hellicamiranda Hellica Miranda

Ela perdeu o controle da própria vida. Ou talvez tenha percebido, tarde demais, que nunca realmente teve. Agora, precisa de algo capaz de fazê-la sentir-se como a si mesma de novo. Ou talvez pela primeira vez. Mas uma mulher que é a personificação da cidade de Nova York pode ter exatamente o efeito contrário, e fazer com que ela se perca ainda mais, envolvida em seus próprios dilemas e em um confuso triângulo amoroso. E isso é só a natureza humana.


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If this town is just an apple

Then let me take a bite


Está começando a chover quando ela desce do carro em frente ao prédio. Todas as vezes em que chega ali, pensa a mesma coisa. O prédio enorme não simboliza nem dez por cento de toda a riqueza da família de Nate. Mas dá uma boa ideia.

São mais de cinquenta andares, e todos pertencem à indústria Novovich.

O escritório de seu namorado, luxuoso e imponente, fica no último. Ele tem acesso à cobertura, de onde diversas vezes tinham observado as luzes da cidade e, quando houvera sorte, algumas estrelas. A cobertura, onde Nate a pedira em casamento em um jantar, dois meses antes.

Em mais cinco meses, ela fará parte dessa família também. Só de pensar nisso, Tina sente um calafrio.

Passa pela portaria sem precisar se identificar, direto para o elevador. A maneira como a música tocando ao fundo a deixa ainda mais deslocada é ligeiramente tragicômica.

Ela beijara Nate diversas vezes naquele elevador. Muitas delas de madrugada, um pouco bêbados, vivendo a vida universitária ao máximo.

Agora, estão mais perto da vida adulta do que nunca.

Em algumas horas, depois de almoçarem — provavelmente em um restaurante muito caro, cuja conta Nate pagaria literalmente com um piscar de olhos — visitarão apartamentos à venda nas regiões mais cobiçadas de Manhattan, acompanhados por uma corretora de confiança da família Novovich.

Toda vez que pensa a respeito, Tina sabe menos explicações para como foi parar onde está, noiva de um multimilionário, prestes a ter uma festa de casamento com muita cobertura midiática. E esses pensamentos lhe ocorrem com mais frequência conforme o tempo passa e o casamento se aproxima.

Quando o elevador finalmente para no andar de Nate, ela desce, cumprimentando um executivo que passa por ela com um sorrisinho e se dirige até a sala dele.

Valerie não está em sua mesa, como de costume é encontrada. Ela sabe que nunca precisa anunciar a chegada de Tina, mas, às vezes, precisa avisar quando Nate se enrola em uma reunião ou quando lhe ocorre uma visita inesperada.

É horário de almoço, então Tina não se atém a isso. O prédio inteiro está mais vazio, e Nate deve estar esperando por ela sozinho em sua sala, exausto das burocracias cotidianas, mas prestes a abrir um sorriso quando a vir. É o que sempre faz.

Tina gira a maçaneta com cuidado — como sempre faz — e com um sorriso no rosto, buscando parecer tão animada quanto ele estava quando conversaram ao telefone mais cedo.

Seu rosto trava com os lábios abertos nesse sorriso, que se transforma em uma careta de choque.

Valerie não estava em sua mesa. Porque estava na mesa de Nate. Literalmente.

De repente, parece que Tina engoliu uma bola de golfe. E está prestes a sufocar. Precisa sair dali o mais rápido possível, ou vai começar a vomitar nos dois.

Ela deixa a porta como está, entreaberta, e caminha até o sofá de couro marrom a apenas alguns passos de distância.

Está tudo girando. Tudo confuso. Mas tudo tão claro.

Nate e Valerie. Ela ouvira essa ideia antes. Não só em sua própria mente, mas em comentários cochichados no corredor quando ela chegava.

Valerie podia ser só a secretária, mas ainda era uma herdeira. Um pouco mais nova que Nate — uma universitária, que previsível —, mas ambos estudaram no mesmo colégio no Upper East Side.

Valerie estava lá para rechear um currículo perfeito antes de um intercâmbio de seis semanas em Oxford.

Ela não é rica e bonita, mas muito inteligente. E eficiente em seu trabalho, mesmo que este pareça abaixo de seu nível. É claro que Valerie também é eficiente em outras coisas…

Tina fecha os olhos. Não é o momento de se deixar levar pela corrente errada de pensamentos. Apesar de ser um nível estratosférico de quebra do código de honra feminino e demonstrar um total de zero sororidade, a culpa não é de Valerie. A garota não deve nada a ela.

Tina percebe o que está fazendo. Rodando o anel de noivado no dedo, como se acostumara a fazer nos últimos meses, mas freneticamente. Que perfeita simbologia.

— Tina? — a voz dele está diferente. Caramba, como ela não fora capaz de perceber antes?

Ela abre os olhos e o encara. Não há mais nenhum vestígio daquele sorriso, daquele ânimo. Tina só consegue sentir nojo.

Valerie passa por eles, deixando a sala, arrumando discretamente a saia do vestido.

Tina engole em seco.

— Acho que cheguei adiantada. — diz, olhando fixamente nos olhos dele.

— Não, não. Eu é que devo te pedir desculpas…

Ela espera. Será que ele vai falar? Sobre o que acabou de acontecer? Ela espera.

— Precisei assinar de última hora uns papéis que a Valerie levou para mim.

Tina assente.

Assinar com o seu p…

— Era isso que estava fazendo? — ela pergunta.

Nate fica um pouco vermelho. É quase imperceptível.

Ele assente.

— Eu vi, Nate.

Uma sobrancelha dele se ergue. Nate está confuso. Mas entrando em pânico.

— Eu abri a porta. Eu vi vocês dois.

Nate já está em pânico. Em choque. Ele não diz nada, apesar da boca entreaberta.

— Acabou, Nate. Acabou. Não vamos mais brincar de casinha. Assim você pode brincar de CEO e secretária com a Valerie. Ou de médico. O que quer que vocês queiram.

Tina se levanta, esbarra em Nate de propósito e segue para o elevador.

Ela entra exatamente ao mesmo tempo que Valerie, os saltos das duas tocando o interior do elevador em sincronia.

Tina olha de soslaio para a garota. Jovem, linda, promissora. A pele vermelha, os olhos brilhando. Ambos pelos mesmos motivos: culpa, vergonha, paixão. É óbvio que Valerie está apaixonada por Nate.

Coitada.

Quando as portas se abrem, revelando o saguão, Tina se vira para Valerie.

— Boa sorte. — diz, olhando diretamente nos olhos da garota que abrira os seus.


***


Ela não volta para o trabalho. Também não almoça. O nó no estômago parece crescer a cada segundo, prestes a tomar conta de si.

Tina não hesita antes de ir correndo para casa.

Precisa se trancar no quarto e ter, pelo menos por alguns minutos, a chance de agir como uma pessoa normal em sua situação. Talvez quebrar tudo.

Mas, assim que pisa em casa, dá de cara com a mãe, que ostenta um sorriso enorme no rosto.

— Não vai me dizer que já escolheram o apartamento?

Tina precisa se controlar. Para não explodir. Para não começar a gritar.

— Não vai ter apartamento nenhum. — ela diz, a fala entrecortada pela falta de ar advinda do nervosismo.

Sua mãe fica nitidamente confusa.

— Bom, comprar uma casa no Upper East Side é impossível, mas talvez tenha alguma coisa no West Side… só que nã… — Tina não vai se esforçar tanto. Não vai ficar ouvindo o falatório desnecessário e animado de sua mãe. Não agora.

— Não, mãe. Você não entendeu. Não vai ter casa também. Porque não vai ter casamento.

Os olhos de sua mãe se arregalam.

— O quê? Que diabos aconteceu? Que história mais… absurda é essa?

— Nate está com a secretária dele. Ele está me traindo com ela.

— Nate está dormindo com a secretária? — a expressão da mãe de Tina se suaviza. De repente, está mais fácil de compreender.

Tina assente.

— Querida… não há a menor necessidade de fazer tanto escândalo por nada. É só um casinho. Isso não tem importância alguma se…

O quê? Não tem importância alguma? Acabei de te dizer que ele está me traindo com a secretária e o que você responde é que não tem importância alguma? — as primeiras lágrimas são as mais difíceis. Depois delas, as outras fluem sem que Tina sequer perceba. — Nós nem mesmo nos casamos e já estou sendo traída. Isso não tem importância alguma para você, mãe?

A outra mulher não diz nada.

— Por causa do dinheiro? Por causa do dinheiro dele está tudo bem que eu não seja respeitada? Que eu o tenha visto com a secretária, no escritório dele e, logo em seguida, ele tenha tido coragem de olhar para mim e mentir sobre isso?

— Tina, não seja tão radical… relacionamentos são desse jeito e…

— Radical? — ela suspira, prestes a arrancar os cabelos. — Relacionamentos são desse jeito? Onde, mãe? Em Chernobyl? Porque eu acredito que relacionamentos são construídos com respeito, tanto quanto amor. E, se quer que eu seja sincera, Nate nunca deve ter me amado. Mas isso é só teoria minha. Porque, para você, estou sendo radical, não é?

A mãe não diz mais nada. Escuta tudo calada, tentando intervir apenas quando Tina joga peças de roupa aleatórias em uma mochila.

— Não consigo conversar agora, mãe. — Tina diz, olhando firme para a mãe, parada à porta, desesperada, protestando, enquanto ela sai. — Não consigo ouvir nada disso agora. Acho que não consigo ouvir nada disso em momento nenhum. — ela murmura, batendo a porta enquanto sai de casa, sem rumo.

Tina não consegue pensar em nenhum lugar para onde ir. Nada para fazer. Lugar nenhum para correr.

Parece que toda sua vida não foi o suficiente para prepará-la para esse momento e, agora, está perdida em si mesma.

Ela ama Nate. Tem absoluta certeza disso. Ela o ama. Apesar de todas as dúvidas que surgiram no meio do caminho. Apesar de todas as vezes em que olhou para ele, para seu trabalho, para sua família e seu império, e se sentiu pequena, como um grão de areia.

Agora é exatamente assim que está se sentindo. Minúscula.

Precisa de algo, qualquer coisa, capaz de fazê-la sentir-se como a si mesma de novo. Ou talvez pela primeira vez.


***


É incrível como um lugar pode ser tão escuro com tantas luzes coloridas piscando ao mesmo tempo.

Tina precisa piscar algumas vezes para se adaptar o mínimo possível ao ambiente.

Não está nem um pouco acostumada com boates. As vezes em que frequentara podem ser contadas nos dedos da mão e, em quase todas, estivera com Nate, um bom tempo atrás.

A sensação de fazer algo relativamente novo é revigorante, e parece ainda mais intensa quando ela pega, por impulso, um copo que o bartender coloca sobre o balcão, claramente para alguém que não ela.

Eles compartilham um olhar extremamente breve, mas nenhum dos dois diz nada, e ninguém aparece reivindicando a bebida roubada.

Tina leva o copo até a boca enquanto caminha pela boate, olhando sempre em frente, ignorando tudo ao seu redor. A bebida é forte, e ela crispa o cenho em reação ao gosto, mas se obriga a retornar à expressão mais neutra possível. Não demora muito para que o gosto de limão e hortelã se sobressaiam em relação ao choque e à falta de costume ao álcool.

A bebida é boa, e Tina vira o restante do conteúdo de uma vez só, abandonando o copo em uma mesa aleatória.

A boate é imensa, e o balcão de bebidas segue por quase toda sua extensão, abrindo uma breve lacuna apenas na pista de dança, mas contornando-a por trás.

Com tanto álcool disponível aqui, Cersei Lannister nunca precisaria de fogovivo., Tina pensa.

Ela para em frente ao balcão mais uma vez, com um bartender logo adiante.

— O melhor que você tiver. — ela diz. Ele assente, e dá as costas, mas Tina o chama de novo. — Mas dois.

O bartender assente outra vez.

Tina não pensa a respeito disso. Não pensa sobre nada. Só está ali, fazendo o que está fazendo — e nunca fez — e isso é tudo. Ela pode lidar com as consequências depois. Não pode? Afinal de contas, o que pode acontecer? Uma ressaca e muito vômito? Parece algo com o que ela pode lidar.

Ela bebe os dois copos que o bartender entrega em não mais que um minuto. Depois, dirige a ele um olhar que já é o suficiente para traduzir seu pedido. Rapidamente tem mais dois copos à sua frente.

Nunca bebeu tanto assim. Nunca, nunca, nunca… todas as coisas que nunca fez até então, ou está prestes a fazer…

Tina olha para a pista de dança, onde as pessoas parecem estar se divertindo como ela nunca se divertiu. De repente, ela sabe que tem que dançar. Dançar. Só isso. Agora. Por enquanto.


***


É estranho que ela não reconheça nenhuma das músicas que as outras pessoas — que parecem quase todas da sua idade — na pista de dança estão cantando enquanto dançam. Mas é pior ainda que ela não consiga sequer identificar o que as vozes nas músicas estão cantando.

No entanto, depois da terceira ou da quarta música, regada por mais alguns pares de doses de seja lá o que o bartender a está servindo, Tina deixa de se importar.

Limão e hortelã não estão mais só em seus lábios e em sua garganta, mas em todo lugar. Exalando por seus poros, escorrendo por sua pele com o suor.

Tina nem percebe em que momento ele se aproxima dela. O homem com o comprimido rosa. Nenhuma palavra é dita. Ela nem mesmo vê seus olhos. Podem ser de qualquer cor. Ele só estica a mão, e ela estica a sua, aceitando o que ele oferece.

No mesmo instante em que coloca o comprimido na boca, como num passe de mágica, ela surge ao seu lado.

— Você não quer tomar isso com um mojito. Isso aí é 40% álcool. — ela oferece uma garrafa d’água, que Tina também aceita, engolindo o comprimido, sem tirar os olhos da mulher.

É possível que alguém brilhe?

É possível que alguém se pareça com Nova York?

É possível que alguém seja tão bonita?

A mulher sorri para Tina.

— Como você se chama? — ela pergunta, bebendo de canudinho uma bebida vermelha.

Tina olha para ela por alguns instantes, pensando.

Seus lábios são vermelhos. Vermelhos de um jeito anormal, rebelde, quente, como a bebida em sua mão.

— Nancy. — Tina mente. Pelo olhar e pelo sorriso que se forma nos lábios da outra mulher, é um pouco óbvio que ela percebe que Tina está mentindo, mas não diz nada. Não é hora de questionar nada. — E você?

— Bonnie. — por outro lado, ela não está mentindo. Isso torna as coisas ainda piores. E melhores. — Você quer dançar, Nancy? — ela sorri outra vez. Dessa vez, porém, Tina sente um arrepio percorrer seu corpo. Um arrepio diferente. Ela quer dançar, como nunca antes quis.

Tina só assente, e parece que é o timing suficiente para que a droga faça efeito, misturando-se ao álcool em seu organismo, fazendo com que ela veja as luzes coloridas dançando também, assim como ela e Bonnie, cujos corpos estão tão perto um do outro que a energia parece fluir em intensas e imensas correntes elétricas, chocando-as no ritmo das músicas que tocam.

A pista de dança está cheia, e Tina tem consciência disso, porque outros corpos também tocam o seu, mas não é suficiente para que ela repare, para que ela se importe.

Ela nunca sentiu o que está sentindo agora.

Nenhuma noite nunca foi como esta.

De repente, enquanto ainda dançam, um homem esbarra em Tina, jogando-a ligeiramente para a frente, fazendo com que ela vá direto para cima de Bonnie.

Suas peles se tocam, e toda a energia acumulada é liberada de uma só vez.

Elas se encaram. Os olhos de Tina estão arregalados, o rosto vermelho, os cabelos grudados de suor.

Ela vê Bonnie olhando para ela. Olhando para seus lábios.

Mas ela não prevê o passo seguinte.

Não prevê quando os lábios de Bonnie se juntam aos seus, colocando-a em um estado de choque tão intenso que ela fica completamente imóvel por alguns instantes, incapaz de reagir.

Nenhuma das drogas em seu organismo tem sequer um por cento da potência que o beijo de Bonnie tem. É uma explosão atômica.

Tina está embriagada. Da traição, da revolta, das palavras não ditas, do álcool, do ecstasy, de Bonnie…

Ela tem gosto de maçã. E álcool… e um mundo novo… e perdição.

Se Tina for para o inferno esta noite, sabe que não se importará por queimar.

— Quer ir embora daqui? — Bonnie pergunta, assim que seus lábios se separam.

Seus rostos ainda estão colados e, quando ela fala, seus lábios tocam a pele de Tina, suavemente, mas silvestres, como as asas de uma borboleta.

Ela quer?

Tina assente, ainda fitando Bonnie. Seus olhos simplesmente não conseguem desviar. Caíram na pior das armadilhas e, agora, são incapazes de se livrar.

— Vamos. — Bonnie oferece a mão para ela, já de costas, o corpo já dirigindo-se à porta.

Tina segura sua mão, e a segue para fora, mas dá uma rápida olhada ao seu redor. Está tudo girando, e conhece o lugar há poucas horas, mas há uma ligeira sensação de pertencimento se formando.

Do lado de fora, parece que existe ar em excesso. Tanto quanto ela precisa para suprir as necessidades elevadas.

A música do interior ainda é audível pelo lado de fora, e Bonnie está dançando discretamente nos segundos que demoram para que decidam o que fazer.

Dessa vez é Tina quem se aproxima dela, afastando uma mecha úmida de cabelo de seu rosto, antes de, sem pensar nem um pouco, grudar seus lábios ardentes de álcool nos dela.

Bonnie sorri quando a beija, e sua mão apoia Tina pela cintura no exato momento em que ela se desequilibra, quase despencando.

Esta noite, ela foi parar alto demais para pensar em cair.


***


Quando seus lábios se tocam, não é a primeira vez. É um reencontro, ainda que não faça muito tempo desde o primeiro. E o segundo. E o terceiro, ainda no elevador vazio — e depois no corredor — do hotel.

Mas é como se todas as mais brilhantes cores dos mundo se agrupassem no mais suntuoso arco-íris já conhecido.

E é um privilégio que, pelo menos nesse momento, só Tina tem.

Um privilégio que parece lhe estar custando pequenas doses de sanidade.

Ela está sóbria por alguns poucos segundos, e sabe que Bonnie também está assim. A lucidez vem e vai, permitindo que ela identifique apenas alguns lampejos. O barulho de saltos sendo lançados ao chão… o zíper de um vestido preto… deslizando, depois emperrado, depois arrebentado, quebrado e caído em algum canto no chão. Os lábios de Bonnie perto demais de seu ouvido…

Tina não seria capaz de lembrar de todos os detalhes. Mas ela não seria capaz de esquecer de cada milímetro de pele se encostando, se encontrando, queimando pelo caminho.

O quinto, o sexto, o décimo beijo…

O momento em que as luzes estavam apagadas e, mesmo assim, elas ainda podiam ver uma à outra. Perto demais, e confortável, mesmo depois de todas e tantas coisas.

Tina fecha os olhos, lamentando brevemente consigo mesma que não seja possível imortalizar momentos específicos.

Porque, de alguma forma, parece que todos os outros momentos de sua vida foram insignificantes quando comparados a esse.


***


Ela vê, pela imensa vidraça do quarto de hotel, a chuva torrencial inundando a cidade e atravessando a noite em cortes prateados.

As luzes coloridas de Nova York não parecem — e de fato geralmente não são — nem um pouco afetadas pela chuva.

E, assim como a cidade, Bonnie, deitada ao seu lado, também brilha.

Os cabelos, estirados em todas as direções, livres, selvagens, são quase cintilantes.

Tina está bêbada, e tudo está mais intenso, mais bonito, mais vivo, mas ela tem total certeza de que nunca, em toda sua vida, vira algo tão lindo.

Ela estica a mão, apenas o suficiente para tocar o ombro da outra garota. A pele mais macia que os lençóis.

Ela espera, e espera de verdade, que se lembre disso de manhã, ao acordar. Que ainda se lembre da sensação...

É como segurar o coração da cidade na própria mão.


***


Quando ela acorda, no entanto, tudo está mais vazio.

Tina não precisa chamar ou procurar pelo quarto de hotel. É claro que Bonnie foi embora. Era claro que isso aconteceria.

Uma noite como aquela não seria passível de outro tipo de desfecho. Ela nem mesmo saberia lidar com outro tipo de desfecho. O que faria? Um aperto de mão resolveria a situação e encerraria a história?

E sua cabeça está doendo tanto que não consegue sequer pensar muito. As lembranças da noite passada são apenas flashes multicoloridos e turbulentos, em ondas que vêm e a deixam tonta e enjoada.

Tina escova os dentes com as coisas do hotel, e toma banho na água quente porque, apesar de precisar despertar, não é o que ela quer. Não está nem pronta para acordar.

Depois que sai do banho, enrolada em um roupão que certamente cobrira inúmeros corpos antes do seu, ela se joga de volta na cama, apenas esticando a mão para olhar o horário na tela do celular.

Quase duas da tarde.

Tem tantas chamadas perdidas de sua mãe que nem parece um número real. Talvez, a qualquer instante, a polícia esteja atrás dela.

Talvez.

Mas eles podem ir mais tarde. Agora ela só quer dormir.

Jan. 21, 2021, 6:34 a.m. 0 Report Embed Follow story
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