silva-pacheco1589114879 Silva Pacheco

Parecia mais um conto do vigário. Uma fantasia adocicada de ricaços de meia idade, pegos em situações constrangedoras. E de belos jovens que notavam, tarde demais, não serem tão espertos quanto se achavam. Todos achavam que a tal Colombina era só uma lenda urbana. Um mito boêmio. Até que um bilhete de próprio punho da ladra foi enviado para a mais pitoresca das delegacias da cidade...


Short Story Not for children under 13.

#crime #policial #mistério #investigação #vilã
Short tale
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Um Bilhete de Colombina

Rio de Janeiro, 1949


Todos achavam que a tal Colombina era só uma lenda urbana. Mais um mito boêmio. Até que um bilhete, escrito pela própria ladra, foi enviado para a mais pitoresca das delegacias da cidade...


A descrição parecia tirada de um conto do vigário. Uma fantasia adocicada, de ricaços de meia idade que eram pegos em situações constrangedoras. E também de belos jovens que notavam, tarde demais, não serem tão espertos quanto se achavam.


A coisa toda ficou mais confusa quando o golpe deixou de envolver somente carteiras batidas em bailes, e passou a se dar em residências. Era como se a donzela soubesse exatamente o horários dos empregados, e a localização de cada item de cada casa.


Conectar aquela série de relatos de estelionato ou furto com uma lenda urbana era, sem dúvida alguma, opção constrangedora para a Delegacia de Roubos e Furtos. Até porque, as próprias queixas das vítimas, quando oficiais, evitavam falar na tal Colombina. Eram boatos de gafieiras, nada de evidências oficiais.


Por isto, o caso foi enviado para a unidade policial responsável por lidar justamente com ilusões e fantasias: a Delegacia de Jogos e Diversões - DJD.


Oficialmente, a Delegacia se chamava Delegacia de Costumes, Tóxicos e Mistificações – DTM. Mas quem ligava pra isso? Convencionou-se tanto entre policiais quanto jornalistas, boêmios e criminosos, referirem-se a ela como Jogos e Diversões, devido à antiga delegacia que cuidava dos mesmos assuntos. Um departamento policial responsável por regular jogos, garantir a "decência" dos espetáculos artísticos, impedir a promiscuidade do meretrício, desmascarar mistificadores ou falsários e reprimir o jogo ilegal.


Foi para lá que mandaram o “Dossiê Colombina”. Apesar do nome pomposo, o tal Dossiê não era mais que um conjunto de recortes de jornais, de testemunhos avulsos e de anotações, tudo sobre uma moça alta, de cabelos castanhos e sorriso envolvente, fantasiada de Colombina.


Os investigadores da DJD, que não gostaram nem um pouco de custodiar aquela documentação, empurraram a papelada para o bom e velho Jacó.


Jacó era o detetive mais velho da DJD. Entrara lá de favor. Era o primo pobre de um juiz que lhe arrumara emprego na polícia. Nem brilhante, nem bem relacionado, dele encarregavam os trabalhos chatos de gerenciar: dossiês, organização de fotos, recortes de jornais e assinaturas. O chamavam jocosamente de “Carimbador”.


Ele, por sua vez, se resignava à sua insignificância. Faltava tão pouco para se aposentar...


Por isso, a Delegacia toda ficou estupefata quando lá chegou o bilhete mais inesperado de todos os tempos, endereçado ao velho investigador.


Um bilhete assinado por ninguém menos que a Colombina!


...


E foi o velho Jacó, levando o bilhete no bolso. “Lá, vai encontrar a ‘gaita’ roubada de seu Pantaleão”, dizia o pequeno papel, logo abaixo do endereço no bairro do Estácio.


- Ô Carimbador, Isso aí é trote! - dizia um dos guardas, que iam com Jacó. O outro guarda, ria de se acabar com o chiste.


O local era uma cabeça de porco semiabandonada de dois andares. Na rua, os ambulantes, lavadeiras e malandros trataram de receber, com olhares desconfiados, a dupla fardada que seguia o velho careca de terno.


- O que querem esses ‘meganha’? - murmuravam os moradores.


- Vocês sobem e dão a batida – ordenou Jacó.


- E tu? - retrucou um dos guardas.


- Espero aqui.


Os dois guardas subiram as escadas de madeira, pela entrada lateral do degenerado prédio colonial. Ouvia-se da rua as batidas que eles deram na porta. Instantes depois, um pardo de calça e sem camisa abria as janelas de madeira, descendo agilmente da varanda e saltando para a calçada.


- Parado ai, malandragem! - disse Jacó, apontando o revólver ao rapaz, tão logo ele pousou perto do meio fio.


O meliante, mancebo bonito de bigode fino erguia as mãos, quando lá de cima um dos guardas chamou.


- Ai “Do Carimbo”, vai querer ver o que “achamo” aqui.


O outro guarda desceu, algemando o malandro. E subiu com seu prisioneiro logo atrás de Jacó, que adentrou ao cômodo de paredes descascadas. Lá dentro, sobre uma cama de lençóis encardidos, estava um saco de pano que transbordava dinheiro.


- Explica isso aí, garoto! - ordenou o velho detetive.


- Minhas economias, doutor.


- E quem te ajudou a economizar uma gaita dessas? Uma Colombina?


Os olhos arregalados do sujeito confirmaram a suspeita de Jacó: - Leva pra Delegacia – ordenou o investigador.


A Sala de Interrogatórios da DJD era singelamente macabra. Escura e com paredes infiltradas, lá também se guardava figurinos, instrumentos musicais e apetrechos artísticos. Tudo entulhado em torno de uma mesa e uma cadeira, iluminadas pela melancólica lâmpada de luz amarelada.


O jovem ladrão esperava lá dentro. Estava de frente para Jacó, sentado junto a mesa. Até que a porta se abriu, e o meliante viu um homem alto, de bigode fino aparado em barbearia, cujos músculos se percebia pelo blusão florido que vestia.


- É esse o vagabundo? - perguntou o investigador Nogueira, o que acabara de entrar. E bastou o primeiro sopapo com sua enorme e grossa mão para o garoto abrir o bico:


- Tá, tá, calma, calma – dizia o garoto, cuja ficha, trazida por Jacó, revelava ter apenas 19 anos e três passagens por furtos e roubos. Encolhido na cadeira e com as mãos levantadas, ele jurava: - eu falo, eu falo.


- Dá o papo da Colombina – ordenou Jacó.


- Ela que me entregou? - perguntou o ladrão.


- AQUI VOCÊ SÓ RESPONDE! - disse Nogueira, dando outro tapa no prisioneiro, deixando-o momentaneamente surdo no ouvido atingido.


- TÁ BOM, TÁ BOM...eu...eu conheci ela na Pista Xadrez. Dançou comigo, tomamos uma cerveja…


- COMO ERA A VADIA?


- Um pitéu, doutor. Cabelos castanhos, pernas longas. Usava o cabelo purpurinado, penteado de lado, por cima do ombro... rostinho de porcelana por trás da máscara... chegou fazendo carinho, dizendo que eu era bonito. E que tinha um esquema pra gente numa casa.


- Que esquema?


- Eu não sei, ela chegou com tudo pronto. Mapa da casa, horários, como fazer para burlar a segurança. É sempre assim, já tinha ouvido falar de outros caras que trabalharam com ela.


- “Sempre”?


- É...ela aborda alguém, beija, dança, e joga o lance.


- E o que ela ganha com isso?


- 30%…


- E você tentou dar uma volta na parte dela, né?


- Eu...eu…


- Por isso ela te caguetou, não foi?


E a ficha, que já tinha caído tanto para Jacó quanto para Nogueira, finalmente caiu também para o garoto.



- Bem, agora é só avisar a DRF e notificar o tal Pantaleão para ele ir lá e pegar a gaita – dizia Nogueira batendo as palmas das mãos como se estivesse limpando-as.


- Ainda não – disse Jacó – quero falar com o Pantaleão.


- Porra “Do Carimbo”! Falar o que? O caso tá encerrado.


Jacó meneou a cabeça.


- Não...é muita grana, e o tal Pantaleão não é nenhum ricaço. Além disso, ele pode dar mais alguma pista sobre a tal Colombina.


- Fala sério, “carimba”. O cara nem prestou queixa!


Jacó vestia a jaqueta enquanto caminhava entre as mesas do saguão da DJD.


- Mais uma razão para falar com ele – disse ele, enquanto se dirigia para a garagem.



O homem roçava o grosso bigode na nuca delicada da empregada. Apertava-lhe o seio e, colocando seu corpo contra as nádegas dela, quase a impedia, pelo contato físico e pela repulsa, de lavar a louça.


- Seu Pantaleão, olha a campainha, dona Regina pode ter chegado – ela avisou, tentando conter a expressão de nojo por meio de seu nariz torcido.


A porta da cozinha foi logo aberta. Mas não era Regina, esposa de Pantaleão. Era Felícia, sua governanta:


- Seu Pantaleão, há um investigador de polícia desejando falar com o senhor. É sobre o roubo.


O homem coçou a cabeça.


- O que a polícia quer? Não prestei queixa!


- Por isso julguei que o senhor iria querer recebê-lo.


Murmurando, Pantaleão se retirou da cozinha.


- Aurora, você brinca com fogo se engraçado para seu Pantaleão! – avisou Felícia.


- Dona Felícia, é ele...eu nada faço...sempre tento fugir de suas investidas, e agora fui salva pelo gongo...ou pela campainha.


- Que seja! Mudando de assunto...anotaste os recados enquanto estive fora pela manhã?


- Sim senhora.


Felícia e Aurora falavam-se na cozinha, quando Pantaleão encontrou Jacó. O detetive esperava-o na sala, mobiliada e arejada, olhando concentradamente o caderno ao lado do telefone.


- Pois não?


- Bom dia Sr. Pantaleão. Eu sou o Investigador Jacó, da Delegacia de Jogos e Diversões.


- No que posso ajudá-lo?


- Vim aqui para dar uma boa notícia ao senhor: encontramos a soma de dinheiro que foi roubada de sua residência.


Os olhos de Pantaleão se abriram, seguidos por um suspiro.


- Bom...bom! Muito bom.


- Apesar do senhor não ter prestado queixa…


- Com toda sinceridade, não achei que a polícia conseguiria recuperar a quantia nestes tempos tão caóticos…


- Mas, felizmente, conseguimos...e sabemos quem foram os autores.


Pantaleão abriu um sorriso no lugar da respiração tensa de até então.


- Ah, isso é melhor ainda. E quem foi?


- Um ladrãozinho do Estácio. Este já está detido. Mas o fez em conluio com uma ladra famosa da boemia, chamada Colombina.


O olhar estreito e confuso de Pantaleão foi observado nos mínimos detalhes pelo exame de Jacó. Ainda que aquele mesmo olhar não fizesse sentido para o velho detetive:


- Sabe alguma coisa sobre ela? - perguntou ele.


- Investigador, jamais ouvi falar desta sujeita.


Jacó cerrou os lábios antes de fazer mais um pedido:


- Pode me chamar sua governanta, por favor?


Pantaleão olhava o policial meio de lado. Mas, obedeceu.


- Felícia! - chamou o patrão.


Não tardou, e a severa mulher chegou:


- No que posso ajudar?


- Onde a senhora esteve pela manhã? - perguntou Jacó.


- Fiz compras para a casa e para a empresa de Bufê de Dona Regina, esposa do Sr. Pantaleão.


Jacó balançou a cabeça positivamente. Ao mesmo tempo, Aurora entrou, trazendo uma bandeja com café, açúcar e torradas.


- A senhorita, quem é?


- Aurora, a empregada – respondeu Felícia.


E ela atende os telefonemas?


- Apenas quando não estou.


Pantelão interrompeu bufando:


- Mais alguma coisa, investigador?


- Não – respondeu Jacó – Obrigado pela cooperação.



Jacó voltou à DJD. “Ô Carimbador, e o caso do Pantaleão?” perguntavam os demais investigadores.


Ele nem respondeu: correu para sua sala, onde ficavam os arquivos. Abriu uma das gavetas, e de lá tirou os jornais velhos que guardava. Mas, ao contrário das páginas policiais, foram as colunas de High Society que ele folheou. Mais especificamente, as casas onde a equipe de Bufê de D. Regina, cujo cartão trouxe consigo no bolso, serviu seus quitutes...


Folheou, marcou, circulou, anotou. Estava lá. Tudo lá…


- Como é que é “Do Carimbo”? - perguntou Nogueira, invadindo a sala sem cerimônia – o tal Pantaleão tinha alguma pista da Colombina?


- Não – Jacó respondeu, se levantando da cadeira e se retirando da sala – mas, se eu não fosse lá, não teria descoberto quem ela é.


- D-descoberto? - Nogueira seguia o velho detetive por entre as mesas do saguão principal da DJD – espera aí, como assim, descobriu?


- Se quiser vir comigo, vai ver. E posso precisar de ajuda.


...


Era noite. Já fazia quase 6 horas de campana, mas Jacó não arredou o pé daquela esquina. Repetidas vezes tinha lido, e fingido ler, o jornal que trouxera consigo. E, quando finalmente a moça saiu da casa, gesticulou aos céus com as mãos.


- Até que fim! - disse ele.


Seu alvo desceu a arborizada rua do Grajaú, levando consigo uma sacola. Mal chegou na Praça Edmundo Rego, já havia encontrado um táxi. Lá, Nogueira esperava, também com um jornal na mão, e saltou do banco da praça assim que viu Jacó.


- Siga aquele carro – ordenou o velho detetive a um outro taxista, assim que Nogueira o alcançou.


E lá foi o automóvel, pelas ruas do Rio, até chegarem à Gafieira de Neon, em São Cristóvão.


A jovem mulher desceu do táxi, sob o olhar atento de Jacó. Subiu na gafieira, usando o uniforme que decerto iria trocar.


- Se esconde que vou levar aquela garota até o beco ali do lado – orientou Jacó.


Para quem esperou tantas horas, a nova espera foi até fácil. Ele então adentrou na gafieira, parando em meio à chuva de confete e serpentina do baile que ali rolada.


Lá estava ela. A descrição batia perfeitamente: Vestido roxo xadrez, de cintura alta e babado, pernas longas, salto brilhoso, cabelos castanhos de lado, máscara no rosto. Bebericava uma limonada, junto ao balcão.


O Carimbador atravessou o salão sem cerimônias, tomando sutilmente pelo braço a jovem Aurora, empregada do sr. Pantaleão.


- Me acompanhe, senhorita…

- Já aviso ao senhor que não sou esse tipo de senhorita - disse Aurora, fantasiada de Colombina, no beco ao lado da gafieira.


- Não – respondeu Jacó – você é o tipo de senhorita que trabalha para a esposa de um contador, dona de um Bufê. Que aproveita sua condição de serviçal para analisar detalhadamente as casas onde se realizam as festas, e traçar planos de roubo. Que espera passar alguns meses para que a polícia não ligue o roubo ao Bufê. E que seduz jovens ladrões para propor-lhes o roubo, pedindo 30%.


- Impressionante! Uau! Sério...sério mesmo... como descobriu?


- Sua letra no caderninho de recados de seu patrão. Era a mesma letra do bilhete que mandou para a DJD. Dali, foi só comparar os endereços roubados com os lugares onde sua patroa fez Bufês.


A Colombina abriu os lábios como se dissesse “Ah!”, sem emitir som. – E agora, tio? O senhor vai me prender?


- Na verdade eu…


Jacó não terminou a frase. Nogueira chegou por trás da Colombina, tomando-a ferozmente pelo braço – Perdeu, garota! – disse ele.


- Ai, que assim me machucas – ela retrucou, se virando dengosamente para o investigador e pondo a mão na cintura dele.


- Er...desculpe.


Ela então atingiu a canela de Nogueira com o salto do sapato, arreando-o ao chão. Antes, já segurava o revólver, que tomara da cintura dele, quando lá pôs sua mão. Antes de Nogueira cair, a mulher puxara a arma, e com ela acertou uma coronhada na cabeça do investigador, desmaiando-o ao chão.


- Perdão...o senhor dizia? - perguntou ela, apontando o revólver para Jacó.


- Na verdade, eu iria lhe perguntar: por que denunciou seu parceiro?


- O senhor é bem mais simpático que o bonitão caído aqui atrás...mas por que eu deveria me abrir com vossa senhoria?


- Por que você me mandou um bilhete. Lembra?


- Ponto para o senhor.


- Então?


- E então? - Ela finalmente sorriu, um sorriso que chegava a apertar seus singelos olhos castanhos – e então que o senhor, tão arguto detetive, não percebeu que aquela gaita toda não pode pertencer a um simples contador, casado com a dona de um Bufê? Que sequer deu queixa ao ser roubado?


Jacó estreitou os olhos.


- Então, você queria que eu chegasse a Pantaleão?


- Se me descobriu com tanta facilidade, por que não pescou isso antes?


Jacó riu.


- Não vi a assinatura dele...só a sua…



- Cacetada, aquela rameira me atingiu em cheio! - murmurou Nogueira, enquanto Jacó o ajudava a se levantar – por falar nisso, cadê ela? - questionou, olhando em redor.


- Fugiu.


- Como assim fugiu, porra! Você não fez nada?


- Ela arreou você, o investigador mais brucutu da DJD...eu ia fazer o que?


- Tá certo, tá certo...e agora?


- Agora é pegar o Pantaleão.


- Ela entregou o Pantaleão?


- Sim. Aquela gaita toda é fruto de desvios que ele faz como contador. É só seguir o livro caixa dele.


- E por que ela queria entregar o cara?


- Fora o fato de que é um canalha, ele também abusava dela.


- Como assim?


- Ela que disse…


- Ok...então ficamos sem a Colombina, mas com o Pantaleão?


- É o que parece.


- Então...vamos lá né?


- Vamos…


E lá foram Nogueira e o Carimbador, este contendo o sorriso no rosto e pensando no trato que fez com a bela moça.


Pelo menos, até ele se aposentar...

April 24, 2022, 12:58 a.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

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Silva Pacheco Sou um historiador e cientista das religiões apaixonado pelo processod e crianção de personagens e de contar histórias dos mais variados temas.

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