15 de fevereiro 2026.
Hoje escrevo mais um capítulo em meu diário. Se você está lendo essas páginas, eu provavelmente estou morta. Mas a morte é uma visitante ingrata que a maioria das pessoas aqui já recebeu em sua porta. Quando esse vírus surgiu no final de 2019 alguns países não deram a devida importância... Infelizmente vivo em um desses países. Talvez eu tivesse melhor sorte se tivesse nascido na Alemanha ou no Reino Unido. O que restou desses países ainda é muito melhor do que restou ao meu redor. Lá, ao menos, as notícias são de que as pessoas recomeçaram suas vidas. Claro que todos tivemos que reaprender a viver... Quando o total de mortos passou de 350 mil a curva ganhou proporções exponenciais para as quais ninguém estava preparado. O caos foi total. A instabilidade política, a situação precária das pessoas. A guerra... Hoje estamos vivendo um dia após o outro. Sem grandes perspectivas. Muitas pessoas perderam tudo na guerra. Os fuzis e os canhões dos tanques nas ruas só não fizeram mais vítimas que o próprio vírus. Eu vivo com um grupo de refugiados no que antes era um condomínio luxuoso da minha cidade. Hoje são destroços, mas o Thomas e os outros rapazes que tomam conta daqui conseguem nos manter seguros. Viver nesses tempos não é fácil! Uma mulher da minha idade, 26 anos, estava acostumada a viver uma vida ativa. Mas depois de tanto tempo sem as coisas que tínhamos, já nem nos lembramos mais como era tê-las. Quem iria imaginar que viveríamos sem internet... Sem informação. Nos acostumamos com os sons da guerra lá fora... Já faz 128 dias que não saímos para nada. A morte está à espreita além dos portões. Se você não morre interrogado pela milícia, pode morrer pelo contato com um dos infectados que vagam nas ruas em busca de abrigo e comida. Invadem o que encontram pela frente. Arrebentam portas, janelas... Eu devo dizer que tenho até sorte de estar onde estou. Aprendemos a viver em comunidade aqui. As pessoas tem suas funções. Cultivamos nosso próprio alimento. Cuidamos uns dos outros. E a única regra que conhecemos é: Ninguém entra. Ninguém sai. Hoje já encerrei minhas tarefas e espero ter uma noite tranquila de sono. É uma falsa esperança pois as noites nunca são tranquilas. Mesmo assim há sempre a possibilidade de sonhar.
16 de fevereiro.
Acordei assustada com uma explosão ensurdecedora. Nunca ouvi nada parecido. Nem quando a vila vizinha foi bombardeada. Minha cabeça dói. Tento me levantar mas sinto como se perdesse o equilíbrio. Há fumaça por todo o acampamento, mas não vejo fogo. É uma fumaça estranha. Sem cheiro. Densa. Como uma neblina. Aos poucos essa névoa vai se dissipando e eu vou recobrando os sentidos. Ainda está escuro mas vejo um clarão lá fora. Estou sozinha, o que é estranho. Geralmente dormem mais 12 mulheres na minha ala. Visto uma blusa, pois o clima está muito frio. Sinto algo pingar no meu pé. É sangue. Meu nariz está sangrando e eu não percebi. Inclino a cabeça para tras e pego um pedaço de pano ao lado do colchão. Caminho em direção a porta. Só o silêncio dentro do refúgio e os sons de gritos lá fora. Saindo do meu dormitório percebo que o frio é maior do que pensei. O que é realmente muito incomum. Fevereiro sempre foi uma época de calor, onde curtíamos a praia, enquanto os adolescentes mais inconsequentes comemoravam o carnaval e viviam como se não houvesse um dia seguinte. Bom... hoje vivemos sem saber se haverá um dia seguinte mas tenho certeza que não passa pela cabeça de ninguém nenhum motivo para se comemorar... Meu nariz parou de sangrar. O silêncio dentro do refúgio contrasta com o som lá de fora. Por cima dos muros vejo um clarão que indica que algo enorme está pegando fogo. Lá fora a fumaça é mais escura e sufocante. Diferente da névoa que agora já quase não se vê. Vejo destroços no pátio do que parece ser uma aeronave. Grito por Thomas e pelos nomes das pessoas com quem convivi nesse último ano. Não posso chamá-los de amigos, pois sempre fui muito reservada e apesar de me dar bem com todos que viviam aqui, nunca contei muito sobre minha vida anterior. Tive medo de me julgarem. Com tantas coisas para lidar, a última coisa que eles precisavam era conhecer a vida de uma garota estranha, e suas histórias que ninguém acreditava. Sem falar que minha última experiência em dividir com alguém as coisas que aconteceram na minha vida quase me fizeram ser internada como louca em um sanatório. Não. Aprendi a guardar algumas histórias para mim mesma e vestir minha máscara de pessoa normal. Ninguém gosta de alguém diferente... Alguém especial faz as outras pessoas lembrarem da própria trivialidade de suas vidas. Me acostumei a isso. Mesmo assim eu daria qualquer coisa para encontrar alguém agora que me explicasse o que está acontecendo. Vejo mais alguns destroços do avião. Um dos pedaços do que parece ter vindo da asa tem uma inscrição língua que não reconheço... Há alguns meses atrás eu digitaria no meu celular e pelo menos descobriria a origem desse avião... Continuo seguindo em direção à entrada do refúgio e então tenho uma visão que me faz gelar a espinha. A parte maior da frente do avião destruiu completamente a entrada do refúgio e vejo várias pessoas do outro lado removendo os escombros para tentar entrar! Corro de volta para meu dormitório apavorada. Não sei qual é a intenção das pessoas que estão tentando entrar. No desespero tropeço em um dos destroços e sinto que cortei minha perna. A dor é enorme e a fuzilagem parece enferrujada. Rasgo um pedaço do meu vestido e improviso um torniquete para estancar o sangue. Mordo outro pedaço do pano para tentar não gritar e assim não chamar a atenção dos estranhos que tentam entrar a força. Sangue sempre me deixou nervosa e sinto que estou prestes a desmaiar. Fecho os olhos e tento focar. Respiro fundo. Preciso raciocinar. Quem são essas pessoas? O que elas querem? Quando começo a prestar mais atenção na peça que tropecei ela lembra uma hélice partida. Olhando para os outros destroços como se fossem um quebra-cabecas começo a tentar formar na minha mente a imagem do avião e percebo intrigada que ele não é um avião moderno. Parece ser um avião antigo da segunda guerra. Meu irmão mais novo costumava colecionar soldadinhos e veículos antigos em miniatura e esses destroços lembram muito algumas partes dos aviões da sua coleção. Meus pensamentos são interrompidos com um grito que vem dos escombros do portão. Um soldado está gritando ordens numa língua que não reconheço e gesticulando para as pessoas entrarem . Eles conseguiram remover os últimos entulhos do que sobrou da entrada do grande muro que bloqueava o acesso deles. Uma multidão se expreme para passar pela abertura e começa a entrar. Me levanto rapidamente e retomo o rumo em direção ao meu dormitório antes que me vejam ali. Com o coração disparado e no ímpeto de fugir esqueço que minha perna está machucada mas a dor lascinante me impõe um rítmo de corrida que eu desejava que pudesse ser mais rápido. Mancando e me controlando para que a dor não selasse meu destino, consigo chegar até a entrada do dormitório. Fecho a porta e coloco a barra de madeira para evitar que entrem no barracão. Quando percebo que estão se aproximando, me lembro do esconderijo perfeito. Meu dormitório tem um acesso a uma especie de sótão não muito visível. Fica no teto e para acessá-lo é preciso puxar uma escada embutida. Subo em um dos beliches para tentar alcançar. Infelizmente minha altura não ajuda muito e quando me estico para puxar a alça que dá acesso à escada escorrego e acabo chamando a atenção das pessoas lá fora... Percebo que um dos guardas está batendo na porta e forçando a entrada. Mas quando olho para cima, vejo aliviada que meu esforço não foi em vão. Antes de escorregar consegui alcançar a alça e a escada estava mais baixa, agora ao meu alcance. Me levantei, subi as escadas e puxei de volta o acesso, que se fechou exatamente no mesmo instante em que os soldados conseguiram arrombar a porta do quarto. Eles gritam e fazem sinal para as pessoas entrarem no quarto. Encolhida no sótão, consigo observar pelas frestas a movimentação das famílias começando a se instalar ali e os soldados revirando os pertences que lá estavam. Quando começo a reparar nos civis tenho meu segundo choque de hoje. Os trajes das pessoas é o que me chama a atenção. Vejo homens com suspensórios e boinas. Mulheres com vestidos de punho rendados. Crianças com meia e sapato, as meninas com uma especie de chapéu em forma de véu na cabeça... Essas pessoas parecem definitivamente pertencer a uma outra época. Os soldados parecem confusos quando encontram uma caixa cheia de celulares que já estavam a muito tempo sem uso desde o apagão do ano passado que acabou com a internet e a comunicaçào via satélite. Eles parecem não reconhecer aqueles objetos. Como se não fizessem parte do mundo que eles conhecem. Nesse momento começo a lembrar das últimas notícias que o Thomas nos trouxe. Ele era o único que conseguia notícias do mundo exterior atraves do seu aparelho de rádio amador com o qual insistentemente tentava contado com outros sobreviventes. Todos se reuniam em volta da mesa à noite para ouvir dele as novidades. Se o foco da resistência ao sul tinha conseguido alguma vitória. Se o grupo de cientistas ao leste tinham feito algum progresso em busca de uma vacina... uma cura... uma solução... e eu me lembrei da noite em que ele reuniu todos para contar sobre algo promissor. Eu não fazia parte do grupinho deles. Como eu disse, sempre fui muito reservada. Mas enquanto cuidava de um reparo no sistema de irrigação da horta pude ouví-lo contar aos outros. Os cientistas estavam tentando algo inovador. Algo ridicularizado por muitos, mas que podia ser a chave da salvação da humanidade. Afinal todo problema tem uma origem. E se ao invés de tentar sanar as consequências do problema, fosse possível tratá-lo na sua origem? Com meu ferimento exposto, ardendo em febre, me forcei a me manter alerta e tentar lembrar... O que o Thomas contou naquela noite aos outros? E enquanto eu olhava pela fresta vi um dos meninos. Aquele de boina e suspensório, olhar para o teto. Na minha direção. E com uma expressão apática apontou o dedo diretamente para a fresta pela qual eu observava. Disse algo que não compreendi mas deduzi que estivesse chamando por alguém... Talvez sua mãe... Sinto que devo sair dali para não ser descoberta mas estou fraca. Nesse momento perco os sentidos.
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