Notas: Se você tem sensibilidade com temas como ESTUPRO, ESCRAVIDÃO e RACISMO, não continue a leitura. Se você não tem estômago para cenas fortes de tortura, não continue a leitura. Se você é pra militar que "mimimi, livros esquerdopatas mentiram pra você", nem abra essa história.
O intuito não é chocar ninguém e sim retratar um período(horroroso) da história do Brasil.
...
As folhas balançavam mais do que o vento poderia fazê-las balançar e logo delas surgiram pernas negras tão velozes quanto a brisa que lhe dava impulso de continuar correndo.
Por entre as lavouras de café, Karui corria do feitor que a perseguia por mais um pôr do sol.
O brilho dos poucos raios de sol refletia na pele tão negra quanto os grãos quando torrados e seus olhos tão verdes que pareciam dourados demonstravam seu pavor.
Era a mais veloz de toda a senzala e era com tal habilidade de fuga que havia conseguido um feito impressionante às demais escravas de sua idade: completar 19 primaveras sem ter sido abusada pelo capataz Mizuki.
O ruim era que não sabia se dessa vez poderia conseguir escapar.
Naquele dia havia trabalhado muito naquele mesmo cafezal, seus pés doíam pela carga excessiva de peso carregado e pensou que talvez aquilo tivesse sido algo planejado pelo homem que já ria sua vitória.
Sim, ela cometia a grande ousadia de pensar sendo escrava.
O cheiro da terra castigada pelo sol que fazia o aroma do cafezal mais forte aos poucos deu lugar ao cheiro do sereno orvalho.
O sol caiu e deu lugar à lua e ela ainda corria e ele devia admitir que estava cansado, mas nem assim iria desistir.
— Não adianta fugir, escravinha, de hoje vosmecê num me escapa! - declarou ciente de que a vitória era certa.
Karui nada respondeu, poupou as forças da fala para continuar correndo com mais fôlego, algo que já estava começando a lhe faltar.
E do que adiantaria mesmo falar algo se nem ameaçar contar tudo a sinhô Inoichi ou à sinházinha Ino?
Se Mizuki não temia nem seus patrões, imagina se temeria a palavra de uma escrava?
Só lhe restava correr.
Sentiu o cheiro da bebida que ele havia tragado e o cheiro da maldade que ele exalava e por isso temia.
Sentia sede, sentia fome e sentia frio, mas sentia muito mais medo do que essas coisas e por isso ela corria.
Já sentia fraqueza pelas horas que havia passado sem comer e não estava nem mesmo em condições de arrancar grãos do cafezal para se alimentar.
Precisou Catar os grãos rejeitados que estavam no chão e mesmo que a maioria estivesse podre e todos fossem amargos, mais amargoso seria tombar naquele momento. Pelo menos o café lhe dava mais energia para correr.
Se perguntou se sua mãe também havia corrido tanto para fugir do feitor antigo, seu “pai” que havia cometido contra Aurora a mesma violência que Mizuki desejava cometer contra si e de quem havia puxado os olhos que tanto odiava possuir.
Não era ironia do destino que a história se repetisse, na vida das escravas aquele era um ciclo que acontecia com praticamente todas. E ela nunca odiou tanto sua cor quanto naquele momento.
Em momentos como aquele, desejava ter nascido branca como sua sinhá ou viver nas terras tão resplandecentes do Congo, de onde os mais velhos diziam ter sido Reis ou figuras importantes num reino de paz até que a guerra entre os irmãos veio e trouxe também aqueles que lhes levaram até aquela terra maldita chamada Brasil.
Brasil… Não fazia a mínima ideia do que realmente significava esse nome, mas tinha impressão que vinha de brasa, a brasa do inferno que era aquela terra, a Brasa que queimava sua pele, a Brasa que ardia seus pés cansados e calejados de tanto correrem descalços na frágil tentativa de escapar do destino certo.
Ela já não aguentava mais correr e bastou que Mizuki acertasse suas pernas para que ela caísse ao chão.
Não tinha mais forças para lutar quando ele se deitou sobre si, mas ainda assim tentou livrar-se dele, em vão.
Suas pernas ainda se remexiam como se quisessem correr, mesmo que nem para isso elas tivessem forças.
Os trapos que vestia já não eram nem mais trapos quando foram rasgados para expor sua nudez assim como sua alma já estava exposta àquela dor e àquele nojo sentidos quando ele apertou seus seios e beijou seu pescoço.
— Eu disse que de hoje vosmecê num me escapava! - sussurrou e ela só conseguiu rosnar.
Teve a boca tapada para que nem isso pudesse fazer e teve uma faca posta em sua garganta para que o medo aumentasse e ela se travasse por completo.
Não sabia se era melhor deixá-lo matar seu corpo, mas sabia que, de qualquer jeito, a morte de sua alma vinha.
Podia sentir o cheiro…
A única coisa que foi capaz de fazer após isso foi chorar, principalmente de dor, quando ele conseguiu o que queria e por sorte, talvez, desmaiou e assim não viu piores imagens, o que não impediria que as lembranças lhe consumissem depois.
Acabou jogada ali no chão, tal como lixo, em meio ao cafezal, dolorida, arrombada e sangrando.
Fraca demais para chorar de novo ou se levantar e recolher, ficou ali, olhando para as estrelas, únicas testemunhas de sua humilhação.
Talvez devesse ter deixado que ele lhe matasse, doeria bem menos.
Já não sentia o cheiro do nojo e nem o da maldade, muito menos o do café, mas sentia que sua pele estava ainda mais suja desde que ele havia lhe tocado.
Sentia também que estava perfumada de ódio e que talvez aquele cheiro nunca mais deixasse a si ou às suas narinas.
Já não sabia fazer preces aos deuses de seu povo, mas sabia fazer ao Deus de seu Senhor, por isso fechou os olhos e rezou, pedindo que um anjo viesse e lhe levasse embora.
Não um anjo de carne e osso, como os príncipes das histórias que sua senhora lia para ela quando ninguém às estava olhando, mas sim o anjo da morte que lhe levaria a qualquer submundo que fosse, afinal pretos não tinham lugar no céu e qualquer inferno era melhor que aquela terra purgante na qual, assim que teve forças pra isso, cuspiu seu sangue, a saliva dele e gotas de ódio que a tornariam infértil se dependesse dela.
Foi achada pela negra Mabui que a acolheu em seus braços chorando sua dor consigo e lhe ajudando a ir até o rio para banhar seu corpo, mas mesmo dentro d’água, ela sentia que fedia à ódio.
Thank you for reading!
Poucas obras, sejam literárias ou em outras formas ou mídias conseguem retratar esse período odioso da história brasileira com exatidão, sem suavizar, sem passar pano, em um capítulo Tatu consegue de uma forma brilhante retratar a dura realidade de uma forma realista e crível, quem quiser ler uma história incrível e realista que já te faz querer mais desde o início essa é a história.
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