Foi difícil escrever essa história. Me arrisquei em um campo de narração no qual nunca havia transitado, mas fiquei satisfeita com esse resultado e espero que assim como eu, apreciem a fanfic. Inspirada livremente na música "Foi no mê de dezembro" do filme Anastasia. Boa leitura.
“A vantagem de brincar com o fogo é que se aprende a não se queimar.”¹
– Mamãe, você tem medo de mim?
Mikoto amava seus filhos como jamais amou alguém em toda sua pacata existência. Desde nova aprendera o valor que o amor tinha, o quão belo ele era. Ainda que muito pequena já era uma menina com convicções fortes e um coração bondoso e honesto. Que muito fora ferido, dilacerado com o intuito de fazê-lo sangrar. Desde jovem vinha sendo valente, uma mulher guerreira que sabia se impor. Sabia o quão doloroso era crescer em um lar onde até mesmo o ar machuca. Um lugar de opressão, no qual a sobrevivência depende do quão quieta e obediente você sabe ser. Desprovido de amor e carinho, mas munido de agressão que por muitas noites atormentaram-na com horrendos pesadelos.
Desde muito cedo prometera a si mesma que faria diferente, que sua casa seria um lugar seguro. Um ponto onde seus filhos nasceriam e cresceriam rodeados de afeto. Onde não seriam obrigados a sair no gélido e atroz inverno caso desejassem ter o que comer. Nem seriam recebidos pelo pai com surras de açoites por não terem conseguido pão na vizinhança. Um lugar em que a violência não existiria, no qual seus pequenos não precisassem ver a própria mãe chorar em um canto frio e solitário na despensa. Colorida por marcas roxas e verdes, alimentada apenas pelas lágrimas salgadas que lhe manchavam a tez.
Sua casa seria quente. Seria acolhedora e repleta de gentileza e amor, coisas das quais ela fora privada quando nova, mas que conhecera no dia em que viu Fugaku pela primeira vez. Aquele homem, de aparência rígida e porte sério. Elegante, nascido em berço de ouro adornado de marfim e de olhar tão lôbrego, era como ela. Um homem que se forçara a crescer cedo demais, para suportar o peso do mundo sobre os próprios ombros. Que possuía cicatrizes de um passado doloroso que lutava bravamente para esquecer. Cujo tivera que criar-se sozinho, sem ninguém para lhe acolitar, nem quando escorregava pela parede torpe de um beco imundo. Horrorizado demais com a fraude que sua família era.
Um homem que jurara, diante ao seu antro familiar distorcido e humilhante, ser um bom marido. Um bom pai e um bom cidadão. Alguém que não macularia o leito com o calor de um corpo que não fosse o de sua mulher. Alguém que acima de tudo prezaria pelos filhos sem jamais permitir que outros entrassem em sua casa na calada da noite para extirpar a pureza de uma criança. Alguém que não faria fortuna tirando o pouco daqueles que já não possuíam quase nada.
Era esse homem que Mikoto amava. Que junto dela experimentara pela primeira vez a sensação de ser querido por alguém. Do quão lindo era olhar ao redor e ver o mundo pintado com cores radiantes, de tons que não saberiam nomear por nunca tê-los visto antes. Era esse homem, que com cuidado e dedicação limpou cada ferida encrustada em seu corpo e alma. Beijando uma após uma com a promessa de não permitir que voltassem a sangrar novamente. Que durante anos foi o maior apoio de sua vida, e que nos momentos difíceis segurava-a nos braços e esquentava seu coração remendado.
Ela o amava muito. Amava cada pequena parte dele, até mesmo as que cuidou após tantos anos de abusos e tormentos. E desse sentimento, da beleza que ele a fizera ver, nasceu ás duas estrelas de sua vida. Duas crianças de olhinhos negros como o céu noturno, mas brilhosos como o sol no mais belo dia de verão. Que trouxeram ainda mais alegria e amor para sua casa, unificando o maior sonho que tanto ela quanto Fugaku traziam guardados no âmago.
Seus dois bebês, tão pequeninos e inocentes, receberam o nome de Itachi e Sasuke. Tão graciosos e serenos, foram motivo de muitos sorrisos sinceros e encantados. Eles, tão nenéns e inexperientes com a vida, ensinaram Mikoto a ser mãe. Concederam a ela a bênção de poder ter uma família completa e primorosa. Era grata a eles por isso, mesmo que os pequeninhos não soubessem o tanto que a existência deles á fazia feliz. Ou mesmo o tanto que fizeram Fugaku lacrimar no mais belo rompante de amor ao pega-los no colo. A partir daquele momento ela soube que não precisaria de mais nada, pois Deus lhe tinha concedido tudo aquilo do qual ela precisava. Foi nessa mesma ocasião em que acreditou realmente na existência de Deus.
Com o passar dos anos, via com orgulho seus dois pequenos sóis crescerem e tornarem-se crianças maravilhosas. Gentis, amáveis e muito criativos. Dotados de inteligência e humildade, tão lindos e perfeitos. Itachi era um bom irmão mais velho, e com dez anos, fazia de Sasuke sua prioridade. A felicidade do caçula era a sua felicidade. Ambos passavam horas a fio brincando pela casa, descalços sobre o tapete conforme preenchiam tudo ao redor com suas risadas. E Sasuke, no auge de seus cinco anos, se considerava o garotinho mais sortudo do mundo. Tinha pais que o amavam, cuidavam e protegiam. E tinha Itachi, um irmão que sempre estava lá para ele. Para sorrir e lhe dizer o quão incrível era.
Sasuke tinha muita sorte.
Era o que ele sempre dizia.
Nos dias de inverno, quando sentava-se no tapete em frente a lareira, enrolado por um grosso cobertor de lá e uma xícara de chocolate quente, conversava com ele. Adorava como era compreendido, como sempre recebia elogios e da sensação que isso lhe causava. Ele sempre fazia questão de comentar como o achava inteligente e astuto. De como, para um garotinho de cinco anos, Sasuke conseguia estar á frente de todos. Com sua graça e grande capacidade para crescer e ser o homem mais bem sucedido do mundo. Um herói, dizia ele. Alguém nascido para a mais extraordinária perfeição.
Fazia o pequeno Uchiha sentir-se grande.
Mesmo quando mostrava a ele os vários ursos de pelúcia dançando dentro das labaredas laranja. Valsando ao som de uma música que ninguém mais podia escutar. Ou cantava uma linda canção de ninar, sorrindo-lhe das chamas conforme o sono ia chegando e Sasuke cada vez mais se entregava aos sonhos daquelas frias noites de dezembro. Para em seguida ser recolhido pelos braços finos e quentinhos de Mikoto, sempre sorridente e amável nas várias vezes em que levava seu filho para o quarto e o colocava para dormir aconchegado em sua cama.
Ela achava lindo o modo como seu bebê ficava calmo naqueles dias, e olhava para o fogo com tamanha contemplação. Verdadeiramente feliz com algo que ela não entendia, mas que para ele fazia muito sentido. Assim como sorria afável todas as vezes que seu pequeninho vinha correndo, clamando por seu colo ao estender os pequeninos bracinhos em sua direção. Ansioso para lhe contar às aventuras que havia vivido naquele dia. Contando como havia grandes garanhões trotando nas chamas, relinchando e empinando-se para ele. Ou como vários ursinhos dançavam e pulavam, como se voassem pelo ar. Sobre as nuvens.
Seu menino era muito criativo. Sempre tinha novas histórias para contar, dia após dia reunia toda a família para narrar, do seu jeitinho afobado, as mirabolantes façanhas que sua mente infantil projetava. E tanto Fugaku quanto Mikoto, sentavam-se sorridentes para escutar tudo o que seu filho contava-lhes. Adoravam ouvir cada uma de suas histórias, por mais impossíveis que elas fossem. Eram mágicas e faziam o garotinho rir e se divertir como jamais visto igual. Sempre tão alegre e espontâneo, esbanjando a mais doce alegria. Tudo o que ambos desejavam para seus filhos. Aquilo que não tiveram em sua infância.
E ano após ano, até Sasuke completar seus onze aninhos, as coisas continuaram assim. Harmoniosas e belas, sempre vistas pela ótica de um menino que não possuía muitos amigos, mas nem por isso se retraía para o mundo. Contudo chega um dia em que as pessoas têm de crescer, assumir responsabilidades e saber diferir a realidade da fantasia. Esse dia havia chegado para Itachi, que agora com seus dezessete anos compreendia que a vida adulta trazia consigo um compromisso, e que como um dos homens da casa era seu dever aceita-lo. Estava na vez de Sasuke.
Mikoto não queria ver seu pequeno crescer, não ainda. Era uma mãe que daria quase tudo só para poder ninar seus filhotes no colo uma última vez, antes de abrir suas asas e deixa-los voar livres. Em direção as descobertas que ainda estavam por vir. Não queria ter de ver o sorriso sempre presente nos lábios de Sasuke murchar diante a realidade, mas também compreendia a necessidade disto. Por mais belo que fosse ouvi-lo falando sobre as histórias do fogo, que passaram a ser suas também, sabia o quão arriscado era seu menino acreditar que realmente podia ver cavalos galopando pelas chamas.
Ele estava submerso demais na fantasia que criara quando mais jovem. Perdido demais dentro da bolha de magia que sua mente de cinco aninhos criara para entretê-lo nos dias chuvosos de dezembro, nos quais era obrigado a permanecer dentro de casa. Ela entendia que aquela fora a realidade de seu bebê por muito tempo, e que isso era importante para ele. No entanto, lá no fundo, não podia permitir que ele ingressasse na adolescência acreditando em contos de fadas e ursos bailarinos. Não seria saudável para ele, e infelizmente como mãe era ela quem deveria desfazer essa doce ilusão.
Sabia que esse dia chegaria. O que não acontecera com Itachi, por este ser muito centrado desse novo, aconteceria com Sasuke. E por mais que doesse nela ter de ser a pessoa que diria ao seu anjinho que o Papai Noel não existia, acreditava que era apenas o melhor para ele. Seu Sasuke iria perdoa-la por isso um dia. Afinal, é função de toda mãe saber impor limites visando o bem estar de seus filhotes.
Portanto, naquela noite em que conversara com ele a respeito disso, o abraçara firme quando o pequenino chorou por finalmente descobrir que tudo não passara de uma mera ficção de sua mente engenhosa.
Foi ai que as coisas começaram a desandar.
Na primeira noite do inverno rigoroso daquele ano – mais frio e inóspito do que de costume – Sasuke ainda sentou-se de frente para a lareira na sala. Em nome de tudo o que acreditara ter vivido ali, ele queria ao menos se despedir. Dar adeus para aquela parte tão linda de sua vida, que mesmo não sendo verdade, seria sempre de grande importância em seu coração. Fantasia ou não, ele o fizera feliz. E fora um bom amigo em todos os aspectos de sua infância, alguém especial. Devia a ele ao menos uma despedida digna, por mais bobo que fosse.
Mas ele não queria que fosse.
Sentado diante do fogo, vendo com fascinação as labaredas ardentes lamberem os tijolos enegrecidos da lareira, ouviu aquela suplica que implorava para que não fosse embora. Ele não queria ficar sozinho, não queria abandonar o que viviam juntos. E quando Sasuke lhe disse sobre a conversa com sua mãe, de como ela estava com a razão em pedir que se afastasse dele, viu pela primeira vez em onze anos as chamas tremeluzirem do laranja para o vermelho. Para em seguida subirem tão alto que o garoto até mesmo recuou para trás, brevemente assustado com o recente acontecimento. E quando elas voltaram ao normal, logo em seguida, seu coraçãozinho se partiu pela primeira vez.
– Achei que fosse meu amigo.
Sasuke queria responder, queria dizer que eram amigos e que sempre seriam, mas antes que tivesse a chance as chamas se apagaram com um soprar de vento que não saberia dizer de onde veio. Elas não voltaram a se ascender durante o inverno inteiro, nem mesmo quando Itachi tentou, depositando lenha nova antes de atear um fósforo aceso sobre elas. Ele não voltou mais depois daquilo. E durante o restante do inverno e dos dois anos seguinte ele nunca mais viu aquela lareira acesa novamente.
Em determinado ponto nem Mikoto nem Fugaku ou Itachi tentaram aquece-la, tomando como verdade que aquilo fazia parte da aceitação de Sasuke com a realidade.
Mas Sasuke não parecia mais o mesmo. Seus sorrisos haviam desaparecido, ele se tornara um garoto de quatorze anos que não interagia muito com a família e nem mesmo com ninguém. Passara a se isolar dentro do próprio quarto e muito pouco saía de lá, apenas em caso de necessidade fisiológica ou quando a fome lhe abatia como um lembrete de que ainda era um humano. E como tal possuía necessidades. Ainda sim, no restante do tempo, deitava em sua cama e colocava a mão sobre o coração. Agarrando com firmeza o tecido da roupa que cobria aquela área de seu corpo, profundamente ferida.
“Não temo ao fogo que me adverte com suas chamas, mas livrai-me da brasa moribunda que se esconde sobre as cinzas.”²
Desde aquele dia a última frase dele ainda reverberava por cada canto de sua mente, lembrando-o sempre de como parecia magoada ao proferir sua última sentença antes de sumir. No que se tornariam dois anos de saudade e isolamento, onde não apenas Sasuke sofria, como sua família também.
Todos os dias uma parte do coração de Mikoto adquiria uma nova rachadura sempre que ela via o quão fundo seu filho estava entrando para dento de si mesmo. Descendo os degraus da própria mente até estar em um lugar no qual ela não podia alcança-lo, e isso a feria toda vez. Por que como mãe seu dever era cuidar e proteger, mas falhava dia após dia nessa tarefa. Não conseguindo nem mesmo aproximar-se o suficiente de seu caçula para entender o que se passava dentro daquele coraçãozinho tão jovem. E doía muito ver como seu marido também era afetado por isso, principalmente quando via o quanto ela estava ficando machucada com essa situação. Justamente quando ele prometera que nunca permitiria infelicidade dentro de sua casa.
Foram dois anos complicados na família Uchiha. E em momentos de desespero, até mesmo o casamento sólido e perfeito que ambos tinham saía prejudicado. Muitas vezes chegaram a discutir e por em pauta onde cada um tinha falhado na criação de Sasuke. Chegando até mesmo a acusações de ausência e negligência, que serviam apenas para balançar a base estrutural da família e piorar o sofrimento de cada um.
Durante todas as brigas aquelas velhas cicatrizes no casal latejavam, umas até mesmo voltavam a se abrir. A insegurança nascera em Fugaku e se alastrara como um vírus poderoso, sussurrando-lhe impropérios que seu pai costumava usar para degrada-lo quando criança. Em outras ocasiões podia escutar a voz do pai quando este apontava para si, dentro de sua mente alanceada, acusando-o de estar se tornando um pai tão ruim quanto este outro fora quando vivo. E por vezes, cingido pela própria amargura, cogitou a possibilidade do divórcio.
Para Mikoto não foi muito diferente, seus pensamentos não divergiam tanto do teor dos que seu marido tinha. E quando ninguém estava por perto, via a própria mãe nela mesma. Encolhida em algum canto escuro com o rosto banhado em lágrimas que escorriam em abundância, salgadas e dolorosas.
E isso afetava os filhos do casal. Itachi, agora adulto sofria em silêncio sempre que olhava para o mundo ao seu redor e tudo o que via era o quão feridos e desgastados seus pais estavam. Assim como via o irmão caçula, sempre tão alegre e brincalhão, afundar-se em uma depressão da qual não queria de jeito nem um sair. Sasuke não aceitava sua ajuda quando tentava oferta-la, e se recusava e falar sobre o que quer que o tenha deixado tão abatido. Itachi tentava, por Deus, ele tentava com veemência segurar o peso da dor de todos, para que pudessem voltar a sorrir, mas nem mesmo ele era forte o suficiente para carregar nos ombros tamanha tristeza sem acabar tão sem esperanças quanto todos naquela casa.
Não obstante, depois de anos em lamento, uma palha na lareira voltou a queimar e junto dela a chance de que as coisas voltassem ao seu devido eixo mais uma vez.
Em uma das poucas ocasiões das quais Sasuke saía de seu quarto em busca de alimento na cozinha, durante a calada da noite onde os únicos seres acordados eram os morcegos, ele viu. Aquela pequena palhinha estava lá, com uma chama tão pequena que ele não teria visto caso a casa não estivesse envolta no breu. Com o coração batendo rapidamente, rimbombando dentro de seu peito tão forte que podia até mesmo escutar o sangue sendo bombeado, aproximou-se da lareira e se ajoelhou diante dela. Os olhos voltando a brilhar minimamente. Agarrado naquela pequeníssima esperança que ganhava vida dentro dele como um naufragante se agarra aos destroços de seu barco na tentativa de sobreviver. Ele precisava se agarrar naquele sentimento, por que era o único que havia sentido além de dor e arrependimento.
– Dias de felicidade. E os cavalos na tempestade são imagens a dançar³... – murmurou fraquinho a antiga música que ele costumava cantar. O peito comprimido diante a expectativa. Aquela pequena chama ainda brilhava na lareira e bem diante sua visão, tremeluzia perante sua fala, mas nada aconteceu. – Por favor, Naruto, volta para mim.
Uma única lágrima escapou, deslizando por sua tez quando seus cílios bateram ao fechar e abrir os olhos, antes de pingar no chão com a premissa de um pranto eminente. Pranto este que irrompeu no soluço sufocado que transpassou seus lábios assim que as chamas cresceram e tomaram forma, labaredas alaranjadas que revelavam um garoto de olhar magoado bem na sua frente. Tão próximo, mas tão distante.
– Você voltou... – ambas as mãos do Uchiha cobriram seus lábios na tentativa de conter os soluços que ameaçavam escapar, não podia acreditar.
– Eu nunca fui. – o tom era magoado, mas o pequeno adolescente de quatorze anos via a saudade que sentia estampada nas íris bruxuleantes do outro. Reconhecia o sentimento. – Há anos eu prometi jamais lhe abandonar, meu pequeno.
– Mas você sumiu... Eu... – as palavras se embolavam em sua garganta, não sabia o que dizer. A emoção era tanta que sua mente não conseguia acompanhar tamanha felicidade.
– Não é por que você não me via que eu não estava aqui. Lembre-se Sas, a dádiva de me ver não é concedida a todos.
Durante todo o restante da noite Sasuke passou ajoelhado diante as chamas, chorando em silêncio para não acordar os pais e nem seu irmão. E perante o olhar do fogo, narrou baixinho tudo o que vinha sentindo desde sua partida a dois invernos atrás. Desculpando-se por ter tentando abandona-lo antes, quando no auge de seus onze anos acreditava no que sua mãe dizia. Crendo que tudo não passava de uma mera ilusão criada para suprimir o tédio nos dias rigorosos de dezembro.
A partir daquele momento, lentamente, as coisas voltaram ao normal. Na manhã seguinte Mikoto encontrou Sasuke na cozinha, preparando o café da manhã. Ela, no seu luto pessoal, tomou o filho nos braços e apertou-o, garantindo ao seu coração frágil que ele estava mesmo ali. Fugaku fizera a mesma coisa, e durante todo o café Sasuke desculpou-se com os pais por todo o tormento que os fizera passar por causa de seu egoísmo. Ainda que quando questionado sobre o motivo tenha contornado o assunto. E em respeito à manhã maravilhosa que estavam tendo, o casal respeitou a vontade do filho.
Os meses então começaram a passar, rápidos e com pequenos sorrisos voltando a nascer nos lábios de todos na família. Sasuke parecia o mesmo menino de antes, e isso fazia o coração de Mikoto regozijar-se de contentamento. Em determinado ponto sua relação com Fugaku voltou a entrar nos trilhos, e não tardou para que o casal se reconciliasse. O clima amainou dentro da casa, e com a chegada do caloroso verão sorrisos e felicidade se fizeram hospedeiras no cotidiano novamente. Como se jamais houvessem partido para dar passagem aos dias nublados e enevoados que viveram.
Ninguém nem mesmo tocou no assunto após isso, preferindo esquecer o que havia acontecido e seguir apenas em frente. Entraram no consenso de que bons frutos não seriam trazidos se ficassem espiando o passado. E isso perdurou por dois anos inteiros, que unificaram mais uma vez a família. Mas Sasuke ainda era um elo fraturado, e dessa vez a nascente de sua desordem mental era ele próprio.
No inverno de seus quatorze anos foi quando sentiu pela primeira vez. Não soube como rotular, até completar quinze na primavera do ano seguinte. Não havia dito aos pais que voltara a ver a figura na lareira, o próprio fogo lhe pedira sigilo. Era mais seguro que ninguém soubesse que se encontravam toda a noite, as três em ponto da manhã. E todo esse segredo, essa sensação de estar fazendo algo que não devia, despertara dentro dele algo que nunca havia sentido até então. Porém, apenas meses depois, entendeu o que aquilo significava.
Sasuke havia se apaixonado pelo fogo.
“O amor é como fogo: para que dure é preciso alimentá-lo.” ⁴
Foram longas e calorosas noites, inquietantes e tortuosos dias de reflexão sobre os próprios sentimentos. Aonde a cada conclusão em que o pequeno Uchiha chegava, servia apenas para fazê-lo se perder ainda mais em questionamentos dos quais não possuía resposta. Como pudera se enamorar por alguém que não podia tocar? Alguém que estivera tão dolorosamente perto, ao alcance de sua mão se assim decidisse estende-la, mas que ao mesmo tempo estivera tão lamentavelmente distante? Queimando em brasas diante seus olhos, sem jamais romper o limite seguro de aproximação.
Perguntou-se muito sobre isto nos dias que se seguiram, ligeiros demais para que pudesse assimilar tudo o que acontecia ao seu redor. Para compreender o que acontecia com seu próprio corpo, já pertencente a um garoto de quinze anos que nunca parou para pensar que haveria um dia do qual se despediria de sua infância. Um dia em que ficaria mais alto que sua mãe, com mais pelos no corpo do que quando mais jovem ou em que sentiria necessidades que não se fizeram presente outrora. Todavia, emergiam de seu âmago para a rasa superfície de sua pele e se mostravam exigentes quanto aos seus clamores.
Esse dia, porém, havia chegado e junto dele um baque profundo que pôs em mérito todas suas perguntas sem respostas. Incitando a revolta de pensamentos e sentimentos conflitantes e desesperados. E mesmo assim trouxe ainda mais coisas, coisas que se tornaram uma ânsia carecida de saciação. Não houve como fugir disto, como evitar... Antes que se desse conta já estava deitado sobre a cama. Sem calças e sem o menor pudor perante o ato de dar prazer ao seu corpo. Indo e vindo, libertando em poucos minutos tudo o que vinha sufocando dentro de si mesmo. E que voltaria a inibir assim que se desfizesse chamando pelo nome dele.
A partir de então Sasuke esperava com ansiedade e euforia as noites solitárias em que dedicava-se a descobrir cada parte erógena de seu corpo. Incitando-se, estimulando-se e satisfazendo-se no silêncio de seus aposentos. Misturado ao breu do cômodo, que lhe oferecia segurança para o que fazia consigo mesmo. Submetido aos próprios desejos ainda que estes lhe trouxessem a persistente sensação de que estava cometendo uma atroz heresia. O que, consequentemente, ascendia-o mais. Como um pecador, consciente de seu pecado, fascinava-se na doce ideia de voltar a pecar.
Contudo era mais fácil quando o verão estendia-se como uma densa maça de calor, no qual podia simplesmente refugiar-se atrás de sua porta e imaginar – por míseros minutos – que eram os dedos dele traçando linhas de calor sobre seu dorso. Mas a chegada do inverno, ainda que trouxesse as chamas da lareira de volta, trazia também noites ocupadas e angustiantes frente aquele que domara seus pensamentos e reivindicara até mesmo seu coração. Noites em que cruzava as pernas com força a cada vez que ele se inclinava sobre as baixas barras de aço da lareira, sorrindo-lhe charmoso. Olhando-o como se dissesse: eu sei o seu pecado, e junto a ti guardarei para que seja apenas nosso.
A presença, que antes confortava seus temores, agora os causava também. Alimentando sua imaginação fértil para que, quando se despedisse, pudesse correr para seu quarto e deitar-se sobre a cama. Sorrateiramente deslizar uma mão para dentro das calças e agir como um adolescente transbordando hormônios. Mas havia medo. Todas às vezes em que isso acontecia a inquietante sensação de que estava sendo observado perdurava em sua mente, por mais que não houvesse sequer uma única fagulha de fogo no escuro do quarto. E noite após noite, quando se ajoelhava perante as labaredas na calada das mais frias madrugadas, se perguntava o motivo dos olhares astuciosos lançados em sua direção. Era como se ele soubesse.
Como se soubesse a forma que abria as pernas e chamava por seu nome.
Por vezes a vontade de perguntar aflorou na ponta de sua língua.
Por vezes engoliu as palavras com vergonha demais para questionar.
Ele, porem, não possuía nenhuma inibição para falar sobre e em determinado momento – talvez quando tenha enfim se cansado de bagunçar o psicológico do Uchiha com sorrisos e palavras de duplo sentido – decidiu trazer a tona o que Sasuke já sabia. Foi na madrugada do dia vinte e quatro ao dia vinte e cinco de dezembro que aquele anseio tão reprimido veio à tona como a barbatana de um tubarão emergindo do mar gélido. Trazendo consigo um temor sufocante pelo que estava por vir. Um futuro incerto cheio de novos desvios para os quais era necessário ter coragem de arriscar. Sasuke ainda não estava pronto para isso, para arriscar aquilo, mas foi inevitável.
Quando sentou-se no tapete vermelho em frente ao fogo, a sensação de que havia muito por vir assolou como uma lufada de ar frio soprando seus cabelos e açoitando sua tez. Aqueles olhos, ora dourados ora avermelhados pelas chamas, o encaravam como um coiote olharia para um rebanho de ovelhas. Pronto para atacar, mas aguardando o momento propício para ir lá e usufruir da carne macia e rosada de uma ovelhinha desavisada. Sasuke soube que a ovelha da história era ele. Mesmo que seu coração rimbombasse com velocidade, agitado e nervoso na perspectiva do que ele faria, também aguardava ansioso o bote como um bom servente a causa daquele coiote sagaz.
E foi quente.
As palavras ditas num sussurro, dando ênfase ao doce pecado ao qual se entregava, penetraram sua mente como um narcótico. Levando-o a um estado de sonolência onde seu corpo amoleceu e relaxou ali mesmo. A sensibilidade abatendo-o e fazendo-o consciente de cada parte de seu corpo; algumas clamando por atenção. Tinha razão, ele sabia. De algum modo sabia sobre o que fazia escondido dos olhos alheios. Dos julgamentos e da culpa que viriam assombra-lo depois. Ele sempre soube.
– Eu lhe disse, jamais o abandonei.
Ele esteve sempre lá. Observando sem ser notado. Ouvindo quando não emitia som algum. Instigando mesmo quando não se mexia para se aproximar.
– Deixe-me vê-lo outra vez. Deixe-me ilumina-lo enquanto fantasia comigo. Mostre para mim, Sasuke...
Havia fogo em suas veias, líquido, diluído em sua corrente sanguínea, pulsando por todo seu corpo. Bombeado nas artérias, entorno do coração. Deslizando para baixo, esquentando a virilha. Corando a pele clara, queimando todo e qualquer pensamento coerente. Queria tanto que agiu guiado pelos instintos mais primitivos do corpo humano. Sem importar-se com a baixa temperatura do inverno, o calor o ensandecia. Não deu importância para onde suas roupas foram parar. Precisava se livrar delas. Nu. Estava nu diante os olhos famintos. Sentado no tapete da sala clareado pelas labaredas alaranjadas do fogo, cada vez mais intensas. Apoiado sobre uma das mãos, as coxas separadas, exposto.
Excitado.
– Toque.
Tocou. Tocou a si mesmo. A ponta de seus dedos, gelados, roçando com suavidade sobre a própria clavícula. Deslizando como uma serpente para o peito, apertando o botão rosado e frio. Gemeu, aquilo era tão bom. Continuou, desceu mais a mão em si mesmo, raspando de leve na pele sombreada do dorso. O baixo ventre fisgando com o singelo toque. Gemeu novamente. Ele estava o observando, atento, desejoso. Predatório.
Provocou.
A mão atreveu-se a empunhar o falo rijo, quente, pulsante. Mordeu os lábios e deitou a cabaça para trás. Ousou. Para cima e para baixo, em um ritmo cadenciado. Ouviu-o suspirar, ele estava gostando. Apreciando a vista detrás das grades que os separavam, assegurando uma proteção da qual Sasuke julgava desnecessária. Mas não se prendeu a esse pensamento, divagou para longe em sua imaginação. Estava sendo tocado. Sua nuca era beijada e em seguida mordida. Ficaria uma marca. Mãos firmes e quentes apertavam seu quadril. Céus! Ambos os corpos esfregavam-se com vigor.
– Mais.
Sim, mais. Deitou as costas no tapete felpudo. A mão livre apertou a parte interna coxa de tez branca como porcelana. Foi forte, doeu e Sasuke gostou. Queria deixar a marca de seus dedos ali, queria que ele almejasse marca-lo também. Escorregou propositalmente para baixo e abriu mais as pernas. Arqueou a coluna quando o indicador roçou suavemente sobre a própria entrada. Na sua mente era o dedo dele ali. Acariciando, testando o terreno. Ameaçando entrar, forçando com cuidado a barreira de resistência de seu corpo. Mais. Enfiou fundo, de uma só vez.
O gosto de ferro tomou seu paladar quando mordeu com força o próprio lábio para não gemer alto demais. Ele, no entanto, gemeu. Quis olha-lo para saber quais eram suas feições, mas não teve força o suficiente para levantar. Ao invés disso colocou outro dedo para dentro de si mesmo.
– Deus...
– Ele não vai salvar a sua alma. Pecadores ardem no fogo, Sasuke.
Mais um dedo, estocou firme. Dilatou. Arqueou. Gemeu.
– Chame o meu nome.
– Naruto...
– Queime.
Gozou. Seu abdômen estava melado. Seu peito subia e descia rapidamente com a sensação conhecida do orgasmo. Não tinha forças para se mexer e sabia que ele ainda o observava atento. Satisfeito. Mas ele não era o único que olhava. Foi um erro virar o rosto e abrir os olhos, não queria ver a expressão no rosto dela. Como estava assustada com o que tinha presenciado.
– Mãe?
Tudo aconteceu muito rápido. Ela deu-lhe as costas e voltou pelo caminho de onde tinha vindo; Sasuke não ousou segui-la naquele momento. Estava em choque. Alguém o tinha visto. Sua mãe tinha flagrado seu ato libidinoso. Naruto não estava mais lá. As chamas na lareira se extinguiram com a rajada de vento que soprou pela sala quando Mikoto saiu às pressas. Tudo o que fez foi vestir-se novamente e correr para o próprio quarto, com medo. O que faria? Resolveria isso na manhã seguinte, ou ao menos esperava conseguir fazê-lo.
Sua mãe o estava ignorando, evitando suas tentativas de aproximação. Confusa demais para lidar com a cena do filho que perdurava por sua mente como um tormento. O clima na casa pesou. Fugaku e Itachi perceberam logo que algo não estava normal, Mikoto e Sasuke mal se olhavam. Envergonhados, perdidos, nervosos. Naruto não apareceu novamente, Sasuke nem mesmo o procurou. A semana passou, nublada e chuvosa. O Natal havia acabado e a sala já não estava mais decorada. Mãe e filho ainda não haviam conversado. Não até a virada do ano.
– Mamãe, você tem medo de mim?
Ela tinha. Medo por sua saúde mental. Seu neném, agora crescido, aprofundara um relacionamento com alguém que nunca esteve lá. Mikoto temia que isso acontecesse, Fugaku a avisara no passado, antes dos dois anos de tristeza que os assombraram. Ela realmente acreditou que Sasuke havia melhorado. Que ele não conversava mais com a criatura que surgia das chamas. Por que seu menino? Por que justo ele? Onde foi que ela errara? Como a situação chegara naquele ponto tão crítico? Seu garoto, já um homem, mesmo que tão jovem, procurava satisfação sexual com algo que não existia. Com alguém que não era real.
Onde foi que ela errou?
– Me perdoe mãe. A senhora não entende...
Ela não entendia, nunca entendeu e continuou sem entender nos anos que se seguiram. A relação que tinham jamais voltou a ser a mesma. Algo dentro de si quebrara com a aceitação de que Sasuke não era normal. Mas não permitiu que seu primogênito ou marido soubessem. Não. Seu bebe deveria ser protegido. Não sabia para onde o enviariam se descobrissem o que ele via. Precisava protegê-lo, mesmo que tivesse medo.
Em determinada parte do longo processo de aceitação, Sasuke havia desistido de fingir. Estava apaixonado e sua mãe não entendia a magnitude disto. Não se deu mais ao trabalho de fingir que não se encontrava com Naruto quando todos iam dormir. Ela já sabia mesmo. E ele o incentivou a revelar, a não esconder. Quando ele voltou o agraciou ajoelhando-se em sua frente, de costas e depois se apoiou sobre as mãos. Foi assim que se tocou para ele naquela noite. Dessa vez sabia que ninguém apareceria.
Mas quanto mais se embrenhava naquele desejo que o consumia rapidamente, menos via as ruínas erguendo-se a sua volta.
Mikoto se fechara. Sua saúde ficara frágil. Itachi já era um homem casado, que saiu de casa sem compreender o que de fato acontecia com o irmão caçula ou com a mãe. O casamento de seus pais terminou, Fugaku foi embora também. Era demais para ele suportar o peso das lamurias sofridas e incompreensíveis da esposa ou o modo como o filho mais novo se retraia em si mesmo mais uma vez. Haviam regredido, isso o estava destruindo aos poucos. Ele nunca mais voltou a pisar naquela casa.
Sasuke não se deu conta disso, já havia se passado muito tempo e agora era quase uma sombra dentro da casa vazia e fria. Muitas luas surgiram no céu, invernos e verões passaram diante de seus olhos rápido demais. Todos haviam ido embora, seguido com suas vidas. Mikoto fora a única que ficara. Olhando de longe a interação do filho com algo que só ele podia enxergar. E ele... Ele sempre estaria lá. Isso bastava. Seja como for, estava feliz.
1 – Frase de Oscar Wilde.
2 – Frase de Rabindranath Tagore.
3 – Parte da letra da música na qual essa história foi baseada.
4 – Frase de François La Rochefoucauld.
E foi isso! Esse é o resultado do primeiro desafio de escrita que eu participei aqui do Inks. Torço para que esteja a altura <3
Mas agora quero dizer uma coisinha que acho importante ressaltar. Essa não foi uma história de romancezinho fluffy. Não estou escrevendo, aqui, sobre um relacionamento saudável.
"Ah, obviamente né dona Caramelo! Deu para perceber já que um deles nem é humano."
Bom, sim, mas também não. Não estou falando sobre o Naruto ser ou não real nessa história, estou falando sobre como o Sasuke é dependente dele. Não aprofundei muito nisso, mas queria que soubessem. Real ou não, nenhum relacionamento onde exista essa dependência toda será considerado saudável. Apesar de no final o Sas deixar claro que está feliz, quero que saibam que essa é a visão dele, o que não significa que ele esteja em condições de ser levado a sério. Dá para entender?
Enfim... chega de papo deprê. Eu só quero dizer mais uma coisa. Amo vocês, é isto. <3 Beijos!
Thank you for reading!
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