wesleydeniel Wesley Deniel

Muito pouco resta hoje em dia a Kanda além de poder observar o jardim da bela mansão que se tornara seu lar. Memórias são tudo o que tem: perfumes, sabores, a voz de sua mãe, as perdas de uma breve e sofrida existência. Mesmo agora, acolhida por um proeminente e bondoso cirurgião plástico e sua atenciosa governanta, cercada por conforto e cuidados, a menina vê-se mais desamparada que nunca, mergulhada em uma nova vida que daria tudo para jamais ter conhecido.


Drama For over 18 only.

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KANDA

Kanda contemplava com ar ausente o jardim lá fora, tentando lembrar-se dos cheiros e sabores de sua infância, o perfume adocicado das pequenas flores brancas que via e acreditava serem madressilvas ou como era o gosto do sorvete de langsat que tomara com sua mãe numa das poucas vezes que pudera levá-la para passear.

Estava acomodada no sofá de chenille que ficava próximo à grande porta corrediça de vidro e a fragrância dos arbustos coloridos e do gramado ainda orvalhado inundava sua mente. Era quase possível sentir a maciez de tocá-las. Hoje não poderia fazer muito mais que olhá-las, mas permitia-se apreciar aquelas primeiras horas da manhã, todas as essências do mundo lá fora invadindo a casa, carregando-a para lugares distantes e bonitos que agora só poderia imaginar.

Sempre que sozinha, as poucas recordações de menina vinham-lhe à mente, como sua mãe sentada ao seu lado na caminha simplória com um colchão parcamente estofado com retalhos de tecido, mostrando-lhe velhas revistas repletas de fotografias de praias exuberantes, jardins botânicos e lagos cristalinos nas montanhas. Para cada paisagem ela dizia: “Aqui, cheire esta flor, minha anjinha. É perfumado assim nessas estufas.” ou "Esta lilás cresce ao redor do templo Wat Phra Kaew. Bom, não é?", e dava-lhe sempre uma ou outra amostra de plantas para que pudesse assimilá-las às imagens desgastadas das publicações.

“— Sinta, querida, as encostas de Koh Nang têm este cheiro. É de jasmim azul.” Claro que muitas vezes tais flores e ervas sequer faziam parte da natureza dos lugares retratados – decerto algumas teriam sido colhidas de matagais ou jardins ali mesmo nas redondezas do grande Mercado de Banglampoo; quem sabe algumas até não eram surrupiadas das exóticas bancas da feira aberta –, contudo, na cabecinha inocente de Kanda, pouca importância tinha: o que a alegrava era poder sonhar.

Agradeceu do fundo de sua alma pelo carinho que recebera, mesmo quando a mulher não parecia estar bem ou então com tempo para agradá-la. Imaginava quantas vezes a mãe não deixara de dormir para ensinar-lhe o pouco que sabia. Não raramente passava o dia todo sem vê-la e, ainda assim, à noite, quando a ouvia abrir a porta de tábuas e a menina saltava da cama, correndo para abraçá-la, Sunee Kai-Mook jamais reclamara ou pedira que voltasse a dormir, não importando quão cansada estivesse.

“— Trouxe alguma revista nova, mamãe?” — perguntava-lhe Kanda, e então a mulher retirava da bolsa de pano uma ou duas publicações amassadas.

“— Não são muito recentes, meu amor, mas podemos vê-las juntas no domingo, o que acha?” — dizia, acariciando seu rostinho fino e pálido. A menina as folheava e, como se não quisesse estragar alguma surpresa, as colocava sobre os dois cavaletes e uma prancha que, enfeitada com uma gasta toalha rosada servia-lhes como mesa para suas refeições.

“— Eu consigo esperar!”

“— Ah, sei que sim” — dizia sua mãe, namorando aqueles olhinhos escuros e curiosos, correndo a mão por seu cabelo negro e liso. “— Você é uma menina incrível, Kanda, mas pode ver as revistas antes se quiser, está tudo bem.”

“— É mais divertido com a senhora.”

E então Sunee recebia o mais belo sorriso.

“— Está mais linda e esperta a cada dia, sabia?”

Ainda que sentisse sua falta, Kanda procurava não se demorar; apesar da voz suave e animada da mãe, podia ver em seus olhos a exaustão e a tristeza por algo que ainda não sabia o que era. Ajudava-lhe a tirar os sapatos e ia até a cozinha apanhar água, ou de vez em quando, um chá da Índia. Trazia-lhe o pequeno copo de argila com a fumegante infusão e a ficava admirando enquanto bebia.

“— Agora precisa descansar também, mamãe.” — dizia, pegando o copo vazio e puxando-a com carinho pelo antebraço. “— Venha dormir com a gente. Tia Mali e eu arrumamos a casa esta tarde. Pode se deitar.”

No fim, o olhar triste de sua mãe revelara-se uma doença. Hanseníase. E ali no conforto daquela sala ampla, clara e perfumada pelo agradável jardim, Kanda sentiu raiva, também em silêncio, por ela nunca ter-lhe revelado seu estado de saúde até que já fosse tarde.

Mali Chaylay, sua tia por parte de pai, sabia da condição de Sunee. Kanda as ouvia conversando às vezes, enquanto achavam que a menina dormia, pouco mais que sussurros; notava a preocupação no rosto da mãe e, com certeza, a insatisfação no da tia, mas o que fazer?

Sunee tinha passado a usar roupas de mangas compridas e Kanda podia jurar que ouvia gemidos durante a madrugada. Com os meses, as forças da mãe minavam e não havia como deixar de perceber seu estranho distanciamento. Antes tão carinhosa, Sunee começara a não permitir sequer que a filha a abraçasse. Perto do fim, mesmo sua voz era diferente e então, ainda que com oito anos, a criança compreendera que as coisas talvez pudessem acabar mal.

De repente, o cheiro fragrante das madressilvas, lavandas e azaleias, o frescor da grama úmida, tudo perdera o significado. Kanda apertou os olhos querendo chorar, mas apenas continuou lá sentada, quietinha. A porta do corredor que dava acesso à escadaria e aos quartos se abriu devagar e a jovem forçou-se a olhar, ainda que sem muito interesse, quem havia se levantado. Era Nadezhda, sua enfermeira.

— Oh, minha criança! Você passou a noite aqui? — Preocupada, a mulher foi até a menina para checar a temperatura de sua testa. Tocou-a delicadamente com aquelas mãos gorduchas que cheiravam desde bem cedinho a uma suave e estranha combinação de loção para pele, desinfetante e temperos.

Nadezhda viu manchas brancas e ressecadas no rosto da garota e na frente da camiseta com pequeninos gnomos de chapéus coloridos que usava. Torceu o nariz, saiu calada e logo voltou com um pano umedecido. Limpou-a com delicadeza até que não restasse mais sinal algum de sujeira.

Kanda sempre sentia-se enojada com toda aquela condescendência vazia, mas apenas fitou a mulher, contendo as lágrimas.

— Tudo bem, querida. Sua Nady está aqui. Já está limpinha. Você gosta desse cantinho, não é mesmo? A lareira deixa toda a casa bem quentinha.

Nadezhda a deixou novamente para retornar um minuto depois trazendo uma das coisas que Kanda mais detestava: aquela medonha cadeira de rodas cor-de-rosa. Seu olhar se tornava mais tristonho e luzente quando a via, e a velha enfermeira bem sabia que, se Kanda pudesse, atiraria longe aquela peça amaldiçoada; mas que remédio havia? A condição da jovem exigia o seu uso.

Nadezhda compreendia que momentos como aquele deviam ser difíceis para a garota, então dava a ela a maior atenção possível, afinal “Trate muito bem de minha pequena matrioshka!” era a recomendação de seu patrão, o doutor Boryenka.

— Não precisa ficar triste, querida. Eu ajudo você com o que for! — confortou a enfermeira, enquanto a levantava com cuidado do sofá e a sentava na cadeira. — Você e eu podemos passar o dia juntas hoje, todinho. Não gostaria que eu lesse para você aquele livro novo que tanto gosta?

O delicado quadro de Kanda já não lhe permitia mais falar, mas se pudesse, ela teria dito a Nadezhda que não a colocasse na maldita cadeira com aquele buraco degradante bem no meio do assento. Teria pedido também, encarecidamente, que apenas a sufocasse até a morte com uma das almofadas ali, bem ao seu lado, mas teve de se conformar em ser arrumada na cadeira e levada até o banheiro para suas necessidades matinais.

O desejo de morrer volta e meia a envolvia. Certa vez, assistira por acaso em um documentário na TV (outra das poucas coisas que lhe restara) que muitos pacientes – em condições até menos debilitantes – pensavam em simplesmente desistir e dar descanso, se não às próprias vidas, ao menos para as dos que tinham de cuidá-las.

Era isso. Kanda queria mais é que sua condição piorasse logo e que pudesse deixar toda aquela subsistência impensavelmente insuportável para trás; quem sabe reencontrar-se com sua mãe...

Mas não. Ao menos hoje, teria de se contentar em urinar, defecar, ser banhada, trocada e ouvir agradecida a alguns capítulos daquele estúpido romance sobrenatural juvenil que ganhara como presente.

...

Não muito longe, num bairro nobre e um pouco afastado do agitado centro comercial de Vladivostok, o doutor Boryenka preparava-se para iniciar o primeiro turno de sua ronda diária por três dos maiores hospitais da região.

Caminhava absorto pelo corredor do Nossa Senhora da Misericórdia, checando seus e-mails através do smartphone pousado sobre a prancheta com vários relatórios matinais. Levantava a cabeça de vez em quando apenas para olhar o número de um quarto e conferir se constava em uma de suas visitas programadas. Sorria e respondia um bom-dia aqui, outro ali, mas em suma, seu mundo estava na tela de seu celular: mensagens, lembretes, agendamentos de cirurgias e convites para palestras, almoços e drinks nalgum restaurante fino.

Parou diante do quarto 1919. Katyenka Liubov, 38 anos, Oremburgo.

Colocou o celular no modo silencioso, o guardou num bolso e após uma rápida ajustada no jaleco entrou no quarto. Tinha o largo sorriso simpático patenteado dos médicos com alguma humanidade estampado em seu rosto redondo e bem barbeado. Seus olhos azuis rodeados por rugas e amparados por pequenas bolsas escurecidas encontraram os exaustos de Katyenka, que não muito antes havia sido trazida de volta da UTI.

— Ora, já estamos acordados! — falou, e seu sorriso alargou-se ainda mais. — E é sempre tão bonita assim quando acaba de despertar?

O semblante da mulher brilhou.

— Gentil e galanteador como sempre, Dr. Boryenka — disse, não sem alguma dificuldade, devolvendo-lhe o sorriso. — Eu bem que gostaria de estar me sentindo... apresentável outra vez.

— Adorável Katyenka, é apenas Krigor, eu já disse.

— Certo. Krigor.

— E preste muita atenção: o que é belo deve ser celebrado, querida. Não pense que foi uma simples lisonja. Não, não! — respondeu ele, então se aproximou e a tocou suavemente, acariciando o lado esquerdo de seu rosto de traços marcantes. O direito estava todo enfaixado com gazes e pedaços de esparadrapos – menos sobre seu olho.

— Tenho medo, doutor Krigor. Sabe... De nunca mais ser igual era antes.

Enquanto a ouvia, ele observava o aspecto da pele próxima aos curativos, seu inchaço, a textura ao apertar certos pontos... Movia a cabeça em pequenas negativas para tranquilizá-la e perguntava se esta ou aquela parte doía.

Retirou devagar as bandagens junto à têmpora, orelha e pescoço da mulher, desculpando-se pela sensação desagradável. Novamente estudou cada parte do rosto e pareceu satisfeito com o que vira. Anotou uma ou duas linhas no bloco de notas na prancheta e recolocou os curativos.

— Poucas pessoas são verdadeiramente humanas perto de alguém com minha aparência.

— Ora, você será tão linda quanto antes, Katyenka — interrompeu Krigor com sua característica doçura. — A vida pode nos preparar algumas peças, nos derrubar feio às vezes, mas não pode nos derrotar se não deixarmos. Não deveria sentir-se nem por um segundo menos bonita do que é, aqui — apontou para seu rosto, e em seguida para seu coração —, e principalmente, aqui.

Katyenka inspirou e permitiu que as lágrimas aflorassem, umedecendo suas bandagens.

— Porque ele fez isso comigo?! — perguntava mais para si própria que para o doutor ao seu lado. — Eu fiz tudo por ele, tentei dar o melhor de mim... — Tocou com as mãos trêmulas o lado ferido do rosto.

— Às vezes não há motivos, querida — disse o doutor Boryenka, baixando com carinho os braços também feridos e enfaixados de sua paciente. — Parece assustador e sem sentido, mas somos apenas humanos sendo humanos.

Antes de largar o braço esquerdo de Katyenka, ele o tomou com as duas mãos e o contemplou por alguns instantes.

— Macia. Tamanha perfeição. Que linda tez você tem, dorogoy Katysha.

Katyenka ruborizou-se, talvez não pelo elogio, já conhecia bem o doutor Krigor Boryenka para estar acostumada à sua amabilidade. Quem sabe não se envergonhava por ter-se envolvido não com um homem como aquele que agora a cuidava ou tantos que deviam tê-la tratado com respeito, mas com um que apenas tinha muito dinheiro e boa aparência. Talvez por descobrir tarde demais que aquilo nada significava, como uma linda matrioshka de fina porcelana que viesse recheada de camadas de podridão e pura maldade.

A futilidade e a ambição em detrimento ao amor e as demais coisas simples da vida a haviam cegado e levado até aquele momento, retalhada como uma peça de carne quando a humilhação e o subjugo se tornaram insuportáveis. Ah, se ela ao menos pudesse ter imaginado seu proeminente e celebrado arquiteto com aquela enorme faca nas mãos! Mas só o vira como marido troféu – e também era vista assim, verdade seja dita – até que as aparências desmoronaram e as surras e a dominação começaram.

— Não... Ele fez isso em mim porque podia — murmurou ela e tornou a chorar. — Não havia nada de humano nele quando tentou me matar o dia que decidi deixá-lo.

Sua respiração se tornou pesada. Foi quando o cirurgião decidiu intervir:

— Precisa tomar cuidado com a sua pressão, querida. Veja, seu quadro ainda é bastante delicado. Acabou de voltar da UTI por causa daquela última elevação súbita. Seja boazinha com seu amigo Krigor, procure tomar a sopa que a enfermeira Olga vem trazendo e depois eu quero que tente descansar. Está sentindo? — O bom doutor farejou o ar teatralmente. — O cheiro parece delicioso a ponto de eu mesmo estar pensando em dar uma descidinha até a cozinha depois!

Boryenka terminou de fazer suas anotações, fechou o bloquinho e saiu para o canto do quarto junto a uma mesinha repleta de flores, balões e cartões de Melhoras.

A enfermeira esperou que o doutor se afastasse e perguntou se já podia acoplar a pequena bandeja de refeições à cama. Katyenka respondeu que sim, sorrindo-lhe e parecendo tentar deixar para trás as más lembranças.

— Assim que eu gosto!

— Ficarei bem outra vez, não é?

— Seus resultados tem sido incríveis, doce Katysha. E darei o melhor de mim para vê-la novinha em folha! — prometeu Boryenka dando-lhe uma piscadela.

— Obrigada, doutor!

—Não me agradeça ainda. Temos mais três ou quatro procedimentos complicados pela frente, mas dará tudo certo.

Ele sorriu e soprou-lhe um beijo estalado com sua mão rechonchuda.

Katyenka, já mais calma, ficou tomando sua sopa de legumes enquanto o doutor e a enfermeira saíram. Do lado de fora, Boryenka instruiu a jovem Olga a passar mais vezes pelo quarto de Katyenka, trocar-lhe outra vez os curativos, elogiá-la e deixar-lhe um mimo ou outro – um smokva ou um pudim talvez. A enfermeira tomava nota de tudo.

— O mais importante agora será sua autoestima — disse ele. Depois entregou a Olga uma cópia de todas as anotações que fizera e seguiu adiante.

Krigor Boryenka fez mais quatro visitas ali durante aquele turno e em todos conseguira incutir um pouco de alegria e esperança. Jovens, idosos, crianças... Todos o adoravam e o disputavam. O médico gostava de tê-los como mais que meros clientes de um hospital; seus pacientes eram algo como... mais próximos.

Passava do meio-dia quando o doutor consultou novamente seu smartphone e viu entre as inúmeras mensagens, uma de sua governanta e enfermeira particular.

Kisha não está bem. Deprimida.

Ivanna e Dariya também requerem atenção.

O semblante de Krigor Boryenka anuviou-se. Mais que quaisquer outros pacientes, aquelas eram motivo de grande preocupação para ele atualmente. Retirou a pequena caneta eletrônica do suporte na capa do celular e escreveu:

Cuide delas, Nadezhda. Alimente-as. Converse com Kisha.

Estou a caminho de casa. Prepare minha sala.

...

Nadezhda, a velha enfermeira ucraniana recebeu a mensagem. Depois de lê-la, apagou o celular e o pousou sobre a mesinha de centro da sala de estar, bem de frente onde Kanda havia tornado a ser acomodada em seu sofá predileto.

— Kisha, querida, eu vou descer por um instante e logo voltarei para preparar seu almoço, está bem? — disse apertando-lhe a bochecha com carinho.

É Kanda, senhora. Meu nome é Kanda Song-Mook.

— Ainda temos daquele lombo com verduras refogadas que você tanto gosta — revelou Nadezhda, alheia a quaisquer pensamentos de Kanda. — Vou cortar tudo bem fininho. Fique quietinha aí que sua Nady já volta.

"Fique quietinha aí". Não deixava de ser um pedido no mínimo inútil, para não dizer hilário.

Kanda seguiu-a com os olhos enquanto ia para cozinha, murmurando alguma canção naquela língua estranha que conversavam de vez em quando a velha e seu patrão, pensando em como seria mais lucrativo se a mulher se tornasse comediante; depois se voltou outra vez para o jardim além da grande porta de vidro.

O antiquado celular de Nadezhda vibrou e sua tela trincada se acendeu outras duas vezes enquanto Kanda a ouvia mexendo com as panelas na cozinha. Deu pouca importância à coisa, afinal, que diferença faria poder pegá-lo? Não sabia quase nada de russo, húngaro ou qualquer que fosse aquela língua em que se comunicavam, para conseguir ler as mensagens (quando falavam com ela era em tailandês – o erudito doutor e sua governanta pareciam saber bem seu idioma), e também, para quem ligaria?

Mamãe estava no Samsara; seu papai, ao contrário do que acreditara por toda a infância, não estava lá com a mãe, mas vivendo com outra família em algum lugar a leste do Cambodja há mais ou menos dez anos, pelo que ouvira uma tarde tia Mali e uma amiga conversando. Quanto à própria tia... Bem, esta dera um jeito nela, podia-se dizer, menos de um ano depois de Sunee ascender ao paraíso.

Quando a mulher não conseguiu encaixá-la nalgum trabalho semi-escravatório ou então prostituí-la, uma vez que a garota negara-se a tal coisa, teve de pensar em outra forma de fazer dinheiro com a sobrinha. Soubera de certas histórias sussurradas pelos becos e entre pessoas de índoles tão duvidosas quanto a sua.

Rumores sobre pessoas muito ricas, pelo mundo todo, que ficariam felizes em adotar e cuidar de crianças e adolescentes desamparadas. Tudo que precisaria seria encontrar os contatos certos e de alguns telefonemas.

Logo Mali teria um fardo a menos em sua vida, e Kanda um novo lar.

Adeus Tailândia. Olá país-que-não-faço-ideia-qual-seja do leste europeu.

O cheiro do lombo apimentado e curtido no molho de soja com verduras passou a dominar todo o ambiente, eclipsando até mesmo a intensa fragrância das flores que diminuía conforme o dia esquentava. Kanda deixou-se levar pelo aroma e retornou até seu casebre num bairro apinhado de Bangkok. Flutuou pelas ruas e vielas estreitas e sombreadas onde costumava brincar com as outras crianças da vizinhança, rodeada por cheiros como aquele. Viu-se correndo entre as modestas banquinhas de peixes e frutos do mar, sentindo o perfume adocicado das frutas e verduras frescas, especiarias de cores encantadoras enchendo o ar e convidando todos às compras. Lembrou-se dos restaurantes populares que viviam abarrotados de trabalhadores do próprio Mercado de Banglampoo, já que na famosa feira em si os preços eram direcionados aos turistas e os mais abastados.

“Kanda! Venha comer, moleca!”, pareceu ouvir sua tia Mali chamando-a igual de costume, como se estivesse ali mesmo dentro da sala.

Era hora de dizer tchau às amiguinhas, guardar a velha corda ou sua surrada boneca de meias e ir comer. Lombo ou alguma outra carne, em geral com molho de soja, pão branco, verduras ou legumes cozidos eram quase sempre o cardápio. Vez ou outra Mali conseguia algum desconto no mercado que ficava a duas casas depois da sua por trabalhar lá durante os finais de semana. Dormir com o filho mais velho do dono também ajudava.

Depois viria a lição de casa; uma ou outra tarefa doméstica e então ela poderia sentar-se para ler suas revistas e esperar por sua mãe. Se tivesse sorte, poderia até jantar algo diferente ou então ganhar um dos deliciosos bolinhos que Sunee lhe trazia.

Nadezhda também lhe dera algumas vezes os tais bolinhos, ora de maçã com cobertura de morango, ora de frutas cristalizadas com creme... Pensando a respeito, Kanda sentia-se curiosa em saber como aquela enfermeira poderia conhecer tão bem de seus gostos. Seria coincidência? Dedução?

Foi com aquilo em mente que Kanda ouviu quando abriram a porta da frente.

...

Era o doutor Krigor Boryenka.

Parecia preocupado; apenas perscrutou Kanda de dentro do vestíbulo e sorriu-lhe de maneira estranha. Após pendurar o casaco e o terno, seguiu direto para a porta além da cozinha, a que dava acesso ao subsolo onde ficava seu consultório particular. Não chegou a descer, deu de cara com Nadezhda que voltava de lá. A velha sequer se assustou, apenas fechou a porta e o acompanhou quando este sinalizou que fossem se sentar perto da menina no sofá.

Uma vez acomodados, Boryenka recostou-se perto de Kanda, afagou seu cabelo e quis saber como estava sua adorável matrioska.

Pisque uma vez para mim se estiver tudo bem, querida — pediu. — Ou então duas vezes caso esteja sentindo alguma dor ou desconforto.

Kanda piscou uma dezena de vezes. Krigor Boryenka e Nadezhda se entreolharam. Era sempre assim, uma dificuldade dos infernos para se comunicarem desde que a voz da menina se fora.

Sem dar muita importância no momento (sua Kisha era frágil, só isso), os dois começaram a conversar. Não faziam muita questão de evitar qualquer assunto perto dela; era provável que pensassem que além de inválida, também tivesse partido em seus pensamentos para bem longe dali.

— O que houve Nady?

A mulher nada disse por quase um minuto; ficara apenas limpando as mãos no avental como fazia quando estava nervosa. E então:

— Doutor, gostaria de perguntar ao senhor quanto tempo suas pacientes ainda ficarão hospedadas conosco.

Nadezhda trabalhava há vinte anos para Boryenka, então em momento algum ele deve ter considerado aquilo uma insolência. O velho pensou um pouco e de novo quis saber o que houve.

— As meninas lá embaixo estão agitadas. Ivanna se sacode e esbraveja o tempo todo e Dariya... Aquela não permite nem que se chegue perto dela para nada.

— Estão assustadas, Nady. Só isso. Acho que não compreendem seu tratamento, e é natural que fiquem exaltadas dessa forma. Precisamos ter muita paciência e tentar deixá-las mais calmas. Aqui: Não vê Kisha? É um doce, não é?

— Si-Sim — respondeu Nadezhda ainda incomodada —, mas ela também me faz sentir mal, doutor. Às vezes não consigo enxergá-la em seus olhos. Parece vazia.

— Eu a examinarei melhor depois. Mas tenho certeza que está bem — disse o doutor, tranquilizando-a, e sacou o celular que vibrava. — Preciso retornar esta mensagem. É do homem responsável por nossa jovem Ivanna. Tenho um compromisso com essas pessoas, então preciso que me ajude, está bem, moy dorogoy drug?

— Sim, senhor.

— Ótimo. Agora me diga, elas já estão descansando?

Nadezhda pareceu não entender.

— Descansando, doutor? Achei que fosse apenas para alimentá-las. E nem isso consegui fazer devido a toda rebeldia delas.

— As mensagens... As mensagens em seu celular, você não as recebeu?

— Não senhor, doutor Krigor. Devo tê-las perdido. Ou então esquecido. Ando tão...

— Ah, Nady... Eu tinha um cronograma.

Sem esperar qualquer justificativa, ele se levantou e rumou para as escadas. Nadezhda olhou sem graça para Kisha. Antes de descer, o doutor virou-se para a velha e perguntou:

— Há quanto tempo Kisha está ali?

— Bem, acho que ela passou novamente a noite naquele canto.

— Nadezhda, você não a levou para a cama?!

— Achei que o senhor o faria. — respondeu a governanta, constrangida. — Eu já havia me recolhido.

O humor de Krigor Boryenka decaía mais e mais.

— Ela já foi alimentada?

— Seu caldo está no fogo.

— Pois então cuide dela, e não enrole mais para levá-la para seu quarto. Kisha não pode ficar sentada por muito tempo. As escaras, você esqueceu?

— Farei agora mesmo!

— Todo cuidado é pouco com minha Kisha!

Após tais ordens, Boryenka abriu a porta de acesso ao subsolo e desceu.

Na metade da escadaria havia um patamar e outra porta. Boryenka achava que havia sido a melhor coisa que fizera como melhoria para seu consultório particular. A porta à prova de sons, assim como as paredes, mostrara-se uma bagatela no final das contas; quinhentos mil rublos não eram nada se comparados ao desprazer que seria receber reclamações de vizinhos quanto ao barulho que às vezes acabava ocorrendo.

Assim que passou pela segunda porta, pensou ter adentrado num manicômio. Como duas garotas podiam causar tanto alvoroço?!

O estrépito começou no momento exato em que ouviram seus primeiros passos descendo a escadaria; xingamentos, maldições e pedidos inúteis de socorro... Por que elas pediam socorro, afinal? Não compreendiam que estavam ali para serem tratadas?! Sem dúvidas toda aquela ingratidão magoava o doutor Krigor Boryenka.

— Minhas jovens — disse ele falando em hindi quase perfeito —, porque todos esses insultos, essa raiva? Estão aqui para um tratamento, para seu aperfeiçoamento. Pedem por socorro como se eu as estivesse querendo matá-las!

— Me deixa sair daqui, seu maldito! — vociferou a jovem fechada numa espécie de cela acolchoada, muito limpa e iluminada que tinha porta de vidro reforçado.

O homem meneou com a cabeça, um tanto obsequioso.

— Dariya, minha menina, eu não posso deixá-la livre como me pede enquanto se comporta desse modo! Está muito nervosa, então aí é mais seguro para você.

— Meu nome não é Dariya, seu filho da puta! É Jeevana!

— E o meu é Resham Gandhali — disse a outra garota indiana. Esta estava atada a uma mesa cirúrgica larga e macia. — Mas é mais fácil para você me chamar de Ivanna ou sei lá como prefere, não é? Pois Resham é meu nome. Eu nasci em Berhampur, na Índia e tinha uma família!

— E quem disse que não tem mais, Ivanna? — perguntava-lhe aproximando-se da mesa. — Deveria estar agradecida por ter sido escolhida para um tratamento tão difícil. Isso é sinal de que pessoas se importam com você!

— É mais cômodo pensar assim, velho? Diminui sua culpa a cada vez que você vem e me tira um... Ei, não! Não me aplique isso!

Mas Boryenka já estava aplicando. Era para o bem dela, por Deus! Todo aquele estresse, as acusações... Melhor que descansasse.

Em menos de dez segundos sua paciente dormia e ele já poderia se aproximar com segurança para examiná-la, medicá-la e prepará-la para a próxima fase de seus procedimentos delicados.

— FILHO DA PUTAAAAA! — gritou a outra garota, e atirou-se contra o vidro de sua cela, desesperada. — O que vai fazer com ela agora?!

Boryenka expirou fundo, magoado, incomodado. Abriu a portinhola dupla de um armário e apanhou outra seringa que aparentemente continha o mesmo sonífero que aplicara em Resham Gandhali / Ivanna segundos antes.

— Vem aqui desgraçado! Abre essa merda e tenta aplicar isso em mim! — disse Jeevana salivando. — Vou arrancar seu rosto à mordidas!

— Não querida, não creio que vá.

O médico foi até outra sala adjacente ao consultório e parou junto aos controles do sistema de ventilação. Eles se dividiam em três: um para o ambiente onde ele se encontrava, um para a cela de contenção e o terceiro subia para os andares de cima. Boryenka isolou os dois que não interessavam e deixou livre o que supria de oxigênio sua paciente problemática. Injetou o conteúdo da seringa direto no umidificador de ar acoplado ao filtro e voltou ao consultório para continuar com os exames.

Jeevana não notou nada de imediato e ainda continuou resmungando e dando soquinhos no vidro, mas logo deu um tossido, depois outro e quando começou a sentir no ar o cheiro característico de medicação, entrou em desespero. Gritava e se lançava contra as paredes acolchoadas.

— Não, não, não! Assim não! NÃO!

Sem tirar os olhos do monitor o qual examinava alguns detalhes dos próximos passos com sua Ivanna, ele disse:

— É necessário Dariya, meu bem. Pare de se debater, quanto mais o fizer, mais rápido irá inalar o sonífero, não vê?

A garota sentou-se no chão da cela e, vencida, adormeceu chorando.

Depois de algum tempo ele destrancou e deslizou o vidro da cela e, com todo cuidado, amarrou-a com uma camisa de força branca, deitou-a em seu catre também acolchoado e saiu.

Boryenka voltou até a mesa cirúrgica e descobriu o corpo de sua Ivanna, até então oculto por um macio lençol azul claro. A menina seria apenas o torso e a cabeça se não fosse por um braço, o direito, que ainda lhe restava intacto. Nos cotos de cada uma das amputações, o experiente doutor havia implantado longas hastes feitas de titânio cirúrgico. Eram o ideal para que seu trabalho ficasse a contento.

Checou as cicatrizações das extremidades de cada membro extirpado, anotou os resultados no arquivo pertinente no computador e achou que era uma boa hora para responder às mensagens do homem que o havia contatado.

Boryenka iniciou o software necessário para acessar sua própria página. Havia sido pensado e desenvolvido por um colaborador seu e sem aquilo, seu pequenino site composto de apenas quatro páginas simplórias não existiria.

Não era muito apreciador de aparatos tecnológicos ou mesmo da internet – principalmente a superficial –, mas achava que o melhor ainda era resolver seus negócios através de um computador. Ao menos por meio dele, da maneira correta, não atrairia tanta atenção para seus dons e à ajuda que buscava prover.

Funcionava assim: Os novos interessados chegariam até sua página na Deep-Web depois de convidados por clientes mais antigos ou por mérito em algum fórum especializado e então passariam por uma peneira, uma bateria de perguntas que revelaria seu real interesse para com o assunto.

Antes de prosseguirem, era necessário que concordassem com uma profunda investigação de suas vidas, ainda que o contrário lhes fosse negado. Aos clientes era garantido total sigilo durante as negociações bem como a posterior destruição de seus dados assim que chegassem a concluir a transação. Nenhuma espécie de documento físico era exigido, todo o negócio sendo mantido através da troca de reputações, como num acordo de cavalheiros.

Numa segunda fase de questões o comprometimento seria posto em xeque. De posse de informações detalhadas de seus possíveis clientes, Krigor Boryenka e seus associados pediam por algo que os comprometesse caso decidissem desistir após este ponto ou viessem a lhes causar problemas. Geralmente algum delito grave onde tivessem seus rostos ligados a tal (a praxe era alguma fotografia ou um vídeo). Sendo comprovada a legitimidade da prova, restava apenas a aprovação pessoal do doutor.

Curiosos sequer eram levados a sério, sendo descartados por membros das comunidades que discutiam determinados assuntos e, quando não, feitos de idiota, levados à páginas que apenas os mantinham entretidos com histórias cercadas por ares de lenda urbana, mas nada acrescentavam, ou então caíam em algum link que os infectava com centenas de vírus. Dos que mostravam potencial, alguns não passavam sequer das entrevistas nos fóruns ou da primeira fase do processo, desistiam quando percebiam se tratar de algo sério, ou o faziam quando ordenados a se comprometerem.

Aqueles que não se enquadravam no perfil ou falhavam em algo no caminho eram descartados e seus nomes incluídos nas listas negras dos que não deveriam ser convidados para mais nada.

Os que passassem e que realmente merecessem sua atenção, esses ganhavam acesso à segunda página de seu modesto site. Lá lhes seria explicado maiores detalhes sobre questões de disponibilidade dos serviços, suas preferências, um possível prazo de espera e, claro, se estariam dispostos a pagar o preço pelo produto oferecido.

No caso do homem que o contatara mais cedo, um bem sucedido empresário do aço de São Petersburgo, um substancial sinal já havia sido pago e confirmado: o equivalente a U$250 mil dólares americanos em criptomoeda. Os dois já se encontravam em uma fase adiantada de negociações em que tudo era tratado na terceira página do site, esta, extremamente particular.

Àquela altura, um de seus colaboradores já havia sido instruído a revelar um local estipulado para a entrega quando esta ocorresse e a deixar no lugar um envelope com um pequenino cartão SD contendo o software de acesso à última página.

O que os clientes não sabiam era que, se fosse algum golpe ou se tratasse de alguma armadilha das agências de investigação, eles também estariam sendo vigiados. E uma vez negado o acesso, o cartão tornar-se-ia inutilizável e o pagamento do sinal jamais devolvido.

Krigor Boryenka tinha duas mensagens no rodapé de sua página desprovida de qualquer design – apenas um básico fundo preto, sem molduras ou figuras, poucas palavras em cirílico e em inglês, dois campos de mensagens tudo em verde claro, lembrando aquelas telas impessoais dos antigos sistemas DOS. Num dos campos era exibido o aviso de “2 (DUAS) MENSAGENS NÃO LIDAS” e o outro era destinado às respostas. Boryenka clicou para ler a primeira delas:

Poderia, por favor, me pôr a par do andamento de nosso projeto?

Aguardo ansioso pela oportunidade de contemplar seu trabalho.

A segunda mensagem dizia:

Existe possibilidade de podermos nos comunicar melhor?

Ou então ter um vislumbre de sua manufatura?

Cordialmente: O Monarca

O doutor buscou responder de modo sucinto e cortês, algo que poderia ser traduzido como “sem chances!” Sua arte não era algo mundano que pudesse ser acompanhado por seus clientes como se num ateliê onde as pinturas e esculturas ganhassem vida diante de uma multidão de apreciadores, tampouco uma padaria com uma vitrine lustrosa permitindo que os consumidores vissem como eram feitas as guloseimas.

Odiosa grosseria da parte daquele velho rico banalizar assim sua fina arte; que atrevimento! Que ultraje! Que arrogância!

Por um momento, Boryenka sentiu-se invadido; cogitou apenas responder um ríspido “Contrato Cancelado”. Poderia fazê-lo, quem o impediria? Um dos principais termos assegurava justamente seu direito de abortar o projeto a qualquer momento se julgasse necessário, e quem o pagava aceitava automaticamente este termo.

Porém limitou-se a escrever:

O andamento segue como previsto.

O cliente será contatado quando o projeto alcançar 75 por cento

e novamente em 100 por cento, conforme previamente combinado.

Quanto à sua solicitação, infelizmente não será possível.

Este é um trabalho delicado que requer paciência e discrição.

Atenciosamente: Vassíli

Enviou a mensagem e desconectou. Pensou no lampejo que sentiu seguido à indignação com a petulância de seu cliente em xeretar, a fútil comichão de explicar ao menos algumas nuances de seu trabalho. Parte de seu ego desejava que alguém soubesse o quão intrincado era o processo de suas criações. Certa vez, pensara em documentar todo o procedimento, a transformação da pedra bruta em uma esmeralda finamente lapidada, mas imediatamente rechaçou a ideia: não tinha chegado até ali através de atitudes descuidadas.

Pensou também que, apesar do interesse do sujeito, este não seria alguém apto a compreender a arte por detrás de tudo, mesmo com aquele codinome pretencioso. Sequer arranharia a superfície... Não passavam de uma cambada de degenerados que pouco ligavam para a verdadeira experiência que os seus serviços proviam!

Levantou-se, foi até a mesa onde repousava sedada a garota que ele chamava de Ivanna. Com o carinho de um pai ele afagou seus longos cabelos castanhos (Monarca, o empresário inconveniente iria querê-los entregues pintados de rosa), correu a mão lisa e bem cuidada pela tez de seu rosto moreno e vislumbrou nela a sua mais nova obra de arte. Faltava pouco agora para que a menina deixasse de ser um mero e enfadonho ser humano para tornar-se uma nova Vênus de Milo.

Não! Superior à própria deusa, pois aquela ali respiraria, sentiria e seria uma ode ao amor. Eis o que ele era: um artífice como nenhum outro, um criador de deusas!

E como era grande a procura por possuir uma deusa, mesmo que por curtos dois ou três anos e uma pequena fortuna.

Mas aquela ainda estava incompleta... Faltava-lhe algo. Pior: sobrava-lhe algo. Que Vênus rebuscada seria ela com aquele horrendo braço ainda restante? Se fosse preciso braços, membros comportados e servis, estes seriam os que ele lhe desse, pois só ele era o aprimorador, o descendente dos grandes artesãos!

— Como é abençoada a minha Ivanna — disse-lhe enquanto esquadrinhava uma última vez sua obra inacabada. Então retirou a toalha branca que cobria uma bandeja de instrumentos cirúrgicos sobre uma bancada não muito longe da mesa de operações. De pronto encontrou a ferramenta apropriada para seu intento: uma mini serra circular cirúrgica elétrica, perfeita para amputações e trepanações.

Seguiu leve como se amparado pelos ombros dos grandes doctores de outrora até o armário de medicamentos na parede oposta à cela onde Dariya jazia desacordada e ao olhá-la pensou que ótima deusa ela também daria em breve.

Correu uma das portas de vidro e apanhou os compostos necessários para preparar uma anestesia geral (seria no mínimo desastroso se sua Vênus acordasse no meio de sua sessão de aprimoramento e, se debatendo, arruinasse o processo todo!). Desinfetou as mãos na pia ao lado do armário, vestiu seu avental cirúrgico azul, calçou um par de luvas estéreis e misturou diligentemente o sedativo à morfina e por fim o bloqueador neuromuscular.

Uma vez terminado, ele retirou a bolsa de soro do tubo ligado à agulha com scalpe 21 atada ao pescoço de Ivanna e reconectou-o à solução anestésica concentrada. Não levou mais que alguns segundos até que os sinais de sono conturbado no monitor se estabilizassem.

— Prontinho, moy milyy kukla.

...

Lá em cima, Kanda / Kisha engolia sem vontade outra colherada do caldo que havia sido acrescentado às verduras refogadas com lombo de porco desfiado em mínimas tirinhas (Nadezhda sempre reduzia suas refeições quase a uma papinha para bebês, dizendo “Ah, como é delicada minha Kisha!”).

A velha enfermeira aguardava com paciência o lento e dificultoso mastigar da garota; sabia que sua dentição (ou melhor, a falta dela) não colaborava com nada mais sólido que mingaus ou angus. A garganta também não ajudava desde a retirada de suas cordas vocais e a fazia se engasgar muito facilmente com qualquer alimento seco ou engolido em grandes bocados.

— Pisque para mim se ainda estiver muito quente, querida — pediu à menina. Kanda manteve-se inalterada.

Nadezhda mergulhou a colher outra vez no espesso caldo fumegante e limpou o excesso na borda do prato. Como se faz com uma criança, a velha levou devagar a comida à boca de Kanda, mas esta apenas virou o pescoço desviando-se.

— Ora, vamos minha menina, precisa se alimentar direitinho! É tão magrinha e pálida como uma dennoyi vyd — disse Nadezhda sem se exaltar. — Pronto, vamos tentar outra vez, só mais algumas colheradas e...

Kanda novamente moveu a cabeça e com o leve tremer da mão da enfermeira de colher em punho, um pouco do caldo caiu sobre um dos braços da garota. Ainda soltava fumaça quando o atingiu e ficou sobre ele até que Nadezhda, que começava a se aborrecer, viu e rapidamente limpou o local com um guardanapo que descansava em seu colo.

Kanda não sentiu nada, talvez nem tenha percebido. A enfermeira fitava com preocupação o braço queimado da menina, o líquido quente havia deformado o local, afundando-o como quando se encosta um palito de fósforo recém-apagado em algo de borracha. Aliás, não tão evidente, por se misturar ao forte cheiro do caldo, era o odor de algo artificial queimado; não pele ou pelos, mas sintético.

Svyatyy Bozhe! — exclamou Nadezhda quando viu a deformidade. — Santo Deus, minha querida! — Não que estivesse preocupada com a garota em si; ela, a enfermeira sabia que não havia sentido nada; preocupava-se mesmo em ter avariado a propriedade de seu patrão.

Boryenka não gostaria nada daquilo, ah, não mesmo!

Mas braços e pernas de silicone sempre podem ser substituídos, não é mesmo? Não era o que ele melhor sabia fazer afinal? Aprimorar aquelas meninas de sorte escolhidas para saírem da mais profunda miséria, substituir seus ordinários membros por material de alta densidade e qualidade, a última palavra em implantes cujo toque era quase tão suave quanto o natural, embora estes novos membros de ponta não pudessem se erguer contra ninguém. Este era seu dom, acima de qualquer habilidade médica, seu verdadeiro dom!

Nadezhda talvez levasse uma bronca do dedicado doutor, mas certamente não perderia seu emprego por aquele pequeno acidente. Próteses de silicone são caras e exigem esforço e esmero em sua criação, mas diabos!, imprevistos acontecem! Kanda seria levada até o consultório no subsolo e logo sairia de lá novinha em folha.

Uma perfeita boneca viva outra vez.

Aug. 14, 2021, 5:37 a.m. 60 Report Embed Follow story
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The End

Meet the author

Wesley Deniel Meu nome é Wesley Deniel, e tenho uma mente cheia de fantasmas. Pelos últimos 20 anos eu tenho vagado pelos recônditos mais escuros deste e de infinitos outros mundos e trazido desses lugares de insondáveis terrores os pesadelos que compõe minhas obras. Embora escreva todos os gêneros e esteja aberto a qualquer desafio, é no horror e no terror que permito que alguns desses fantasmas ganhem força o bastante para atravessar para o nosso mundo.

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Gerson Abadia Gerson Abadia
Meu Deus, colega. Que angústia! Que conto foi esse cara?! Eu estou de cara com como me levou do zero ao cem em minutos! Da calmaria ao terror sem igual!! Isso foi simplesmente inacreditável!! Não é de hoje que te acompanho, mas não sabia desse ainda. Que conto cara!! Parabéns. Conseguiu causar o que queria provavelmente kkkkkkk pois estou arrepiado.
April 14, 2024, 09:58
Vicente Farias Vicente Farias
Mano, suas histórias estão entre as mais pesadas que já li. E olha que leio Raphael Montes kkkkk Em outras palavras: que foda!!! Essa aqui foi outro soco de direita. Eu fiquei sem saber direito o que pensar quando descobri a verdade da garota. Deus nos livre. Parabéns cara. Quero conhecer mais do seu trabalho, porque acho que logo estará por todo lado!
April 11, 2024, 08:56
Ingrid Porfírio Dias Ingrid Porfírio Dias
Minha nossa senhora, colega..... Devastada aqui. Eu nem sei o que escrever, só que é incrível como nos leva devagar, sem pressa pela vivência de Kanda e nos faz pensar qualquer coisa, menos o terror ediondo que ela está inserida. Meu Deus, será que essas coisas existem mesmo???!! Não duvido, o homem é podre. Somos criaturas que falharam com Deus. Parabéns, parabéns!! É a primeira obra sua que leio mas já vi aqui no app que é um monstro da escrita! Já quero le mais!!
April 07, 2024, 10:17
Aleir Portiolli Aleir Portiolli
Jesus amado. Que dó meu Deus. 😭
March 29, 2024, 02:42
Graça Aparecida Dellano Graça Aparecida Dellano
Que agonia, meu Deus!!!! Essas coitadas se não bastasse ter vidas tristes e sofridas ainda tem que ser usadas por demônios como esse.... nem vou chamar aquele monstro de médico! Que conto, Wesley! Faz todo o medo da maldade humana transbordar. Impressionante.
March 26, 2024, 08:07
Eder Castro Giulianni Eder Castro Giulianni
Nossa eu fiquei zoado com esse hein. Mano, o homem é uma bosta. Tenho raiva de vez em quando de fazer parte da humildade quando leio algo assim por exemplo. Não a sua escrita!! Não vá entender errado! Eu estou adorando ler suas coisas. Estou falando de ler atrocidades como as descritas aqui nesse conto, saca? Porque sei que o homem pode fazer essas coisas. Sucesso mano! Parabéns pela história. Foi uma das mais cruas e tristes que já li. E também muito bem feita.
March 12, 2024, 10:47
Fabiano Ventura Fabiano Ventura
Não devia me chocar mais diante suas obras, uma vez que já espero por todas essas emoções cada vez que te leio, mas é impossível. No fim sempre acabo de olhos arregalados. Isso é o poder de saber contar uma história!!
March 11, 2024, 09:13
Rodolfo Damasceno Rodolfo Damasceno
Meu amigo, que coisa tenebrosa. Acho que todo mundo já leu sobre essas coisas, é tipo lenda urbana mesmo, mas ler uma história assim e imaginar que possa ter mesmo pessoas passando por isso dá um frio na espinha!! Muito bem escrito. Trauma garantido.
March 09, 2024, 02:55
Pietro Mesquita Pietro Mesquita
Amigo, que situación más abominable. ¡Pobre niña, sola en el mundo, en manos de un degenerado! Esta fue una de las historias más pesadas que he leído. Felicitaciones por su capacidad de sorprender.
March 01, 2024, 06:10
Vanessa Corrêa Silva Vanessa Corrêa Silva
Totalmente passada, Wesley. Que horrível tudo isso com essa pequenina 😭 A gente ouve de coisas assim e reza pra ser só lenda. Quanto a história, achei muito bem feita! Você tem o dominio e já vi porque faz tanto sucesso!
February 29, 2024, 05:23
Jesus Expedito Jesus Expedito
Senhor..... Que não seja verdade umas coisa dessas. Piedade. Parabéns pelo conto Wesley. Foi um dos mais pesados que já li e um dos melhores tb.
February 24, 2024, 09:27
Janice Herculano de Souza Janice Herculano de Souza
Perturbador colega. Já li dessas lendas da internet e tenho.medo até hoje de serem verdadeiras. Não dá pra confiar na cabeça de algumas pessoas!! Se duvidar tem coisa até pior. 😢
February 17, 2024, 12:40
Miriam Ramos Antonella Miriam Ramos Antonella
Deus do céu, eu tô arrepiada. E tô fascinada Wesley. Sai direto de um drama seu que me fez sentir de tudo, tristeza, esperança, amor, luto e vim parar aqui, entre o horror e a pena pela pobre Kanda! Como vc consegue escrever algo tão lindo e também outra história tão perturbadora?!?! Vi que seu genero é o terror, então devia esperar isso, mais tô chocada . Simplesmente chocada! Que talento Wesley!!!!
February 14, 2024, 09:00
Saulo Crespo Saulo Crespo
Que horrível tudo isso, rapaz. Que triste me faz lembrar que sou humano e parte dessa espécie tão maligna. Assisti dias atrás aquele filme Som da liberdade, você o viu? E já fiquei impressionado com toda a maldade do homem, agora aqui me deparo com algo ainda mais macabro! Não quero que pense que considero a sua obra horrível. Nada disso. Ela é primeira que sentia vontade de comentar, por ter mechido tanto comigo e é brilhantemente escrita, cheia de detalhes e camadas. Você consegue entregar aos poucos o horror da revelação. Eu disse que é horrível a condição da pobre menina. Quantas não deve aver por aí? Parabéns por sua história! É pesada, quase indigesta, mas necessária e muito bem feita.
February 13, 2024, 11:36
Odair Justino Silva Odair Justino Silva
Senhor, Wesley... Que terrível. Antes dessa sua história, li outra, de uma colega daqui, sobre um pai e sua tristeza com a perda da filha que era tudo para ele. Fiquei arrasado. Mas aquela menina ao menos teve alguma vida. Kanda não. Kanda teve um breve período com a mãe, um amor humilde e dedicado e só. Depois era preferível, penso eu, que também tivesse morrido, pois essa tua história mostra de fato que há destinos piores que a morte, mil vezes piores!! Que escrita! Que estilo! Que porretada na cabeça ao descobrir a verdade. Posso dizer que foi uma das histórias mais pesadas que já li. Parabéns!!
February 05, 2024, 09:38
Costa Sampaio Costa Sampaio
Que noveleta pesada fizeste. É triste pois é verdade. Pode ter gurias passando por isso agora mesmo e o coração me afunda. Mas escreves bem demais. Parabéns.
February 03, 2024, 01:22
Elza Valentina Souza Elza Valentina Souza
Terrível! Terrível Wesley!! Mas fantástico! Como você conseguiu me levar de 0 a 100 em todos os sentidos com essa história!! Senti tristeza, pena, esperança, medo, ódio e indignação tudo junto. Que conto Wesley!!! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
January 30, 2024, 09:49
Virgínia Tess Virgínia Tess
Meu Deus Wesley.... Que terrível. 😭 É algo pra que eu não estava preparada. De verdade. Eu o leio com a maior admiração, porque suas histórias são um show sobre escrita, seja qual for, mas entrei em drama e me deparei com esse pesadelo inimaginável!! Eu não estou criticando, nunca pense isso! A história é sem igual, incrível, mas o choque que ela causa e o modo como toda a maldade e o medo vem sem aviso, num soco como outros amigos nos comentários disseram é algo que demorarei pra esquecer. Parabéns por conseguir causar isso de forma tão surreal e também por espor a maldade humana. Por pior que seja ela precisa sim ser mostrada.
January 21, 2024, 07:12
Weslley Bach Weslley Bach
Xará, eu sempre penso que estou vacinado contra seus monstros, mas toda vez me pego mais assustado!! Dessa vez é pelo pior tipo deles: nós mesmos. Que coisa terrível Wesley. Faço coro aos que disseram que esperam que isso seja só lenda porque se algo assim existir mesmo, nós falhamos. Parabéns pela história sensacional. Ela é de dar calafrios mas só acentua sua maestria!
January 17, 2024, 09:09
Hugo Gimenez Herrera Hugo Gimenez Herrera
Sinistro mermão.
January 15, 2024, 23:59
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