Janise arquejava, correndo a vista da lata caída para o gato cinza.
A tampa se abrira com o impacto, espalhando toda a conserva pelo piso do mercado. O cheiro de pêssego açucarado fez o estômago de Janise dar um salto e o gato, sem perder tempo, começou a lamber o chão.
— Luna! — sibilou a garota.
Olhou para um lado e para outro. Jogadas no escuro, a única claridade provinha da luz espectral saída da lanterna na mão de Janise.
Apontou para uma das extremidades e depois para a outra, analisando o corredor solitário. Ainda sentia o nervosismo reboar no peito como pancadas de um martelo. Era sempre a mesma sensação venenosa de pavor depois de um barulho alto; desde que tudo acontecera há seis meses…
Prestando atenção ao silêncio, Janise respirou fundo na tentativa de controlar a pulsação. O pote em conserva despencara com estardalhaço suficiente para se fazer ouvir à toda volta e o retinir metálico ainda ecoava pelos corredores. Agachada, começou a contagem: cinco… seis… sete… dez segundos e nada… a barra estava limpa.
Desencostou-se da prateleira e, engatinhando, aproximou-se de Luna, a gata, e dos pêssegos, apanhando a tampa de latão polido e encarando a si mesma. Roçou a mão pela bochecha, fazia semanas que não espiava a própria aparência.
Janise fechou a cara para o reflexo e a pele suja e o rosto jovem repetiram a expressão irritada. Empacotada numa profusão de tecidos, sabia precisar urgentemente de um banho, mas ribeiros não eram seguros, considerando a possibilidade de aguardar pela próxima chuva (que, pelo céu do lado de fora, não devia estar longe de cair).
Ela levou a mão às costas e arrancou o machete da mochila. Há pouco enrolara alguns centímetros de fita isolante no punho do objeto, notando como a pegada aderira melhor. Com a esquerda, puxou uma pequena faca serrilhada do interior da bainha à cintura e a fincou em um dos pedaços da compota que deslizara pelo azulejo. Afundou a lâmina no pêssego e o levou à boca – já devia estar vencida há algum tempo, mas o adocicado lhe arrancou uma lágrima logo na primeira mordida.
— A barra tá limpa? — A menina mirou a gata com a lanterna, enxugando os olhos com as costas da manga. — A gente precisa de um pouco de sal, que acha?
Luna esquadrinhou o corredor sem sair do lugar e se voltou para Janise, miando com entusiasmo. A gata começou a se afastar, caminhando acima de prateleiras vazias com a garota em seu rastro, até se defrontarem com a visão solitária de um mercado tão desolado quanto os corredores que deixavam para trás. Quase tudo já fora saqueado.
Sem pestanejar, a gata prosseguiu, desviando-se dos obstáculos e subindo em caixotes enquanto vasculhava e farejava o ar. Janise, no entanto, estacionou antes de chegar ao caixa, batendo o machete contra o metal das registradoras.
O som, mais uma vez, ecoou pela quietude.
Estavam sozinhas afinal, tal como fora pelos últimos meses. Janise expirou com cansaço, apanhando as duas sacas de sal que jaziam ao lado do caixa e as enfiou na mochila já cheia com garrafas d’água, comida em conserva e ração para gato.
— E aí? Achamos um bom abrigo, não? — comentou para a gata.
Luna miou satisfeita.
De súbito, o clarão cortou o interior do mercado, seguido pelo rugido do trovão. Janise guardou a faca, mas segurou o machete com ainda mais firmeza. Luna bufou nervosa e arrepiou a pelagem, pulando de cima de um caixote e correndo para as portas de vidro da saída.
Era noite e a chuva enfim despencava, gélida como a morte.
Havia algo pelo lado de fora que a gata mirava fixamente, atitude estranha o suficiente para fazer Janise engolir em seco. Nada de bom vinha depois das encaradas de Luna.
Então lançou o facho da lanterna contra as portas e divisou um borrão amarelo surgir e sumir do outro lado da rua. Uma pessoa? Naquele átimo, teve a fortíssima impressão de que a conhecia, mas antes que pudesse procurar na memória, entendeu depressa do que ela corria.
Luna chiou mais uma vez, levando Janise a desligar a lanterna no susto. Mesmo assim, foi testemunha do momento em que as gotas de chuva se deformaram contra o ar, como se uma presença enorme e invisível marchasse lentamente pela tempestade, mostrando que tinha corpulência, mas não forma.
A garota respirou fundo. Não era problema dela. Sabia que não era, então por que apertava o machete com tanta força? Tentou contar até dez. Mas… mas e aquele borrão amarelo? Era uma capa de chuva, não? Parecia a capa daquela pessoa… será?
Quando deu por si, Janise já havia mergulhado na noite.
Ela corria pela rua; a lanterna acesa contra a chuva. Luna vinha em seu encalço, mas na escuridão úmida, já perdera o borrão de vista.
Ela se deteve contra o muro de uma casa e se agachou, apagando a lanterna. A rua era um breu danado sem a única fonte de luz para iluminá-la, mas Janise sabia que precisava economizar a bateria tanto quanto não podia ser descoberta.
— Cadê o Invisível? — sussurrou para a gata. Aos pés dela, Luna fixou o olhar num ponto à esquerda. Em dois cliques rápidos, Janise acendeu e desligou a luz, mas fora tempo mais que suficiente para cravar na memória a imagem das gotas escorrendo contra algo que estava lá, mas, ao mesmo tempo, não estava. Naquele instante ínfimo, também foi capaz de divisar a figura de capa amarela ainda fugindo pela chuva.
Não tornou a acender a lanterna, guiando-se pelos ruídos de passos chapinhando pelas poças. O vento estava forte àquela noite e Janise sentia frio, mas não desistiria depois de ter ido tão longe. O medo também oprimia, mas com Luna ao lado dela, acompanhando-a como uma sombra, conseguiria suportar.
— Desvie do Invisível, menina! — sibilou para a gata, ao sentir o cheiro forte de enxofre provindo da criatura mesmo abaixo de chuva tão forte.
Luna obedeceu, fazendo uma volta maior que a necessária enquanto era seguida pela garota. A dupla contornou a área até que avistou o borrão amarelo atravessar as portas de uma igrejinha decrépita. Janise seguiu até a construção e, ao alcançar a pequena escadaria de acesso, arrancou a faca da bainha, erguendo o objeto diante dos olhos e distinguindo em sua lâmina polida, mas ensopada, o reflexo à distância de uma criatura imensa que era apenas carne e podridão.
Sacudiu a cabeça e, deixando o aguaceiro para trás, também adentrou na capela.
Estacou de imediato ao observar o interior iluminado por uma boa quantidade de velas e que a figura de capa de chuva desacelerava ao se aproximar de um grupo de seis adolescentes; meia dúzia de gatos se espalhava aos pés do bando.
Luna rosnou no lugar, ao passo que Janise redobrou a força com que apertava o machete e o capuz amarelo era baixado, revelando feições tão jovens quanto as dela mesma. Escancarou a boca. Janise realmente conhecia aquele rosto.
— Maria…? — perguntou sem se mover, correndo dela para os outros. — O que faz aqui?
— Janise, eu… — tentou a garota.
— Tá ignorando minha presença, Janisinha? — questionou o rapaz ruivo mais à frente dos outros. Tinha ares de ser o líder do bando.
— Lúcio? — A voz de Janise ecoou sob o teto elevado. — É melhor vocês fugirem daqui. Tem um Invisível lá fora.
O grupo de adolescentes gargalhou, olhando de um para outro.
— Sabemos disso — caçoou Lúcio, descansando as mãos sobre os ombros de Maria. — A sua amiguinha aqui pisou feio na bola com a gente e, para não ser expulsa do nosso grupo, pedi que se mostrasse útil. Ela nos contou que você não precisa de um gato; que consegue enxergar demônios com a lâmina da sua faca. Quando soube disso, confesso que pirei. De que material ela é feita, hein? — Ele riu. — Fiquei magoado de nunca ter contado uma coisa dessas para os seus velhos amigos, Janise. Em todo caso, meu gato achou seu rastro e cá estamos nós. Vimos quando entrou no mercado, mas seria fácil para você fugir, então, para provar que continuaria conosco, a Maria aqui se ofereceu de isca e você mordeu feito um peixinho. Não é hilário?
— Não, Janise. Não é verdade! Não acredite no Lúcio. Eles mataram a minha gata. Fui obrigada!
Lúcio a soltou depressa, encarando Maria como se fosse um pedaço de estrume. A garota da capa de chuva se afastou desabalada, detendo-se somente ao alcançar um pilar de sustentação. Abraçou-o.
— Agora não tem aonde ir — disse Lúcio, voltando-se para Janise com súbita seriedade. — Está encurralada entre nós e o demônio aí de fora. Se quiser sair viva deste lugar, me entregue a faca.
Janise arregalou as órbitas, paralisada demais para mexer a boca. Sentia como se um buraco tivesse se aberto diante de si.
— Eu não disse que ele só queria nos usar, Maria? — rugiu perturbada, fazendo o grito ecoar sob o forro esburacado da igreja. — Foi por isso que sumi de lá. Lúcio está para completar dezoito. Está desesperado para encontrar um meio de não ser comido. Sempre foi assim.
— D-do que está falando? — balbuciou Maria, tinha os olhos marejados.
— Eu descobri uma coisa… foi assim que os nossos pais… foi assim que os adultos morreram. Por algum motivo, eles são devorados pelos Invisíveis, mas agora a comida está acabando. É questão de tempo até virem atrás de nós.
Lúcio tinha os dentes rilhados. Berrou:
— Pare de inventar história!
— Mas… até que faz sentido, não acha, Lúcio? — arriscou outra garota do grupo de adolescentes. — Há meses não vemos nenhum adulto.
— Não. Não faz, cacete!
— Você sabe que estou certa, Lúcio — rebateu Janise. Abriu um sorriso febril. — Tenho certeza que já nem é a primeira vez que ouve isso. Andou escutando os rumores que contam pelas estradas? De que Deus liberou sua fúria sobre os pecados da humanidade? Estamos no inferno, caso não tenha percebido.
— Se você não calar a merda dessa boca, vou matar o seu gato e fazer você engoli-lo. Termine com isso, Maria!
Ela encarou Janise demoradamente, mas não saiu do lugar.
— Tudo bem — disse a ela. — Tudo bem, Maria. Vou entregar a faca. Está na minha mochila.
A garota da capa de chuva se aproximou com cautela, os olhos envergonhados de culpa e, ao suprimir a distância que a separava de Janise, vasculhou encabulada no compartimento às costas dela.
— Mas só tem sal aqui dentro — comentou, arrancando a saca do interior da bolsa.
Num gesto rápido, Janise riscou a embalagem com a lâmina, cobrindo tanto ela quanto Maria numa nuvem pálida de cristais.
— Luna, AGORA!
E a gata obedeceu, bufando muito, muito alto; ecoando pela capela e assustando todo mundo.
De repente, ouviu-se um rompante e uma força invisível surgiu destruindo parte da igreja, arrasando bancos, estátuas e cruzes ao devorar, de uma só vez, quase todos do bando. Lúcio ainda tentou fugir, mas seu grito foi sufocado quando se elevou no ar como se por mágica e desapareceu um segundo depois, como se a própria realidade o tivesse engolido. O sangue escorreu liquefeito, flutuando enquanto pingava pelo piso.
Todos os gatos haviam se dispersado, e agora só sobrara Janise, Luna e Maria.
Devido ao rombo da estrutura, a tempestade invadira o recinto e escorrera até os pés do trio. Janise sentia o compasso dos tremores enquanto garras translúcidas se abriam enormes sobre as poças de água, aproximando-se cada vez mais e mais delas. O cheiro de enxofre impregnava o ambiente como um miasma.
Quando o Invisível parou, Janise engoliu o hálito daquela respiração pestilenta. A criatura fungou duas vezes, como se o próprio ar sorvesse nuvens de vapor.
A dupla prendeu a respiração, passando segundos de terrível expectativa até que o Invisível pareceu dar meia-volta e finalmente se afastou dali, abrindo espaço pela chuva e pela noite.
— Meu Deus… — Maria liberou o ar. — Pensei que ele fosse nos comer.
— Talvez fosse — respondeu Janise. — Mas não com todo esse sal sobre a gente.
Maria refletiu por um segundo.
— Como… você sabe dessas coisas, Janise?
— Tive de aprender a sobreviver.
A garota baixou os olhos.
— Sinto muito sobre o que fiz. Devia ter acreditado em você desde o início… sobre o bando do Lúcio.
Janise maneou com a cabeça, num gesto para que não se preocupasse.
— Para onde está indo afinal? — tornou Maria.
— Litoral de São Paulo. Ouvi rumores sobre um grupo de sobreviventes que aceitam gente nova.
A garota da capa de chuva enrubesceu.
— Será que há lugar para mais uma…?
— Só se acharmos outra gata pra você. Não posso usar minha faca o tempo inteiro.
Ela aquiesceu vacilante, mirando a gata cinza, que a encarava de volta com seus olhos de topázio. Luna miou simpática.
— Parece que sua admissão foi aprovada no nosso grupo — brincou Janise.
Maria sorriu, coçando a cabeça de Luna.
A gata se deitou a ronronar. Ainda teriam muitos quilômetros de estradas arrasadas pela frente.
Apenas os olhos de um gato podem enxergar um mundo tomado por demônios invisíveis. Read more about Tormento Oculto.
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