles pararam de frente a um poço e Alast empurrou o balde contra Vitcren.

– Quer minha bênção? Tire água desse poço, agora. Tire o balde bem cheio.

"Só isso?", pensou Vitcren. Ele amarrou a corda do poço na alça do balde, e foi soltando lentamente a corda, para fazê-lo descer. Quando sentiu que estava cheio, ele puxou a corda para trazê-lo de volta. Mas por maior que fosse a força que ele colocasse, ele não conseguia levar o balde até o topo. Alast começou a rir dele.

– Imagina se esse balde fosse a minha irmã!

– Como ele ficou tão pesado?

Alast tomou a corda da mão de Vitcren, deu uma volta com ela na mão e trouxe o balde de uma só vez para o topo, sem muito esforço.

– Então não era força, mas sim jeito. Como eu iria saber?

– Se tivesse usado a cabeça ao invés dos braços saberia. Você continua sem água... e sem minha bênção – e dando as costas, saiu. Vitcren foi atrás dele, de novo.

– E se eu trabalhasse para você por um ano?

– Não.

– E se eu te oferecesse parte da minha herança de família?

– Também não.

– E se eu... te ajudasse a encontrar o homem que matou o seu pai?

Alast parou por um momento. Depois virou-se lentamente.

– Como é?

– Exatamente o que ouviu. Eu moro no Casarão, posso conseguir qualquer informação que você precisar.

Alast olhou para ele, desconfiado.

– Você trairia seus amigos por mim?

– Não. Por você não. Mas por Jarnan... sim – disse Vitcren, tirando uma aliança que estava guardada no bolso. – Eu amo sua irmã e sou capaz de qualquer coisa por ela.

Alast sentiu pena dele, ao mesmo tempo em que viu a oportunidade perfeita para pôr um fim digno na história de seu pai.

– Eu aceito sua proposta, mas eu só lhe darei bênção depois de me encontrar com o desgraçado.

– Não vai se arrepender dessa decisão, Alast. Isso eu garanto a você.

Coisas do passado

Depois de uma longa conversa com Alast, Vitcren deu início à busca pelo assassino. Ele retornou à Ferradura – cidade onde morava o barão Selimos – e foi para o Casarão. O Casarão era o "quartel-general" dos soldados de Ferradura. Cerca de setecentos homens viviam lá, o que tornava o trabalho de Vitcren mais complicado. Mas ele já sabia por onde começar: interrogando. Alast havia dito que o homem que matou Gilg possuía um punhal inscrito em ambas as lâminas, e que se referiu a ele como "Duquesa".

Vitcren passou cerca de três dias se infiltrando nos assuntos alheios e fazendo perguntas indecentes – sem perder a discrição, é claro – a fim de encontrar a tal Duquesa. No fim, tudo o que ele sabia era que havia um punhal num baú de madeira, próximo a uma cota de malha pintada de azul.

Decidiu ir primeiro até o estábulo do Casarão. Havia um enorme porão debaixo do estábulo, onde ficavam as armas e armaduras da guarda do barão. Então na calada da noite, Vitcren foi até lá coberto com uma manta e carregando uma pequena vela nas mãos. Ele procurou dentre todas as armaduras que estavam estendidas, alguma que tivesse – por dentro dela – uma cota de malha pintada de azul. Depois de um bom tempo procurando, ele a encontra. A armadura estava estendida sobre um armário velho, mas não empoeirado, com apenas uma gaveta. Nesse momento a alegria de Vitcren estava completa, ele encontrou o homem. Mas para sua infelicidade, a gaveta estava trancada. Ele tentou encontrar algum jeito de abri-la sem precisar da chave, mas sabe que o único jeito seria quebrando-a – e isso iria deixar rastros. Enquanto revirava a armadura à procura da chave, ele encontrou um pote cheio de mel.

Esse mel é de Fib – falou sozinho, enquanto cheirava o interior do pote. – Talvez ele saiba quem é o dono dessa gaveta.

Vitcren voltou para o Casarão como uma pena, sem ter sua presença notada por ninguém, nem pelos guardas noturnos. E quando se deitou, já sabia o que deveria fazer no dia seguinte.

E tendo chegado o dia seguinte, Vitcren foi até o centro de Ferradura encontrar Fib, que vendia o melhor mel de toda a região do sul. Assim que se aproximou de sua humilde barraquinha, começou a interrogá-lo.

– Fib, saudações. Preciso de ajuda e acho que só você pode resolver.

– Ah, olá Vitcren. Como está sua noiva? Ela gosta de mel, não é? Posso te dar um desconto especial.

– Obrigado, depois eu compro para ela. Agora eu estou precisando de informações.

– Assim como o mel, elas também estão à venda. Diga do que precisa e eu darei meu preço.

– Por acaso conhece o dono de uma cota de malha pintada de azul?

– Conheço dois homens que possuem tal objeto que acabou de descrever.

– Sim, mas o que eu estou procurando, também tem uma gaveta trancada onde guarda coisas... valiosas.

– Ah, claro! Sei muito bem de quem está falando. Mas primeiro, o pagamento. E não é pouco, porque o homem de quem estamos falando é um homem muito importante.

Vitcren procurou qualquer moeda que tinha, mas seus bolsos estavam vazios, exceto por um em que estava a aliança que havia comprado para Jarnan. "Mesmo que eu dê a ela essa aliança, não poderei me casar enquanto não conseguir a bênção, então ela não valerá de nada", pensou.

– Eu tenho essa aliança de ouro para lhe pagar.

– Deixe-me ver – Fib a analisou muito bem, observando cada detalhe. – Eu aceito, e ainda te dou um pote de mel de presente.

– Fechado. Agora clareie a minha mente.

– O homem que você procura se chama Móri. Ele já está com os cabelos brancos, mas ainda não é um sujeito velho. Ele é um cara bem aberto, simpático e sempre fala da sua gaveta misteriosa quando fica amigo de alguém, e bem, eu e ele somos amigos. Não está pensando em roubá-lo, está?

– Claro que não. Eu quero que ele me ajude num assunto pessoal.

– Ah sim, então... vá em frente, boa sorte e obrigado por fazer negócios comigo.

Vitcren agradeceu, deu as costas e foi embora. Assim que chegou ao Casarão, procurou saber entre os colegas de trabalho em qual quarto morava Móri, até descobrir que na verdade, Móri vivia junto com o barão e trabalhava na casa dele, em sua guarda pessoal. Ele precisava pegar a chave da gaveta de qualquer jeito, então pensou: "já cheguei até aqui, não há porque desistir". Então ele foi até a casa de Selimos, e perguntou por entre os guardas onde estava Móri. Ele estava do lado de fora, guiando alguns trabalhadores na reforma do telhado. Vitcren olhou para a cintura de Móri e viu um punhado de chaves num chaveiro, dentre elas, uma bem pequena, de tamanho muito parecido com a fechadura da gaveta. Ele tentou se aproximar despercebido, e, quando viu a oportunidade, tocou nas chaves. Mas Móri percebeu a movimentação e virou-se para ver o que era.

– Perdeu alguma coisa?

– O quê? Não. Eu estava passando e esbarrei sem querer, desculpe.

– Tome mais cuidado, rapaz – ele olhou bem para Vitcren. – Você não é o rapaz que vai se casar com uma fazendeira?

– Sim, sou eu sim. Ela é de Bosque Limpo.

– Veja só – se aproximando. – Os outros caras daqui podem te chamar do que quiser, mas eu te acho muito corajoso. Seja você mesmo e será feliz – terminou com um tapinha nas costas.

Vitcren ficou surpreso com a reação espontânea de Móri. Mas bem ali naquele instante, ele se lembrou do que Fib havia dito: "ele sempre fala da gaveta misteriosa quando fica amigo de alguém". Vitcren percebeu então que não precisaria mais das chaves, mas sim, saber o que exatamente tinha dentro da gaveta.

– Obrigado por isso. Sabe... eu não ligo muito para o que dizem, para mim o que importa é o amor que eu sinto.

– Exatamente! Quando eu tinha a sua idade, eu vivia pelos outros e não por mim. Me arrependo muito por não ter aproveitado os desejos do meu próprio coração.

– Isso é triste, muitas pessoas passam por isso. É um conselho muito válido. Outra coisa que penso é: porque guardar segredos? Eu me livrei de todos os meus segredos, acho que todos deviam fazer isso.

– Você pensa igual a mim. Eu também acho que devemos nos livrar dos nossos segredos.

– Por exemplo: recentemente contei à minha noiva que eu tinha uma caixa onde guardava tudo que me fazia lembrar da minha mãe, que já faleceu. Então ela me ajudou a me livrar de tudo, para que eu aprendesse a abandonar o passado.

– Sua mulher é uma boa pessoa. Eu também passei por isso, tenho uma caixa onde guardo coisas do meu passado.

– Ah é? Que tipo de coisas?

– Coisas velhas e enferrujadas, como um bracelete, um elmo amassado e um punhal.

– Um punhal?

– Sim. Um punhal que me traz muitas lembranças, ele tinha até nome: Duquesa. Mas essas coisas já passaram, deixei tudo para trás.

Vitcren conseguiu exatamente o que queria. Tudo correu muito bem, sem correr nenhum risco, nem ter de lutar com ninguém. Enquanto por fora ele agia normalmente, por dentro seu corpo saltitava de felicidade. Conversa vai e conversa vem, Vitcren já bola seu plano:

– Eu realmente gostei muito de você. Ainda não me apresentei, meu nome é Vitcren. Não gostaria de jantar comigo e com minha noiva, lá na casa dela? Ela faz um ótimo ensopado de pato.

– Eu iria negar, mas você disse ensopado de pato, não consegui resistir. Basta vir falar comigo quando quiser e a gente marca de se encontrar.

A partir daquele instante, Vitcren tinha certeza de que havia conseguido a bênção que tanto almejava.

O último pato

Depois de passado algum tempo, a grande noite chegou. Tendo preparado o jantar, Jarnan o colocou sobre a mesa, enquanto via seu noivo e Móri conversarem sobre muitas coisas. Eles ficaram um bom tempo jogando conversa fora. Mas enquanto isso, Alast aguardava ansiosamente do lado de fora um momento a sós com seu rival. Sabendo disso, Jarnan deixa cair um pouco de ensopado na roupa afim de forjar uma situação delicada.

– Amor, preciso que me ajude a tirar essa roupa, sabe que sozinha eu não consigo.

– Claro, meu bem. Móri, seria muito incômodo eu sair rapidinho para ajudá-la ali no quarto?

– De maneira alguma, eu fico aqui esperando.

Eles foram até o quarto. Sem hesitar, Alast entra pela porta da frente, limpando a terra das botas. Móri olha para ele como quem não quer nada.

– Olá, você é amigo de Jarnan? – Pergunta Alast.

– Na verdade, sou amigo de Vitcren, estou aqui para jantar somente.

– Muito prazer, eu sou irmão de Jarnan. Por falar nela, onde está?

– Eu sou Móri, o prazer é meu. Ela se sujou com ensopado e Vitcren foi ajudá-la a trocar de roupa.

Alast estava com a faca à postos, pronto para enfiá-la no pescoço de Móri assim que visse a oportunidade.

– De onde você é? - Pergunta Alast, num sarcasmo sombrio e imperceptível.

– Eu trabalho para o barão, como seu cunhado.

– Deve ser bom morar em Ferradura. Muitas mulheres, muitos amigos... aqui nós só temos o que Deus quer que tenhamos: vida dura e suor.

– Não tem jeito, cada um nasce do jeito que devia nascer – e riu.

– E morrer? Será que morrem do jeito que deviam morrer?

– Eu acredito que sim. Eu sei que Deus é quem mata, nós só arranjamos o encontro.

Móri pegou o copo de água e o levou na boca para saciar a sede. Com a visão tampada, ele não viu o golpe vindo rápido como um trovão em direção ao seu pescoço. Alast enfiou a lâmina até o fundo por debaixo do queixo, atravessando a língua e tocando o céu da boca.

– É bom saber que pensa assim, porque eu arranjei o encontro que você tanto merecia.

Móri não conseguia falar, somente gemer. Alast puxou a faca para fora, sem cortar mais do que já tinha cortado.

– Por-por-porquê? – Disse o ferido, espirrando bolhas de sangue da boca.

– Você matou o meu pai, cortou fora a cabeça dele como se ele não fosse nada! Sorteou a vida dele usando uma porcaria de um punhal! Você ao menos se lembra dele?

– Eu fi-fiz muitas co-coisas de que me...

– De que me o quê?

– Me arre-arrependo.

Sedento, ele estica o braço para pegar o copo de água na mesa. Alast joga o copo no chão.

– Este foi o último copo de água que você bebeu e este foi o último pato que você comeu. Bem na mesa da casa do homem que te matou. Exatamente como Deus queria que você morresse, como a escória que você é.

Móri não conseguiu dizer mais nada, ele tentou ficar em pé, mas caiu com o rosto em cima do pato, deixando o jantar todo ensanguentado. Naquele instante, Jarnan e Vitcren saem do quarto e vêem a cena. Jarnan tapou os olhos e chorou e Vitcren lamentou a morte de um recém-amigo, mas Alast olhou para Vitcren, abriu um sinistro sorriso sujo de sangue e disse:

– A bênção que você tanto queria é toda sua.

Ele saiu pelos fundos, foi até o túmulo de seu pai e cravou a faca ensanguentada na terra, terminando de uma vez por todas o ciclo de sua vingança.

Uma gaveta empoeirada

O barão e seus homens procuraram por Móri durante três meses, até que de desaparecido, passou a ser declarado morto. Eles organizaram um grande evento de funeral. Toda a cidade esteve presente – afinal, Selimos havia ordenado, ele e Móri eram amigos há muito tempo. E no meio disso tudo estava Vitcren, passando-se por inocente. Vitcren não sentia remorso por ter feito tudo o que fez, ele acreditava que um homem colhe tudo aquilo que planta, até mesmo os arrependidos. Além de que, seu casamento seria em breve e ele só pensava nisso.

Quando os carros vieram passando por entre as ruas de Ferradura, carregando um caixão simbólico, Vitcren viu que em um deles estava a velha gaveta de Móri. Ao final do evento, eles enterraram o caixão junto da gaveta, bastante superficial. Vitcren viu ali mais uma oportunidade de agradar seu cunhado.

No dia seguinte, Vitcren foi até Bosque Limpo dar as boas notícias de que haviam cessado a busca pelo corpo de Móri, e, aproveitando, entregou ao cunhado a velha gaveta que tinha roubado do túmulo durante a noite. As chaves já não eram um problema, pois Alast as tinha pego do cadáver e as guardado dentro de seu armário.

– Não sei se isso pode ajudar, Alast. Mas é uma coisa, não é?

– O que tem aqui dentro?

– Se eu me lembro bem... havia o punhal, um bracelete e um elmo. Amassados e enferrujados. Pelo menos foi assim que ele descreveu.

– Obrigado, Vitcren.

Alast não pretendia abrir aquela gaveta tão cedo, ele queria deixar tudo para trás. Mas Jarnan fez o favor de levar sua mente a lembranças sombrias. Naquela mesma noite, Jarnan preparou um ensopado de pato. Assim que o viu, Alast imaginou o corpo de Móri sobre ele.

– Porquê fez pato tão cedo? Porque não esperou pelo menos um ano para fazer pato de novo?

– Desculpe, irmão. Eu não sabia que você iria ficar assim.

– Tudo bem... eu só preciso respirar um pouco de ar fresco e já estarei melhor.

Ele foi para fora, pensar em tudo o que havia passado. Lembrou dos tempos bons que teve com seu pai. Lembrou da noite terrível em que o perdeu. Lembrou da infância pacífica que seu pai tinha dado à ele e à Jarnan. Ele sabia que enquanto tivesse aquela gaveta dentro de casa, jamais teria paz.

– Isso não pode ficar assim – disse sozinho. – Preciso me livrar daquele maldito punhal.

Ele entrou e foi direto para o armário do quarto pegar as chaves. Depois puxou a gaveta de debaixo da cama, respirou fundo, colocou a chave e destravou. Lá estava um bracelete, um elmo enferrujado e o punhal, também enferrujado. Por causa da ferrugem, ele não conseguia ver os entalhes das lâminas, somente o resto "quesa", de "Duquesa". Alast olhou um tempo para ele e chorou como uma criança. Depois, levou os três objetos até o túmulo de seu pai, mais uma vez. Ele colocou um do lado do outro, vendo a luz da Lua brilhar sobre eles. Até ter uma brilhante centelha de epifania: o elmo da gaveta era prateado, mas o homem que matou seu pai usava um elmo dourado. Alast se levantou e foi para dentro de casa numa velocidade alucinante. Ele agarrou Vitcren pelo pescoço e o colocou contra a parede.

– Você me fez matar o homem errado!

– Irmão, o que está fazendo? – Gritou Jarnan.

– Mas eu te levei ao dono do punhal, eu fiz tudo que estava ao meu alcance!

– Você devia ter aberto a gaveta antes, devia ter aberto! Eu havia dito que o elmo era dourado!

– Mas e se ele tiver trocado de elmo durante esse tempo? Tudo é possível!

– Um elmo como aquele é um elmo para vida toda, ele não trocou porcaria nenhuma!

– Solte-o, Alast! Solte-o agora!

– Eu não posso deixá-lo se casar com você, Jarnan!

– Pelo amor de Deus, Alast! Tenha um momento de razão na sua cabeça: Vitcren fez tudo que você pediu. Se você me ama, então solte ele!

Alast o soltou. Ele não parava de se coçar e bater o pé no chão.

– Vocês terão que adiar o casamento até que eu encontre o verdadeiro assassino.

– Não pode fazer isso comigo, irmão. E se ele já tiver morrido?

– Adiem. Esse. Casamento. Agora!

E foi para fora outra vez, fechando a porta com força. Jarnan chorava intensamente enquanto Vitcren a consolava.

Insatisfeito, Alast pegou o bracelete, o punhal e o elmo, colocou-os de volta na gaveta, trancou e saiu sozinho em direção à Ferradura, montado em seu cavalo.

Por debaixo do lençol

Pouco tempo depois, lá estava Alast pedindo permissão aos guardas para entrar na cidade. Depois de uma longa conversa, eles o deixam entrar, já que ainda não era tão tarde da noite. Alast vai em linha reta em direção ao cemitério dos nobres de Ferradura e procura, dentre eles, o túmulo de Móri. Depois de encontrar, ele cava com as próprias mãos a terra, até ter espaço suficiente para guardar a gaveta. E ele a guardou, tirando um enorme peso das costas.

– Porquê não põe um fim à essa minha miséria, Deus? – Clamou em sussurros. – Já me mostrou que não posso controlar nem mesmo a minha própria vingança, que sou um homem desprezível... perdoe-me pelo que fiz, matei um homem inocente.

Enquanto seguia o caminho de volta, Alast foi abordado por um dos homens do barão.

– O que faz aqui a essa hora?

– Vim fazer um serviço.

– Finalmente! Achei que você nunca chegaria. Venha, têm mais de quarenta homens na fila por você.

– O que querem de mim?

– Ué, você é o barbeiro novo, não é? Do contrário, terei que te prender por perambular em local proibido.

– Sim, eu sou o barbeiro novo.

– Então me siga.

Alast o seguiu até o Casarão. Os homens se reuniram num quarto do andar debaixo, onde já estavam vários baldes com água e sabão. Para a própria sorte e sobrevivência, Alast teve de agir como um genuíno mestre cabeleireiro e tirar a barba de quarenta homens, o que levou praticamente a noite toda. Humilhado, ele saiu cabisbaixo. Mas antes que pudesse ir embora, foi abordado mais uma vez.

– Ei barbeiro, se esqueceu do general Rettar. Ele também precisa de um corte. Mas você tem que ir até o quarto dele, que fica no andar de cima.

Alast seguiu o rapaz até o quarto de Rettar, que também estava com um balde de água com sabão, só esperando o barbeiro chegar.

– Os rapazes me disseram que você faz um ótimo serviço.

– Eles foram modestos.

Rettar se sentou e Alast começou a passar a navalha em seu rosto. Sem querer, ele faz um pequeno corte na bochecha.

– Acho que foram modestos mesmo. Nunca fui cortado por nenhum outro barbeiro.

– Essa navalha que me emprestaram está cega, preciso pegar outra lá embaixo.

– Não precisa ir lá. Atrás de você tem um baú com alguns pertences meus. Tem uma navalha nunca usada antes aí, pode pegá-la.

Alast se abaixou para abrir o baú, que estava lotado de coisas. Ele viu a ponta do cabo da navalha, então colocou o braço por entre os objetos para pegá-la. Ele fez uma força extra para desprender o braço, puxando um lençol escuro e revelando um empoeirado elmo dourado que estava debaixo dele. Alast gelou por fora e sorriu por dentro, aquele era definitivamente o elmo do homem que matou o seu pai.

– Que bagunça está fazendo aí? Ande logo, preciso dormir – resmungou Rettar.

Alast veio com a navalha lentamente até Rettar, e continuou fazendo a sua barba.

– Essa noite foi muito esperada por mim – disse Alast, num tom cínico.

– O que quer dizer?

– Sonhei muitas vezes com ela, tive muitos pesadelos com ela e também fiquei noites sem dormir por causa dela.

– A noite em que iria cortar a barba de um general? Realmente, para alguém como você isso deve ser muito importante.

Alast trocou a navalha nova pela cega, segurou com força a cabeça de Rettar e foi lentamente passando a navalha por seu pescoço, de orelha a orelha. Rettar caiu da cadeira enquanto tentava impedir a ferida de jorrar sangue.

– Por quê fez isso?

– Até um tempo atrás, eu diria que fiz isso por vingança. Mas não. Eu já me vinguei, matei o único homem que me impedia de ser feliz: eu mesmo. Eu o matei quando deixei a gaveta velha de Móri de volta no lugar. Eu não sinto prazer em te ver morrer, Rettar, eu sinto pena. Porque vejo que Deus alinhou tudo para que essa noite chegasse e você tivesse o que sempre mereceu: uma morte lenta e dolorosa.

– Me ajude... por favor!

– Sinto muito, não estou fazendo isso por mim. Estou fazendo isso para que minha irmã possa se casar. Eu a amo e não fiz por ela o que devia ter feito. Mas se ao menos a Duquesa estivesse aqui comigo, eu tentaria jogá-la para o alto e ver se eu te daria uma chance. A propósito, porque usou a Duquesa naquela noite, se ela era de Móri?

– Vá para o inferno! – Respondeu Rettar, engolindo sangue.

– Acho que você deve ter roubado dele ou ele deve ter roubado de você. Mas quer saber? Pouco importa. Hoje eu descobri que as coisas só acontecem quando nós percebemos a parcela de culpa que temos em tudo. Eu perdi tempo demais remoendo a morte do meu pai, esperando te encontrar. Mas Deus me deu uma chance de sair ileso pelo meu crime e irei agarrá-la. Não acho que você vá entender o que estou dizendo, então, até mais ver, general. Tenha uma morte solitária, eu, por outro lado, tenho um casamento para arrumar.

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Aug. 5, 2018, 5:11 a.m. 3 Report Embed Follow story
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The End

Meet the author

Mateus Bandeira O saber nunca está além do fazer. Servir é melhor do que aconselhar.

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Pablo Vieira Neves Pablo Vieira Neves
Gostei muito do conto. Top!
January 28, 2023, 18:49
Asafe Fialho Asafe Fialho
Melhor que eu esperava :v
December 30, 2018, 15:20
Eduardo Chagas Martinhs Eduardo Chagas Martinhs
PARABÉNS
August 14, 2018, 01:19
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