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O encontro

Era quase madrugada quando cheguei a pousada, me banhei e fui para cama, iríamos sair depois do café naquele dia, e eu ia conduzir a carruagem dessa vez, meu padrinho, como imaginei estava bem cansado na viagem e o certo era mesmo preservar os dois, todo encantamento de Kassandra, a festa e as brincadeiras me distraiam um pouco da preocupação com mainha e cai no sono, dormi feito uma pedra e na manhã seguinte só acordei com minha madrinha batendo na porta, o sol já ia alto, perdemos todos a hora mas dava sim para aproveitar quase que um dia inteiro de marcha, chegaríamos de noitinha em casa, valia o esforço. Meu padrinho com relutância aceitou ir com a madrinha na boleia da carruagem, tranquilizei ele lembrando que também conhecia aqueles caminhos e se me cansasse  escolheria um canto junto a estrada e prosseguiriamos no dia seguinte.  


A viagem transcorreu sem problemas exceto pelo sol quente demais, fazia tempo que passava tantas horas tão exposto, chegamos já tinha passado a hora do anjo mas meu coração se aquietou quando cruzei o portão de casa e vi minha mãe lá longe mexendo nas plantas dela. Quase que dei um grito, queria me anunciar mas ela levantou a cabeça bem quando chegamos na metade do caminho pra casa, parei a carruagem debaixo do pé de castanhola e desci, padrinho já tinha juntado as bagagens mas primeiro ajudou madrinha descer, mainha veio a nosso encontro, pareceu muito apreensiva ao me abraçar e cumprimentar meus padrinhos. 


- Comadre, compadre boa noite, deixem essas coisas ai e vamos entrar pois já está meio tarde pra ficar por aqui. 

- Comadre deixe de vexame que a gente precisa levar as  coisas pra dentro mulher de deus, agonia danada..

- Meu filho, deus te abençoe, eu não disse na carta que não precisava vir, tudo estava como antes no Natal. 

- Mainha, com todo respeito, a senhora tá mais agoniada que gata pra dar cria, aconteceu alguma coisa, a senhora está bem mesmo, e painho, Roberto cadê os dois? 

- Eles foram na cidade comprar umas coisas acho que já estão perto de chegar, saíram depois de meio dia, já que vocês vão insistir em carregar isso tudo vamos logo.   Ela ajudou a ajeitar e distribuir o peso e pacotes entre nós 4, fechou a carruagem e desatrelou os animais, deixando eles soltos. 

- Quando seu pai chegar peço a ele pra dar água e levar lá pra baia, não é bom deixar eles dormirem ao relento, pelo menos não por agora. 

Madrinha me olhou com uma cara meio desconfiada, meio assustada mas não falou nada só concordou com a cabeça e continuamos a andar, faltava uns 300 metros pra chegar na casa e fomos quietos acompanhando o passo apressado dela.  


No alpendre as redes continuavam a balançar, o vento passeando pelas árvores e a lua que ia subindo quase cheia no céu, minha terra era minha, e era bonita demais. Depositamos as coisas na dispensa que já estava cheia, agora ficara abarrotada de coisas mas a arrumação ficaria para amanhã, a janta que só era para 3 teve que ser dividida para os 6, mainha não deixou madrinha ajudar cozinhar e mandou os dois com as malas pro quarto e tomar um banho, ninguém ia jantar ou dormir sujo ali, eu tomei banho no muro mesmo igual quando estava sem paciência pra esperar por eles, enquanto vinham mainha me mandou descascar umas laranjas cortar, cortar uns pães colocar leite no fogo pra esquentar e ir assando umas fatias de queijo. 

O cheiro invadiu a cozinha quando vi que tinha manga rosa aproveitei pra cortar umas 2 pra mim e arrumamos a mesa, quando eles chegaram comeram e aproveitaram as frutas, queijo e leite quente e começaram a conversar, acho que depois de comer o cansaço do sol bateu e cochilei na mesa mesmo, depois de umas pescadas mainha mandou eu ir pra cama mas não sem antes me dizer que amanhã conversava direito comigo. Meus padrinhos ficaram com ela na sala, conversando e esperando meu pai, pedi a bença e fui pro meu quarto, separei minha roupa de dormir, guardei a mala, algumas roupas e o punhal e cai no sono, nem sei se rezei mas naquela noite mesmo eu ouvi, no meio da madrugada, com uma ou outra vela só acesas na casa inteira eu ouvi lá fora uma tropelada, uma correria como se algo muito grande e pesado estivesse rondando a casa, nem me levantei mas quando o barulho se aproximou um pouco mais da minha janela me arrepiei dos pés a cabeça, e então aquilo se afastou e longe, bem mais longe ouvi um grunhido e um grito tão altos e animalescos que por um minuto ou mais sapos e grilos pararam de cantar, o silêncio ecoando aquele berro foi estranho demais para simplesmente ignorar e voltar a dormir. Passei um tempo me revirando na cama, até criar coragem e levantar, devagar fui em direção a porta e com cautela abri, passei pelo corredor, ninguém, nada, as velas no nicho da santa estavam  menos da metade fui na sala e lá estava Roberto com uma espingarda no colo, uma garrucha e um facão, me assustei a princípio mas ele parecia não ter me ouvido estava concentrado olhando as portas. 


- Irmão, tá fazendo o que com essas coisas, ao me ouvir ele virou pra trás branco feito um pedaço de papel mas ao me ver sorriu. 

- Grandão, é você? Mainha nem me disse que tinha vindo também

-  Pois tô aqui. 

Roberto era uns 10 anos mais novo que eu mas puxou a papai também, era alto e corpulento, quando me abraçou senti suas mãos meio frias mas era meu irmãozinho, ainda, me soltou e mandou me sentar ali na frente e esperar, voltou com uma vela nova e bem grande e colocou na mesinha junto a garrucha e facão, o brilho da vela me fez ver suas feições, parecia cansado, abatido e um pouco fora do seu normal, o olhar carregava algo estranho e terrível. 


- Você ouviu, não ouviu? 

Fui tirado da minha contemplação por aquela pergunta, respondi com um aceno e esperei ele falar. 


- É o seguinte, tem uns 2 meses que estão acontecendo umas coisas estranhas na cidade, crianças sumindo e aparecendo mortas, gente morrendo de susto e estripada, uma doidice sem tamanho e ninguém sabe o que ou quem fez isso, só escutamos esses barulhos infernais e encontramos os corpos depois, mas na última lua cheia eu fiquei ali no pé de castanhola, em cima bem escondido nas folhagens e vi, o que vi irmão não era desse mundo, eu juro, juro pelo que você quiser, painho estava aqui onde eu tô na hora mas ele não viu, só ouviu o uivo ou grito não sei o que é aquilo. 

- O que você viu? 

- Eu tenho medo de estar doido ou coisa parecida, mas por favor não zombe de mim. 

- Não vou zombar homem, conta logo. 

- Um bicho com um corpo estranho, que lembrava o de um homem mas muito grande, forte mesmo, patas compridas, garras longas e negras, olhos vermelhos, pêlos escuros pelo corpo todo e um focinho de cachorro mas não um cachorro normal dentes grandes saindo pra fora da boca, um fedor desgraçado de enxofre e algo molhado, sujo todo cheio de folha, terra, a boca suja de sangue pedaços de carne espalhados pelo torso, aquilo veio de quatro pés mas quando chegou perto da castanhola parou, cheirou o ar e perante a luz divina, levantou ficou de 2 pés como eu e você, andou em volta da árvore, olhou pra cima e deu outro berro, arranhou o pé de pau tentou sacudir, bater nele com o corpo mas não conseguiu me derrubar, eu só me segurei firme pra não cair e virar lanche de desgraça, as orelhas  grandes e pontudas se mexiam como se ele soubesse mesmo que eu estava lá, eu não consegui mirar e atirar, não consegui, depois de ver aqueles olhos esquisitos um gelo desceu por meu corpo todo e não consegui fazer nada a não ser me segurar ali.  O troço passou um tempo lá e só quando o galo cantou ele saiu, caiu de quatro de novo e correu, uma carreira, uma coisa tão sem cabimento que de verdade parecia que eu estava era num pesadelo e não pendurado ali em cima. 


- Quero que o senhor entenda que meu irmão não era de mentir, de contar lorotas, sempre foi um sujeito sério, até demais pra idade, muito tímido mas com um coração bom, sossegado mesmo, eu já tinha visto pelo menos uma centena de mentirosos, criminosos de cara lavada diante do juiz, se cobriam da presunção de inocência e tentavam convencer as autoridades que suas escolhas e atitudes eram baseados em arroubos, enganos, momentos de fragilidade, defesa da honra quase nunca dava certo, mas quando dava me subia um fogo de raiva que não cabia em mim e não sossegava até que se cumprisse a lei.  Fiquei perplexo ao ouvir aquilo mas não exprimi meu sentimento, percebi que aquele encontro tinha mexido com meu irmão, tinha o modificado de alguma forma e a julgar pelo que ele descreveu eu não sei se comigo seria diferente.  



- Então seu irmão foi o primeiro a encontrar com

 a tal criatura e escapar vivo? 

- Ao que me consta sim. 

- E as mortes na cidade, como o senhor soube por ele conhecia alguma das vítimas, conseguiu algum tipo de registro ou verificação oficial depois, se eu procurasse hoje essas evidências conseguiria sem nenhum problema? 

- Os registros oficiais assim como cópias das certidões de óbito ficam no cartório da cidade, na delegacia, nos obituários públicos mas não foi só gente de posses que morreu, foram pobres, foi o padre que inventou de exorcisar, tirar a besta da criatura e tomou uma lapada que arrancou metade da garganta quem viu também morreu, esses de susto, medo mesmo, pavor.  

- O senhor consegue lembrar o nome do padre? 

- Alberto Pereira de Goes, cheguei a frequentar muitas missas com ele mas era famoso na cidade, fazia bons sermões e corre a boca miúda que gostava de pregações particulares em casas de viúvas, homens solteiros e uma ou outra mulher da vida foi pega saindo da sacristia meio tarde da noite. 



- Mas como isso nunca chegou nos ouvidos da Diocese? - Lógico que chegou, e você acha que ele saiu de Aracajú pra lá naquele fim de mundo porquê, deve ter aprontando das suas também, segundo minha mãe e outras pessoas que frequentavam a casa o padre era mesmo bom de lábia, exercia seu sacerdócio com uma certa presteza aos pobres, enfermos, ao organizar as festinhas da padroeira e outras distribuia os ganhos aos mais necessitados, comprava roupas e brinquedos pra criancinhas e pagava o leite, o pão de algumas famílias que sabia não ter condições, cobrava dos poderosos caridade e bom comportamento mas quando via uma viúva aprumada ou um rapaz bem apessoado na paróquia se tomava de zelos fácil.   

As carolas ficavam enciumadas e o padre metido a galã não passou 5 anos direito na cidade. 

- Parece que ele passou foi outra coisa. 

- Quê isso, jamais diria algo assim de um verdadeiro representante de deus no meio dos pecadores que somos todos nós. 


Dizendo isso o doutor deu uma gargalhada alta e sonora que fez as pessoas de umas 3 mesas prestarem atenção na nossa conversa, percebendo a heresia bateu na boca e se benzeu quase sem conseguir conter o sorriso. 







Oct. 24, 2022, 2:14 p.m. 0 Report Embed Follow story
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Meet the author

Siph Ferreira Nerd de maquiagem, amante de música, livros e quadrinhos, amiga de Meia Noite e Qliph, viciada em podcast e buscando seu rumo nesse mundo.

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