Do camarim, bem iluminado e forrado de pelúcia do chão ao teto, era possível ouvir as hélices e propulsores dos veículos aéreos que se reuniam lá fora.
— O pessoal já está chegando e ainda não fizemos a passagem de som! - o produtor atravessava o corredor, batendo as portas violentamente, camarim por camarim, e repetindo o recado. - O pessoal já está chegando e ainda não fizemos a passagem de som!
Sun, uma das nove integrantes do grupo a se apresentar naquela noite, tentava achar graça. Perguntava-se se os olhos saltados do produtor eram fruto de sua euforia crônica ou culpa do paletó violeta, plástico e resinoso, que apertava todos os seus músculos e, ao invés de evidenciar seu corpo atlético, dava a exata silhueta de um saco de batatas disforme prestes a romper.
Mas Sun apenas sorriu. Um sorriso que começou com um leve sopro de alegria e logo se apagou, dando lugar a um longo e pesado suspiro.
— O que houve, querida? - questionou a figura esquelética à sua frente que mantinha os olhos bem focados nos lábios de Sun, colando neles pedras coloridas cirurgicamente.
— Nada não.
— Bom, então tente se animar um pouco. Você sabe como são esses fãs. É você subir ao palco neste estado que eles discutirão sobre sua postura não ser profissional, de como você sempre foi ingrata, iniciarão campanhas de ódio...
— Sim, sim! - Sun interrompeu imediatamente. Teve calafrios só em pensar onde a linha de pensamento da maquiadora (ou maquiador, Sun não saberia dizer) a levaria.
Isso porque, apesar de trabalhar há oito anos com entretenimento, o maior medo de Sun eram as pessoas. Mesmo as que não conhecia eram selvagens, cegas e surdas, vendo e ouvindo apenas o que lhes convinha. Sobretudo as de Nova Seul.
Foram elas que jogaram o pai de Sun nos subúrbios, após um grandioso golpe corporativo, sem um tostão no banco e com dois filhos pequenos para cuidar. Foram as mesmas pessoas que, após a morte do ex-senhor presidente, "resgataram" Sun e a levaram para "um futuro cheio de brilho e glamour" na superfície e deixaram o caçula para trás, à própria sorte em um domingo de Natal.
Agora, dezesseis anos depois e em mais um 25 de Dezembro, Sun tentava se lembrar do rosto de seu irmão. Ele já deveria estar moço. Teria se tornado um delinquente morando na Baixa Seul? Se fosse o caso, Sun jamais o reconheceria. A cultura dos subúrbios girava em torno de implantes de silicone, perucas e adesivos faciais que tornavam difícil reconhecer a si próprio ao encarar um espelho. Mas ela não se incomodaria com sua aparência, claro. Desde que seu irmão não nutrisse ódio por ela ter sido fraca e tê-lo deixado para trás... Não, ela ainda era fraca. Em dezesseis anos não havia reunido uma só informação sobre o paradeiro do irmão, apesar de ter sido sua única ambição. Ambição essa que, ao longo dos anos, foi perdendo a intensidade e levando Sun ao conformismo. Ah, se o pequeno Kyun pudesse apenas se materializar à sua frente...!
— Galera, e aí?! Pronto?! Vamos? - o produtor voltou batendo palmas, ainda mais apressado do que antes. O rosto mais vermelho, os olhos mais saltados. - Eu não aguento! Toda vez isso! Vocês querem me ver enfartar? Vamos, andem logo, eu não estou para brincadeiras hoje!
Dos outros camarins começaram a sair as colegas de Sun: altas, esbeltas e vestindo robes felpudos e luminosos. Mas de repente, todas surpresas, grudaram na parede para dar passagem ao faxineiro e sua tropa de aspiradores-robô. Como se fosse possível, o produtor surtou e ficou mais vermelho ainda.
A maquiadora colou a última pedra e, aproveitando o tempo obtido com o caos no corredor, segurou o rosto de Sun com suas mãos longas e ossudas.
— Não se esqueça de brilhar no palco e levar esperança às pessoas. Faça sua parte e o Universo fará a dele. Combinado? - e deu uma piscadela que enrugou todo o seu rosto bronzeado.
Sun agradeceu, ainda desanimada, e puxou seu robe amarelo do cabideiro. Passo após passo, foi reunindo coragem. Alegria. Bom humor. Gratidão. Ela precisava estar 100% feliz ao atravessar a porta e foi cochichando o mantra que repetia ao seu irmãozinho, quando ainda estavam juntos. "Vamos, minha estrela, não há porquê nos arrependermos".
Tão focada estava em mudar de humor que Sun quase não conseguiu levantar o pé a tempo para o aspirador passar. Evitou-o por muito pouco, mas acabou trombando com o faxineiro, que vinha logo atrás.
— Ah, me desculpe! - disseram ambos, em uníssono.
Não houve troca de olhares. O faxineiro abaixou seu boné rapidamente, escondendo o rosto e seguiu em frente. Venus, integrante do grupo mais próxima de Sun, puxou-a pelo braço e a conduziu através do corredor, vociferando e reclamando do produtor que já estava quase subindo no palco ele mesmo para a passagem de som.
E embora não tivessem se reconhecido naquele momento, pela primeira vez o destino havia colocado Sun frente ao irmão após tantos anos. Um milagre de Natal que ela nunca conseguirá agradecer, pois de tão sutil, passou despercebido.
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