raven1__ Mandy Ravenclaw

Os três formam um casal e, mais atípico que um casal a três, são um casal de três rapazes. Túlio, Otto e Tadeo são fragmentos de dores e derrotas. Fragmentos de histórias paralelas que se encontram na ponta de um triângulo. Juntos são a completude.


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#lgbt #yaoi #romance #menage #drama #gay
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As fotografias que Túlio nunca mostrou a ninguém

I

Eram sete lances de escada. Sete lances de corrimãos suados que, mesmo assim, ele usava como apoio para continuar a subida. Os pés doloridos sentiam o frio dos degraus passar pela sola do sapato, chegando a batata da perna. Estava tão cansado que, no meio do caminho, desfazia o nó da gravata e ia desabotoando a camisa, livrando-se do uniforme das madrugadas, despindo-se do personagem social.

Túlio era fotógrafo. Tomava cerveja com aspirantes a empresários, artistas amadores, pais de família, enquanto negociava eventos ditos memoráveis, o que incluíam casamentos, aniversários e ensaios fotográficos. Eternizava emoções na luz da sua câmera. E o fazia tão bem...

Para, no final da madrugada, subir sete lances de escadas de um prédio úmido no meio do subúrbio.

Quando enfim na porta do apartamento 708, já tinha a camisa aberta e a gravata pendurada no pescoço. O silêncio do lugar só era quebrado pelo ruído de sua respiração cansada e quando entrou, seguiu em passos quietos pela cozinha, abrindo a geladeira e bebendo um pouco do leite direto da garrafa, afim de matar a fome. Descalçou-se no caminho para o quarto, sem ousar acender a luz, deixando a mochila com a câmera num canto próximo ao guarda-roupa, despindo-se por fim.

Na janela, o sol das cinco da manhã ultrapassava as cortinas, dando um tom avermelhado ao ambiente. Iluminava com um brilho especial o casal dormindo em sua cama. Por um tempo os olhou, sem querer incomodá-los. Os dois juntos, em todos os detalhes que se entrelaçavam, davam uma bela fotografia. Desde as pequenas marcas que Tadeo tinha na pele e a forma com que se encolhia contra o corpo do outro, dispensando as cobertas e se abrigando no calor do corpo do parceiro; até os dedos de Otto por entre os cabelos pretos do mais novo que descansava a cabeça em seu peito, as pequenas pintas de sarda que desciam por seus ombros e o breve riso nos lábios. Talvez sonhasse com alguma coisa boa.

Mas Túlio estava tão exausto. Suspirou e seguiu para a mesma cama, pesando o lado esquerdo e ficando com o travesseiro que restara, já que Tadeo preferia não usar. Por bem pouco tempo ficou olhando o teto, o calor do sol misturando-se ao calor de ambos nos lençóis. Começava a relaxar.

E, antes de pegar completamente no sono, sentiu a maciez dos cabelos de Tadeo em seu peito. Tão logo um terceiro corpo se encaixava no conjunto. Estava perfeito daquele jeito.

II

Qualquer maneira de amor vale o canto. Qualquer maneira me vale cantar!

A cantoria não era de todo ruim, mas ecoava desde o banheiro até os três cômodos da casa, chegando a varar para fora do apartamento quando Otto abriu a porta. Túlio pensou em lhe ajudar com as sacolas, mas era fazer isso e os ovos queimarem na frigideira.

— Qual o motivo da cantoria? — O outro se aproximou depois de deixar as compras a mesa, passando uma das mãos por sua cintura e beijando-lhe o pescoço.

— E Tadeo precisa de motivo? — Retribuiu ao beijo de Otto, dessa vez nos lábios, voltando-se ao ovo que estalava na gordura — Foi assim que ele resolveu me acordar hoje.

E não era nem nove da manhã.

Entraram numa discussão sobre acordarem os vizinhos e sobre bom senso, independente das leis inexistentes no prédio, sobre como portar-se ou não de forma adequada. Não precisavam se comportar como animais, mesmo que, caso o fizessem, provavelmente só estivessem igualando o comportamento ao dos demais moradores.

— E quem se importa, Túlio? O menino só está cantando. — Otto tirava os óculos fundo de garrafa, contentando-se, depois de se afastar de novo para a mesa, com a silhueta borrada do parceiro sem camisa — E logo o "despertador" do apartamento da frente começa a chorar. Hoje é domingo e tem punk rock no andar de baixo e aí temos que gritar, para nossas vozes sobressaírem a bateria. Para fechar o ciclo, de madrugada tem a puta do final do corredor.

— Não precisamos nos igualar.

— Não estamos. — Sorriu com os olhos pequenos, a olhá-lo — Só estamos sendo normais num domingo bonito.

Aparentemente o humor da maioria ali estava bem melhor que o seu. Um cantava no banheiro e outro nem se deixava abalar pelo que, em dias comuns, se tornaria uma discussão boba. Afinal, Otto devia ter razão. Era um domingo bonito. Otto sempre tinha razão, por mais que nunca fosse assumir a ele. Por um tempo mais ficou observando o parceiro colocar os pães do café da manhã na mesa. Os cachos eternamente descuidados que, naquele dia, lhe cobriam a testa ao que ele, de hora em hora, tentava se livrar. Tinha alguns graus de miopia, então precisava comprimir os olhos para enxergar algumas das coisas sem os óculos. E, quando ele ergueu os olhos questionadores para os seus, depois de tanto tempo de silêncio, Túlio voltou a respirar fundo e se virar para ovos que fritava.

— Ainda acho que é preciso bom senso. — Finalizava, sem nem pensar mais na discussão.

E, como se para encerrar o assunto, Tadeo se aproximava com os pés descalços molhando o chão, o canto calando de uma vez as vozes dos outros dois. Os cabelos estavam pingando nos ombros, mais compridos do que normalmente eram. Túlio olhou para o braço dele, mais ou menos na altura do pulso, enrolado ainda com papel filme por conta de uma tatuagem feita a pouquíssimo tempo. Um triangulo.

Qualquer maneira de amor vale a pena. Qualquer maneira de amor valerá! — E, junto da música, um sorriso comprido lhe acompanhava.

O que não durou muito. O rosto contorceu-se numa careta enjoada quando sentiu o cheiro de gordura na cozinha. Olhou para a janela. Fechada. Tirou da cintura a toalha que lhe cobria e enrolou nos cabelos molhados, caminhando em passos pesados até a janela, a qual escancarou.

— Eu acabei de lavar o cabelo e provavelmente esse cheiro de óleo impregnou aqui.

— Ninguém vai prestar atenção nisso, Tadeo. — Túlio apagava o fogo da frigideira, levando o prato com os ovos para a mesa enquanto olhava para o mais novo que andava nu pela casa.

— Eu presto atenção. — Otto terminava de esvaziar as sacolas, abraçando Tadeo pelas costas e lhe beijando o rosto, o que fora suficiente para que o sorriso retornasse.

E agora a careta pertencia a Túlio, mais uma vez, contrariado. Ainda estava cansado, dormira menos do que quatro horas e não tinha como pensar em argumentos para fazê-los entender que estavam sendo implicantes. Não os olhou por um tempo, tirando o suco da geladeira e levando-o para a mesa.

— Desfaz esse bico — Tadeo lhe segurou a mão, puxando-o para si, de modo que ficasse no meio dos dois, beijando-lhe a boca. — Você precisa compensar o tempo que ficou longe por causa do trabalho, e não pode fazer isso com essa cara!

Túlio revirou os olhos, prensando os lábios uns contra os outros, considerando que provavelmente existisse mesmo um bico ali. Porque estava estressado, mas não costumava gritar aos quatro cantos, então a expressão carrancuda deveria lhe entregar facilmente. Um segundo beijo lhe fez respirar fundo, hesitando e o terceiro veio acompanhado das mãos mais pesadas de Otto que o puxaram para perto num abraço mais apertado, o fazendo erguer o rosto para ambos enfim.

Era como se equilibrar na corda bamba enquanto eles lhe seguravam pelas mãos. A positividade de Otto, a espontaneidade de Tadeo. Registrou na mente os risos dos dois namorados, lembrando-se do porque não brigar, porque não descontar toda a frustração neles. Eram o que tinha de mais bonito, a condição para a sua existência.

III

Há três anos jogara tudo para o alto. Depois de velho, com seus vinte e três, perfurou a redoma dos pais e largou o conforto para se deparar com um mundo quebrado. Caiu na realidade de que sonhos americanos só se realizam na utópica América do Norte e, mesmo em uma das melhores universidades de São Paulo, desistiu da loucura que era se tornar cineasta. Era uma ilusão cara e incerta demais.

Ainda agarrado a sua câmera, bandeou-se para os andares mais altos de um prédio no subúrbio. Não se encaixando mais na realidade burguesa em que fora criado, juntou-se com os desgraçados do mundo. Afinal, aos poucos, ele também se tornava um desgraçado. Dormia com uma pessoa diferente a cada semana, mulheres que não fazia questão de fazer gozar, homens que não tinha orgulho de nomear sequer. Aos poucos as mulheres foram desaparecendo e a presença de rapazes em sua cama só confirmava o que já sabia desde a infância, mas não tinha coragem de admitir.

Conheceu Otto através de um dos casamentos que trabalhou, acerca de um ano ou um pouco mais. Fora a união clandestina de dois rapazes, talvez um dos casamentos mais bonitos que já havia fotografado, embora nenhuma das fotos tenha entrado para o portfólio oficial. Otto recém completara dezoito na época, cursava Licenciatura no curso de História e ainda morava com os pais. Trocaram algumas palavras, carícias, telefones, até que não conseguissem largar mais a companhia um do outro. Eram completamente diferentes e tinham como explicação para desentendimentos de ideias e ideais o clichê da atração de opostos para continuarem juntos.

Com o tempo dividiam casa, tinham um emprego e uma rotina boa. Ajudavam-se nos afazeres, dividiam contas e não se deixavam levar pelo cansaço da rotina, acabando num bar habitual da rua Augusta todo final de semana. Entre bêbados e sábios conheceram Tadeo, uma criança abusada de dezesseis anos que não teve qualquer pudor em se sentar no meio do casal. Otto achou graça, mas Túlio era moralista demais para sequer sorrir.

— O rapaz é uma graça.

— Quer ficar com ele?

— E você não?

Sabiam que qualquer brincadeira tinha seu fundo de verdade e que verdades são um convite perfeito para discussões. Não haveria traição se os dois estivessem de acordo. Não seria traição se ambos quisessem a mesma coisa. E queriam. Lá no fundo os dois lados já estavam ganhos e, antes que pudessem perceber, as discussões haviam cessado e o casal abria um espaço a mais na mesa. E no apartamento, e no quarto.

Foi Túlio quem comprou o anel, os três prateados, em tamanhos diferentes. Oficializaram o relacionamento a três numa manhã fria, acompanhados por chocolate quente e marshmallow. A mão dos três segurando uma xícara de porcelana amarela, os anéis enfiados nos dedos, os sorrisos e os olhos brilhando. Era uma imagem que só estava registrada na cabeça de Túlio e que, ali, nunca morreria.

IV

— Porque está tão estressado?

Naquele momento Tadeo dormia no emaranhado de cobertas. Os três haviam tomado café e tão logo tinham os corpos enroscados nos lençóis, mesmo que daquela vez Túlio fosse mais espectador do que ativo. Depois da pergunta de Otto, ele balançou a cabeça negativamente, fugindo do assunto, mas a expressão do outro não estava nada convencida.

— Só estou cansado... — respondeu, recostando-se na cabeceira.

— Está cansado há um tempo. Por que não tira umas férias?

— Não é isso, Otto.

Durante a semana Túlio trabalhava em casa, telefonando para clientes, editando fotografias, publicando no portfólio online. Fotografava aproximadamente dez eventos por mês, a maioria casamentos em igrejas, jardins, praias, montanhas... No entanto, todas as fotos pareciam iguais. Os mesmos sorrisos, as mesmas luzes iluminando os cabelos tipicamente iguais das mulheres, as mesmas flores.

Respirou fundo e, devagar para não acordar o menor, saiu da cama. Trouxe consigo a câmera e, depois de ligar, começou a passar com pressa as cercas de mil fotos daquele último casamento.

— Percebe? — Questionou ao namorado que manteve sua atenção na pequena tela.

— O que especificamente? — Otto comprimiu os olhos por baixo das lentes fundo de garrafa.

— Exatamente! O que tem para perceber? — Perguntou exasperado e, diante do desentendimento do outro, prosseguiu — Nada, Otto! Não tem nada aqui... É só mais uma sequência de fotos sem nada de especial!

E continuou a passar, apressado, como se procurasse uma luz entre elas.

E Otto mergulhou naquele silêncio que Túlio conhecia bem. Era aquele silêncio de quem escolhia palavras, ponderava argumentos. Mas Túlio não questionou. Sabia que não seria necessário.

— Volte algumas casas e reflita quando estiver refazendo o caminho até aqui — Orientou, roçando o nariz gelado no ombro dele.

— Isso não é um jogo de tabuleiro... — Rebateu Túlio.

— E você não é tão bobinho, pode entender uma metáfora — E lhe beijou o rosto com um riso breve.

E por um momento mais os dois permaneceram olhando as fotografias. As mesmas cores, a mesma iluminação, os mesmos sorrisos. Virão todas, até que o botão de avançar não mais avançou. Haviam acabado.

— Olha essa. Eu gosto... — O sorriso de Otto continuava ali, no tom de sua voz.

A luz daquela foto era de um pôr-do-sol bonito que entrava pela janela, a mesma janela daquele quarto. Exibia um menino sorridente, com os olhos quase fechados pela claridade, ao lado do rapaz de óculos com a cabeça deitada no ombro do mais novo. Túlio, como fotógrafo, não teve muito tempo para se arrumar depois de disparar o temporizador. Apenas parou atrás dos dois, as mãos envolvendo seus corpos e um sorriso espontâneo nos lábios, uma paixão que era quase tátil na imagem.

De todas ela era, com certeza, a mais bonita.

Feb. 26, 2018, 4:29 p.m. 0 Report Embed Follow story
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Mandy Ravenclaw O corvo que habita em mim salda a selva que habita em você.

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