cristina-ravela Cristina Ravela

Nosso matador de aluguel, já conhecido Benjamin do conto “A Cobrança”, é contratado para eliminar duas pessoas na mesma noite. Após uma partida de poker com os criminosos da cidade, Benjamin consegue apoio do agiota Armandinho para executar seu plano de duplo homicídio. Só que nem Armandinho sabe quem são os alvos do amigo matador, nem o matador pode imaginar que apenas dois assassinatos vão se transformar em uma grande chacina.


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Valete de Paus

PARTE I – Aquele valete valia ouro


As três cartas do baralho, dispostas sobre a mesa, fizeram meu companheiro de jogo dedilhar sobre a madeira. Era um suntuoso Rei de Copas, a Dama de Ouros e o Às de Espadas, três cartas que fizeram brilhar os olhos de todos os presentes. Éramos cinco, à espera da próxima jogada.


Qualquer um poderia matar o jogo ali, fazer uma Sequência Real e levar os R$ 5 mil que eu ganhei rindo na quinta-feira passada. Eu disse que ganhei rindo porque matei um palhaço na ocasião, um dos poucos que me fizeram rir na vida.

— Quem eu pegar roubando, mato! – afirmou o Armandinho, já prevendo a derrota.


Armandinho era um sujeito magricelo, preto, nascido e criado nas vielas do Cezarão, sempre trajando aquela blusa preta apertada sob a jaqueta surrada. Estava sempre contando dinheiro, de preferência, dos outros. Afinal, ele precisava sustentar o vício sem limites dos cigarros dele. Inclusive, ele trazia um na boca. Apagado.


O cenário onde eu estava parecia criminoso. E era. Sob a luz baixa da lâmpada quase despencando sobre nós, cada um ali tinha um passado a esconder ou um presente para sustentar. Um total de 10 homens, sendo cinco assistindo ou aguardando para iniciar uma briga. De agiota a miliciano, não restava dúvidas de que naquela noite, alguém deixaria de pensar no futuro.


— Se quiser, pode sair do jogo, Armandinho. Tá toda hora ameaçando, uma merda já!


O carinha que meteu a real era meu parceiro fiel do Poker. André, o nome dele. Branco que nem papel, ficava vermelho só em mover os músculos da cara. A gente dividia a grana conquistada com muito esmero e talento. Ele era mais tacanho no ramo, e como sou um cavalheiro, quase um lorde saído das entranhas dos castelos europeus, sempre deixava uns 20% a mais para ele.


Armandinho nos espiava; ele tinha uma obsessão comigo, não sei explicar. Entendo a força da natureza que eu represento, mas acho que não faço o tipo dele. Ajeitei meu coque, cocei minha barba aloirada. Por fim, aspirei o ar putrificado pelo décimo cigarro do Armandinho. Ele ainda mantinha o décimo cigarro apagado na boca.


Enfim, Armandinho jogou sua carta: um 2 de paus. Achei simbólico, já que ele sempre parece um dois de paus estacado nas esquinas, aguardando um trouxa para agiotar.


— Puta que pariu…


Foi a vez do Naldão reclamar. Ele, um sujeito truculento, parceiro das vias de fato do Armandinho, parecia saído dos filmes de faroeste: sempre pronto para puxar a arma, com olhos semicerrados, enquanto equilibrava o cigarro no canto da boca.

Ele não fumava, fato. Mas Armandinho, sim.


Armandinho, então, jogou suas últimas cartas sobre a mesa. Já tinha dado o jogo como perdido. Pegou o copo de uísque barato e engoliu de uma vez só. Aquilo bastou para causar um certo alvoroço, já que toda vez que ele perdia, ele saía para cobrar uma dívida antes do prazo combinado.

Foi nessa deixa que, sem ninguém perceber, retirei um perfeito Valete de Paus da minha manga e coloquei no lugar o 4 de Copas. Sob o olhar matuto de André, mostrei que eu tinha pressa.


— Não sei vocês, mas hoje será uma noite daquelas. Preciso me apressar, por favor?


Naldo e os demais me espiaram e menearam a cabeça. Foi quando eu lancei o Valete de Paus sobre a mesa e fiz uma linda Sequência Real. Raspei as fichas da mesa sob o olhar fuzilante de Armandinho.


— Eu ainda te mato, cara. É a terceira vez que tu mete um Valete nessa porra.


Levantei da cadeira e já me posicionei para pegar a mala de dinheiro.


— Da próxima, faço Poker com um Rei de Copas.


O deboche foi claro, não restava dúvidas sobre isso. Armandinho se levantou na fúria, queria me atacar. DO NADA. Naldo e os demais tentaram apartar e levaram socos e pontapés. Acabou que todos eles estavam envolvidos na briga e não me viu sair de fininho com o André. Armandinho deixou os outros se divertirem – ele chamava briga de diversão – e saiu em seguida.

Dividi a grana com o meu parceiro e dei aqueles 20% maroto por ele ser fiel na jogatina.

Todo homem, em algum momento da vida, precisa ser fiel aos seus compromissos. E eu já estava atrasado para o meu.


PARTE II – O Otário


Eu estava colocando a minha máscara ninja quando percebi que o Armandinho se aproximava sorrateiramente.

A bituca de cigarro fora jogada no chão e pisada por ele, como se fosse um forasteiro que acaba de chegar à cidade atrás do alvo para matar. Ele tinha esse jeito brega, mas era um agiota legal.


— Tu usa máscara, Benjamin? – indagou ele, sério.


Meneei a cabeça de forma positiva. Uma coisa que aprendi nessa pandemia é o valor do silêncio: quando não falo muito, evito a falta de ar.

Armandinho já estava se preparando para puxar outro cigarro, quando eu pedi para ele dar um tempo. “Pra evitar deixar pistas”, eu disse. Eu tinha falado para ele que um cliente não me pagou pelo serviço da semana passada. Alegou que eu devia ter esperado o carinha tirar a fantasia de palhaço.


— E que diferença fazia?

— Matei o cara errado – menti. Óbvio que não faço rolê aleatório por aí. E óbvio também que ninguém deixou de me pagar, mas eu precisava da grana do Poker e da companhia de Armandinho.


Armandinho arregalou os olhos, para logo depois gargalhar.


— Tu é maluco, otário!


Uma coisa legal do Armandinho é que todo mundo pra ele é otário, não importa com quem ele esteja falando. Sei que é uma coisa nossa de carioca, mas eu nunca gostei de tratar as pessoas assim, afinal, não sei com quem estou falando. E se for bandido?


PARTE III – Éramos Seis


No meio do caminho, eu e Armandinho caminhávamos com rumo definido. Adiante, algo me deixou puto, e poucas coisas me deixam puto nessa vida: um aglomerado de quatro pessoas no ponto de ônibus.


— Quem é o carinha que tu vai pegar? – perguntou o Armandinho, olhando atentamente para o grupo.

— Um otário.


Enquanto Armandinho ria, eu observava as pessoas no ponto de ônibus. Aquele cenário na Presidente Vargas estava curiosamente nebuloso. Parecia cenário de Silent Hill.

Algumas poucas pessoas que passavam de carro olhavam pra gente de forma esquisita. Não julgo. O moleque de cabelo verde rebolava cada vez que rodava para ver se vinha algum ônibus.

Nada contra, tenho até amigos que pintam o cabelo de rosa.


A garota morena, que devia ter uns 25 anos, trabalhada na blusinha e calça de couro, não tirava os olhos de mim. Imagino que seja difícil mesmo resistir a esse cavanhaque e a esse coque samurai. Sou irresistível.


O jovem negro ali da ponta, tentando fazer uma ligação sem sucesso. Tinha cara de funcionário de alguma empresa de contabilidade. Não sei, mas sempre acho que esses caras de relógio grosso, camisa de manga ¾ listrada e portando pasta trabalha com a contabilidade.


E o idoso bocejando com as mãos nos bolsos? Velho não pode ficar de bobeira que já quer dormir. Não julgo. Quase bocejei também.


Todos eles me encaravam igualmente. Com certeza, assim como eu, ideias a respeito da minha aparência faziam parte de seus pensamentos. Um cara como eu, branco, cabelos aloirados e de coque samurai, bonito; trajando uma camisa preta por baixo de um paletó marrom, uma calça social e sapatos de camurça; e claro, meu histórico de atleta, verdadeiro, sem sombra de dúvidas.

É, nenhuma ideia errada sobre mim eles teriam. Fico satisfeito quando eu tiro conclusões acertadas.


— Vamos rachar um Uber? – perguntei, fazendo todos menearem a cabeça, na dúvida. Não esperei uma resposta positiva, e saquei meu celular do bolso.

Armandinho me puxou no canto, tentou falar entredentes para ninguém ouvir.


— Uber, cara? Fala logo quem é o otário que tu quer encaçapar que eu te ajudo e a gente se manda daqui.

— Mas, por que você acha que eu chamei o Uber?


Armandinho fez cara de surpresa, e logo piscou o olho, entendendo a malandragem.


— Vai caber todos no carro? – indagou o moleque do cabelo verde.

— Posso ir no colo de alguém – rebateu a morena, me secando descaradamente. O moleque do cabelo verde fez cara de nojo, por um momento, achando que era com ele.


Desliguei o celular e avisei que o Uber estava para chegar. “Demos sorte, ele tá perto”, eu disse. Como num passe de mágica, um carro preto cruzou a esquina e parou rente à calçada. Todos aliviados, já preparados para se aproximar do veículo, quando três caras saltam do carro, armados de pistolas.


Fiquei horrorizado, já que nem no cenário de Silent Hill a violência dá sossego no Rio de Janeiro. Os caras mandaram passar tudo, mas o jovem negro com cara de contador, tentou correr. Não sei o que ele pensou, porque não havia nada ali para se esquivar de uma bala. E não se esquivou. Levou DOIS balaços pelas costas e caiu de cara no chão.


A morena gritou, deu chilique, pediu pela própria vida. Um dos meliantes analisou o caso com esmero, mas foi interrompido pelo grito abafado do velho. Teve um infarto ali mesmo. Velho é um perigo, morre por qualquer coisinha.


A essa altura, o moleque do cabelo verde já tinha dado mais bandeira que a torcida a favor do Governo em dia de manifestação. Os caras não gostaram.


— Mete o carai nessa bicha que eu não tenho paciência!


Tive a impressão de que o moleque ia correr, mas não deu tempo; levou muita surra. Era para virar homem, dizia um deles. O moleque desmaiou, banhado de sangue. Armandinho não entendendo nada.


— Que tá acontecendo, Benjamin? Nera só um otário?


Nem respondi. Saquei que a morena queria vazar, mas um dos bandidos, mordendo os lábios, começou a afrouxar o cinto na direção dela.


— Para aí, rapaz – impedi – vocês já pegaram o que queriam, não? Não precisa disso.

— A lá, o cara tá de saca – disse o branquinho de cabelo loiro – mete o bagulho?

— Pode meter – disse um neguinho.


O sujeitinho branco apontou a pistola pra mim, enquanto isso, o neguinho se posicionou na frente da morena, já arriando as calças e calibrando a peça. O branquinho não gostou.


— Tira o olho que eu vi primeiro, maluco!

— Tu é mole demais, aposto que nem no ponto tá.

— Tu quer ver o meu ponto, rapá?


O branquinho disse isso e sacudiu a peça mole, enquanto segurava a pistola na outra mão. O outro parceiro riu. O branquinho não gostou.


— Mané!


E meteu dois tiros nas fuças do colega, que caiu no asfalto, mortinho. O outro parceiro ficou indignado: “tudo isso por conta de mulé?”


E meteu bala na direção do pescoço da garota. O sangue espirrou pelas costas do neguinho, que viu o sonho de se aliviar tombar na calçada. Aquilo tinha ido longe demais.


— Olha a sujeira que nóis fez, maluco? – observou o neguinho sob o olhar matuto do único parceiro que sobrou – Bora vazar daqui!


Os dois caras empurraram eu e Armandinho e mandaram a gente entrar no carro, um gol branco de 2008. Armandinho atento, mas entendeu que era melhor seguir quieto.


PARTE IV – Cidade Violenta


Nós quatro, a 80 km/h, quem sairia vivo desta noite sangrenta? Eu não fazia ideia, apenas que o carro deu uma guinada, cantou o asfalto e, por fim, freou de forma brusca em um cantão qualquer. Os caras não tinham tato mesmo. Abriram a porta e nos puxaram lá de dentro.


— Pronto! Vou querer os 25% do vacilão lá, hein, quero nem saber.


Falou o neguinho, cheio de marra, mas 50% era muito para quem fez tanta sujeira. A propósito, todos fizeram sujeira por igual.


— Era só o idoso, aquele senhor endividado até o pescoço. Não precisava fazer chacina – eu disse.

— Qualé? – indignou-se o outro parceiro – Tu pediu delivery, agora tá reclamando do pacote extra?

— Eu não pedi brinde.


Não dei tempo para ninguém. Puxei, de surpresa, minha g-lock escondida próxima do calcanhar e disparei contra o segundo elemento. O neguinho estava esperto, mas eu sempre tive boa cognição. Acertei logo a cabeça que é para ele não ter ideias inovadoras ali. Com ambos mortos, encarei Armandinho, mais passado que o bife da dona da pensão onde resido humildemente.


— Cara, que noite! Então o velho é quem tava na tua mira? E acabou infartando – Armandinho riu, que nem um desgraçado que ri com a própria piada na mesa de bar.

— Pra tu vê como meu trabalho é difícil. Por isso pedi que me acompanhasse, para que nada mais saísse dos meus planos.

— Opa! Mas eu não fiz nada. A propósito, quanto vou ganhar nessa brincadeira?

— Quem assiste é quem paga o ingresso.


Armandinho não teve tempo de reagir, e meti um balaço nas fuças dele. Caiu para trás no susto. Na ocasião, caiu também uma carta da minha manga: o valete de paus, minha sorte nas jogatinas.


Enquanto os três corpos jaziam sob a luz de uma belíssima lua cheia, caminhei até a beira da estrada, admirando minha carta de um lado, e mantendo a minha g-lock na outra.


Eis que um chevette preto com cara de carro de bandido estaciona adiante. Um sujeito de 60 e poucos anos desceu, pinta de chefe da máfia, paletó marrom, e um cigarro pendurado no canto da boca. Avaliou o cenário, deu uma baforada com o cigarro. Pigarreou.


— Tu usa máscara?


A gente se encarou por instantes. Depois ele riu e tossiu de novo. Na minha cara. Deu um tapinha maroto nas minhas costas.


— Salvando vidas, entendo...– ele espia por cima do meu ombro – Era pra ser só o Armandinho.

— Era, não foi. Chamei por um Uber, recebi assaltantes.

— Cidade violenta – ele concluiu, depois tossiu de novo.


Se ele soubesse como é difícil trabalhar para uma lista de clientes em uma mesma semana. Eu não daria conta, sozinho, de duas ofertas, o velho e o agiota. Mas, da próxima, não vou chamar o Uber. Amadores.


E sim, a cidade está muito violenta, e eu odeio violência, inclusive.

Feb. 23, 2022, 6:09 p.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

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Cristina Ravela Blogueira, redatora, produtora de conteúdo e roteirista. Faço umas artes e outras coisas legais na internet também.

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