Era mais uma noite quente e abafada, dessas que compunham um cenário de transição entre o final de verão e o início do outono; da janela semiaberta irrompiam raios prateados do luar e ao longe se alternavam ruídos os mais diversos, ora o ribombar longínquo de trovões, ora o ladrar de cães vadios. Um insistente zunido denunciava o aproximar ocasional de algum inseto alado, por demais irritante.
Da cozinha emanavam os estalidos intermitentes da geladeira e o som monótono do aparelho refrigerador de água. O tic-tac do relógio de parede era quase agradável. Volta e meia, um piar de coruja...
Aos poucos iniciou as idas e vindas dos estágios de consciência, desde o alerta ao deitar-se, passando por inúteis movimentos sobre o leito, a percepção cada vez menor dos sons externos, até a perda total do contato terreno. Engraçado: no ressonar incipiente, pensamentos agitados se sobrepunham uns aos outros, como se a vigília se recusasse a desligar-se da realidade; o sono se revelava agitado...
Gradualmente a batalha contra Morfeu findou-se e acabou então por mergulhar nos recônditos obscuros da mente adormecida, com todos os seus mistérios ainda não desvendados...
Num dado momento assustou-se terrivelmente, sentindo seu corpo ser atirado em direção ao vazio, como se fora jogado da cama; mas curiosamente não chegou a se machucar; ao contrário foi tomado por uma inebriante sensação de leveza...
Pasmo, iniciou sua incrível jornada: soergueu-se do leito, mas sem discernir seus pés ou pernas, e atingiu o teto do cômodo; nitidamente conseguiu vislumbrar sua cama; flutuou em direção à janela, quase sem controle e maravilhado descortinou toda a vizinhança; aventurou-se então e atirou-se ao vazio incerto, já que se encontrava por volta do sétimo andar da construção...
Tomado de uma paz indescritível levitou suavemente, circundando todo o prédio e voou, tal como já tinha visto antes em clássicos infantis da literatura e da TV; quão bela era a noite e quanta paz!
De repente um novo solavanco, e despertou num rompante de susto e aflição. Seu quarto estava de novo ali e o relógio implacavelmente lhe dava a ordem cotidiana do labutar matinal.
Com o passar dos anos suas oníricas sensações foram se tornando cada vez mais escassas, culminando no seu completo desaparecimento. A propósito, a cada avançar da idade o sono parecia-lhe cada vez menos repousante e os sonhos infelizmente cada vez mais reais. Seriam aqueles antigos sonhos alados algum tipo de conexão, necessária para a paz espiritual? Por que então haviam se extinguido?
Mistérios da alma humana...
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