beta_six Roberta Alexandre Lima

Crônica. Incrível como um acontecimento simples em nossa vida pode nos fazer refletir sobre os problemas das outras pessoas.


Short Story All public.

#oneshot #cronica #vida #conto
Short tale
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Único

Este era um daqueles momentos em que a gente sente uma sensação estranha, como quando estamos dormindo e sentimos alguém nos olhando. É uma sensação de inquietação e que é, levemente, perturbadora. Como se estivéssemos num quarto escuro e soubéssemos, lá no fundo, que não estamos sozinhos.

Era exatamente isso que eu estava sentindo, enquanto voltava à noite do trabalho nafirma — o que era muito aborrecido, pois eu já estava extrapolando meu limite de horas semanais e, mesmo assim, meu chefe exigia que eu terminasse o relatório. E a viela, pela qual eu tomava atalho para casa todos os dias, não ajudava muito a minha tentativa de me acalmar. Já deviam ser umas 11 horas e nem todos os postes estavam iluminando corretamente aquele trecho, muitas lâmpadas estavam queimadas e algumas piscavam freneticamente, o que seria engraçado se não me deixasse assustado às vezes. A prefeitura precisava trocar aquela iluminação com urgência.

Talvez fosse pelo horário, que é conveniente a assaltos, ou talvez fosse porque li um ou outro conto de terror aquela tarde, ou ainda pelo fato de que algumas pessoas pensam que são melhores por terem uma cor de pele diferente — aquela não seria a primeira vez que diriam algumas coisas inconvenientes para mim, enquanto eu voltava do trabalho. Ou, quem sabe, tudo estivesse interligado e fosse um medo só. Acho que não importava muito.

Enquanto eu virava uma esquina arrisquei-me e olhei por cima do ombro, para eliminar suspeitas. Foi quando o vi. Um sujeito com um chapéu e um sobretudo, andando com passo apressado atrás de mim. A luz da lua crescente não era suficiente para que eu pudesse ter visto seu rosto, mas se tivesse visto acredito que ficaria mais assustado. Ele parecia, de um jeito estranho, com uma sombra viva, com os contornos indefinidos e olhos sombrios e vazios. Tá bem, acho que isso foi um exagero da minha imaginação.

Ainda assim, apertei o passo e tentei me concentrar em qualquer outra coisa que desviasse meus pensamentos frenéticos daquele homem. Não posso dizer que as tentativas foram muito produtivas. A cada passo que eu dava sentia seu olhar perfurando minhas costas e seus passos ecoando em meus ouvidos, comecei a cogitar se não o conhecia de algum lugar, se não o cumprimentava a caminho do trabalho em meio à bocejos, se não era um dos vendedores na feira que frequentava aos domingos, ou qualquer um que curtisse Cazuza em um clube aleatório da Internet. Era uma tentativa falha de me enganar.

Foi em meio a esses pensamentos que percebi que meu estranho companheiro chegara próximo demais a mim, a ponto de que eu sentia que a qualquer momento poderia tocar meu braço e dizer algo como: "Não se preocupe, sua morte não será dolorosa". Mas de repente ele parou, em frente a uma farmácia na esquina, aberta 24 horas.

Não pude conter minha curiosidade. Fingi continuar meu caminho e me escondi na rua atrás da farmácia, agora eu abençoava o escuro. Ele não poderia me ver mais eu o ouviria, ele tinha acabado de chamar o funcionário.


— Sinto muito, Antônio, eu não posso entregar o remédio a menos que você tenha a receita.Já lhe falei isso antes.


— Eu sei, Marcos, mas… — o homem que me perseguia soltou um soluço angustiado — Eu não tenho condições de pagar uma consulta com o médico da cidade, e você sabe o quão têm sido difícil pra eu conseguir um emprego. Minha filha está muito doente e precisa desse remédio. Por favor, Marcos, eu imploro.


— Sim, eu sei. E já pesquisei em tudo que é canto um modo de te dar o remédio sem precisar da receita, mas, infelizmente, não dá! Eu, de verdade, sinto muito. Melhoras pra sua filha. — O funcionário fechou a porta na cara do homem


Um jeito muito significativo de se encerrar uma conversa séria. Ouvi meu estranho (ou Antônio agora) se afastar lentamente da porta da farmácia, não mais com os passos ligeiros de antes, mas agora com passos vagarosos, tristes. Abandonei meu posto de espião e continuei meu caminho até minha casa, com milhares de pensamentos distintos e gritantes em meu cérebro, e em meu coração uma mistura de sentimentos indecifráveis. Não sei ao certo o que senti depois de tudo aquilo, nem o que era certo sentir, mas lembro de ter chegado em casa tomado um bom banho e mandado mensagem para o meu chefe.

O relatório ainda não havia sido finalizado, mas o que eu iria mesmo fazer era perguntar sobre as vagas de segurança do prédio, já que eu tinha ouvido falar que iriam fazer entrevistas e, bem, eu conhecia o farmacêutico. E ele provavelmente conhecia o homem que andava atrás de mim.


Jan. 7, 2023, 3:36 p.m. 3 Report Embed Follow story
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The End

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Roberta Alexandre Lima Escrever é gritar no silêncio. Eu grito.

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Conta Suspensa Conta Suspensa
Eu adorei. Crônica magnífica, veio uma onda de sentimentos enquanto eu lia kk. Fez a jus ao gênero, viu🌻
January 07, 2023, 19:12

  • Roberta Alexandre Lima Roberta Alexandre Lima
    Aí valeu, ela quase foi pra final do concurso em que eu a inscrevi ❤️ January 08, 2023, 17:36
  • Conta Suspensa Conta Suspensa
    Tá vendo só? Não sou a única que achou ótima ^^ January 09, 2023, 17:48
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