isaautora Isa Miranda

Eva estava refazendo sua vida depois de ficar 2 anos internada em uma clínica de repouso. Recém divorciada ela decide construir uma nova vida e com isso ter de volta a guarda da filha. Entre suas tentativas de acertos, reencontra um amigo de infância e cria novos laços de amizade.


Short Story Not for children under 13.

#amor #perserverança #superação #amardemais #conto
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Eva

Quando o amor vira uma doença,
dói como uma ferida aberta
machucando a alma dos seres em sua presença.
Quando deixa de ser cura e vira uma doença,
maltrata os corações e faz de você má influência.
Quando o amor vira pavor,
vira temor, amargor.
Não é mais amor.
Repense seus sentimentos,
olhe-se por dentro, pare por um momento
e descobrirá que amor mesmo é o que vem de dentro.
Ame-se primeiro,
e todos você amará sem sofreguidão.

(Ellen dos Santos)


O tictac do relógio era o único som que quebrava a quietude do ambiente. Ainda enrolada nos lençóis dormia tranquilamente, quando ouviu o som distante começar a se aproximar.

— Hum, só mais um minuto... – Sonolenta, murmurou puxando o lençol e cobrindo a cabeça.

Alguns minutos se passaram quando finalmente o lençol voou no ar e a jovem dorminhoca acordou; olhando à sua volta, procurava por algo, quando finalmente encontrou sobre o amontoado de caixas encostado na parede de seu quarto no novo apartamento o seu smartphone desligado.

Rapidamente se levantou, tropeçando pelo caminho, quando pegou o aparelho e ligou.

— Ahhhhhh... Eu vou chegar atrasada no meu primeiro dia na empresa. – Correu pelo quarto tirando de dentro de uma mala a toalha e pegando a roupa que na noite passada havia separado para não correr o risco de se atrasar. Ledo engano. Se perdesse o trem das 6h20, com certeza se atrasaria.

Correu pelo quarto, entrou no banheiro e depois de um banho rápido se vestiu com calça social e blusa branca de manga curta em cetim; pegou seus scarpins de salto baixo, colocou-o dentro de uma bolsa e calçou suas Havaianas rosa. Decidiu terminar de se arrumar durante o trajeto à nova empresa.

Olhava para o relógio a cada 5 minutos, e o motorista da van parecia entender bem da necessidade dos passageiros. Acelerando o veículo, finalmente chegou à estação de trem. A jovem voltou a correr, subiu a rampa para assim chegar à catraca e passar o cartão de passagem. O trem já sinalizava a partida quando ela desceu a escadaria acenando para esperar.

— Espere, tenho que ir nesse trem.

No entanto, as portas se fecharam diante dos seus olhos. Segundos. Foi questão de segundos, e ela entraria naquele vagão. Desolada, olhava a porta fechada e o amontoado de passageiros se espremendo dentro do vagão.

— Ei, moça, anda logo... – Uma voz gritou do seu lado.

Quando virou o rosto, viu três rapazes segurarem a porta, impedindo e arriscando-se machucarem para que ela entrasse. O sorriso brotou de imediato, e sem pestanejar ela correu para entrar no vagão. O guarda da estação já se aproximava para advertir os rapazes quando a porta se fechou e a jovem sorriu para ele do outro lado da porta.

O guarda balançou o rosto negativamente para todos os quartos. A jovem se desculpou, mesmo que o homem não a ouvisse, mas compreenderia. Em resposta recebeu uma piscadela e o viu acenar para o maquinista sair com o trem.

Ela olhou os três rapazes e agradeceu. Inspirou fundo e aliviada por pegar o trem. Segurou-se na barra de ferro entre o amontoado de passageiros espremidos naquele vagão.

"Ainda bem que consegui. Primeiro dia no trabalho e atrasada? Vida nova tem que começar com pé direito, exatamente isso. Eva Cristiana, hoje é o primeiro dia do resto de sua vida nova."

Virou-se e colocou o fone de ouvido, selecionando na sua playlist das bandas de rock nacional: Jota Quest, Titãs, Paralamas do Sucesso, Skank, Legião Urbana, entre outras.


****


O dia tinha começado mal. Mesmo com toda aquela correria, conseguiu pegar o trem. No entanto o mesmo atrasou com problemas técnicos em uma estação. Eva chegou à empresa com cinco minutos de atraso. Chateada chegou à recepção e, após informar que estava em seu primeiro dia, pediram para aguardar. Pacientemente sentou em um dos largos sofás que tinha na ampla recepção daquela empresa de call center e aguardou.

Alguns minutos depois uma jovem alta e bem vestida se aproximou sorridente e demonstrava estar sem jeito.

— Olá, deve ser Eva Cristiana. Sou Jessica. Desculpe o atraso, hoje cheguei atrasada.

— Olá, Jessica, não se preocupe, não esperei muito. – Eva, sorridente, sentia um alívio por não ser a única atrasada. — Segunda-feira sempre há esse tumulto.

— É verdade, em toda segunda-feira acontece algo, maldito trem que atrasou – sorriu e acenou para Eva lhe seguir. – Vamos. Sou sua instrutora e irei preparar para entrar na operação. Então, pronta?

— Certamente que sim.

Eva seguiu Jessica. Ambas passaram pela recepção e seguiram para o elevador principal; após alguns andares chegaram ao setor de treinamento. Enquanto caminhavam pelo enorme corredor onde na lateral direita havia enormes janelas mostrando a vista da cidade do alto do décimo andar, fez Eva suspirar.

— Espero que se adapte rápido, Eva. Nós faremos um treinamento de uma semana. O serviço não é complicado. Basicamente aprenderá a utilizar o nosso sistema e atender os clientes que necessitam de reparo nas redes de monitoramento de veículos de carga de que cuidamos – Jessica instruía Eva.

— Acredito que sim. Aliás sou toda ouvidos, aprendo rápido.

— Ótimo.

Jessica explicava sobre todos os procedimentos, mostrando os departamentos da empresa. Uma porta se abriu e três rapazes saíram rindo e falando de alguns procedimentos operacionais. Esses passaram por ambas e cumprimentaram Jessica.

— Essa é a nova garota que ficará no lugar de Elena? – O rapaz moreno olhava para Eva de cima a baixo.

— Sim, Eva Cristiana vai substituir Elena durante a licença maternidade. – Jessica apontou o trio a Eva. – Eva, esses são os nossos T.I. Jeferson, Evaldo e Pedro – sorriu. – Se o seu computador der um "bug", são eles que resolvem... bom, tentam... – Olhou o trio estreitando os olhos.

— Ei, somos os caras que resolvem, mas algumas vezes o problema está entre a tela e a cadeira. – Jeferson, que inicialmente perguntara quem era Eva, era o mais engraçadinho, cheio de piadinhas.

— Engraçadinho! – Jessica fez uma expressão de desdém.

Evaldo era o mais antigo e riu, indo até Eva.

— Precisando, é só abrir um chamado no sistema que vamos até seu terminal.

Eva somente sorria, achando tudo bem divertido.

— Obrigada, Sr. Evaldo.

— Senhor não, por favor... – Evaldo fez uma expressão desapontado. – Só Evaldo.

Jeferson começou a rir do velho amigo.

O homem de cabelos grisalhos virou-se para o terceiro rapaz, que estava um tanto desligado mexendo em seu smartphone, mas antes que ele falasse algo foi interrompido pela voz curiosa de Eva.

— Pedro?! – Eva já havia notado algo familiar no rapaz alto de óculos e calado.

Ele tirou finalmente os olhos da tela do aparelho e ficou um tempo olhando para Eva; tinha uma expressão pensativa, até que se transformou em curiosidade.

— Eva?!

— Ué, vocês se conhecem? – Jeferson aproximou-se curioso juntamente com Evaldo e Jessica.

— Pedro! Minha nossa, quanto tempo! – Eva sorriu abertamente.

— Nossa, Eva, realmente...

Jeferson parecia ter visto algo assustador e andou até Pedro, passando o braço no ombro do outro.

— Meu Deus, Pedro riu... Corre, Evaldo! Vai comprar um guarda-chuva, vai ter um dilúvio.

Pedro olhou para Jeferson e inspirou baixo.

— Que legal! – Jessica aproximou-se deles. – Vocês se conhecem, e pelo visto não é algo recente. – As palavras de Jessica tinham um tom de curiosidade.

— Sim, eu e o Pedro éramos amigos de infância. Crescemos no mesmo bairro e estudamos nas mesmas escolas até o ensino médio – Eva tagarelou sem parar quando percebeu todos olhando-a, inclusive Pedro, que estava tenso com o outro pendurado em seu ombro. – Desculpa, empolguei-me. – Ficou sem jeito.

— Tudo bem. Bom, vamos todos voltar ao trabalho. – Jessica fez um gesto de quem estava enxotando o trio do T.I. e virou-se para Eva. – Eva, vamos ao seu treinamento. – Apontou o corredor para ela continuar a segui-la.

Evaldo e Jeferson ficaram encarando Pedro com curiosidade.

— Mundo pequeno. – Pedro virou-se e continuou pelo corredor sem antes dar uma última olhada em Eva.


****


Aquela manhã passara rápido demais, e Eva estava exausta com tantas instruções que recebera. Apesar de ser algo aparentemente simples, ela tinha que conhecer de todos os processos operacionais da empresa, e eram muitos. A hora do almoço chegou, e ela pegou sua bolsa térmica e caminhou para a área de refeições no andar abaixo daquele que trabalhava.

Assim que chegou notou que havia muitas pessoas e sentiu-se deslocada. Procurou por Pedro, que ao menos era um conhecido, mas não o viu. Notou então Jessica sentada em uma mesa sozinha e se aproximou.

— Jessica, posso sentar aqui?

— Claro – Jessica sorriu e confirmou.

— Está cheio aqui.

— Sim, hoje fizeram uma reunião com as equipes que terminou ainda há pouco. Enfim, todos saíram ao mesmo tempo para o almoço.

Eva olhava em volta; tinha ainda esperança de ver Pedro.

Jessica notou enquanto via as mensagens na tela de seu smartphone.

— O trio T.I. entra em horários diferentes para almoçar.

— Hum? – Eva mastigava um pedaço de frango quando parou olhando-a sem jeito. – Ah, que pena!

— Hum, então, Pedro e você são amigos de infância.

— Sim. Éramos muito unidos, mas depois que fui para faculdade nunca mais tivemos contato. Já faz uns oito ou nove anos.

— Nove anos. – A voz de Pedro surgiu de trás delas.

Ambas chegaram a dar um leve pulo da cadeira por serem surpreendidas.

— Nossa, Pedro! Faz um sinal de que está chegando. – Jessica colocou a mão sobre o peito para se recuperar do leve susto que levou.

— Desculpa, Jessica. – Pedro olhou para Eva.

— Eu desci para fumar quando vi ambas aqui sentadas, achei que tinham me visto. – Pedro tinha uma expressão suave. Apesar de não ser muito de sorrir, esboçou um leve sorriso a sua velha amiga.

— Que bom, digo... – Eva pigarreou. – Então, nove anos. Minha nossa! É muito tempo.

— Realmente.

Jessica olhava ambos, e sua mente trabalhou rapidamente.

— Que tal chamarmos o Jeferson e o Evaldo para beber uma cerveja na sexta-feira, depois do expediente?

— Ah! – Eva olhou para ela e depois para Pedro.

— Por mim, tudo bem.

— Eu não bebo. – Eva respondeu baixinho.

— Beba refrigerante. Vamos jogar conversa fora. Horário do rush é complicado. Ficar trancada dentro de um trem lotado já me basta pela manhã. – Jessica decidiu por eles.

— Avisarei a eles. – Pedro ainda olhava Eva. – Eu encontro você na portaria.

O rapaz virou-se, acenou levemente e se direcionou para a área de fumantes.

Eva seguiu-o com olhar mastigando um pouco do arroz com legumes que trouxera na marmita.

— Uma curiosidade. Eva. Pedro sempre foi assim, de falar pouco com essa expressão apática? Porque em três anos que ele trabalha aqui, foi a primeira vez que vimos ele insinuar uma expressão de sorriso quando lembrou de você.

Eva olhou a instrutora e sorriu balançando a cabeça sem jeito, confirmando.

— Ele é assim calado mesmo. Adorava ficar mexendo em equipamentos eletrônicos e vídeo games. Sempre foi na dele. Nunca vi o Pedro perder a calma com ninguém. – Virou o rosto para a direção da área de fumantes, vendo-o encostar na parede e acender o cigarro. – Não mudou pelo visto.


****


Final do dia, e Eva, logo que entrou no vagão, conseguiu um canto em meio ao amontoado de pessoas para pegar seu smartphone e ouvir a mensagem. Colocou o fone de ouvido e tocou na tela um pouco apreensiva.

"— Eva, pela última vez, para de ligar para minha casa, para de mandar mensagens em todo lugar. Será que ainda não entendeu que não pode chegar perto de nós." – A voz masculina em um tom irritado, quase gritando, era de Rodrigo, seu ex-marido.

Eva sentiu os olhos lacrimejarem e tentou prender o choro. Engolindo em seco, tocou no segundo áudio.

"— Desapareça de uma vez. Nunca mais quero ver sua cara e, se eu souber que chegou perto de mim e da Bia, vou acionar a polícia. Sabe bem que não pode chegar a 200 metros de nós."

Eva sentiu uma terrível dor no peito e fungou. Disfarçando para as pessoas não notarem que estava prestes a chorar, encolheu-se perto da porta de saída do vagão e virou o rosto para olhar pelo vidro a paisagem da cidade noturna que passava apressada pelo movimento do trem.

"Eu só queria ver a Bia."

Eva e Rodrigo haviam se separado definitivamente alguns meses depois de um casamento de 6 anos fracassado. Perdeu a guarda de sua filha por conta de um incidente que ela tinha certeza que não fora sua culpa. Toda sua vida sofreu uma enorme e drástica mudança depois desse momento lamentável.

Eva quase matou a própria filha no apartamento, quando se encheu de remédios calmantes e esqueceu o fogareiro aberto. Se não fosse um vizinho, ambas teriam morrido sufocadas pelo gás.

Eva vivia em pé de guerra com o marido. Ciumenta ao extremo, sempre questionando e com raiva de toda mulher que se aproximava de Rodrigo. Havia momentos em que ficava tão descontrolada, que fazia ameaças; chantagens emocionais eram constantes.

"— Você não me ama."

Rodrigo a princípio acreditava que estava falhando com a esposa e no começo cedia às suas chantagens e pedidos de ficar sempre ao lado dela. Faziam tudo juntos. A liberdade de ir e vir começou a ficar restrita, chegando a ser quase uma prisão.

"— Eu não aguento mais Eva. Não posso ir nem à esquina, que vem milhares que perguntas. Tenho que passar relatórios diários do que faço a todo momento. Isso aqui não é um casamento; virou uma prisão."

Brigas cada vez maiores que em mais de quatro anos saturou Rodrigo. Claro que ele nunca poderia imaginar que uma traição descoberta por Eva transformaria sua esposa em uma neurótica que sempre lhe jogava na cara o deslize.

As crises de ciúmes e as chantagens emocionais finalmente tiveram seu ápice, e Eva em um descuido acabou ferindo o marido com uma faca, na tentativa de fazê-lo ficar em casa. Ela o segurou, mas estava com o objeto em mão, o que gerou o acidente.

Rodrigo não sabia mais o que fazer. Ele tinha certeza de que Eva estava doente, de que precisava de ajuda. Muitas vezes pedia para ir falar com psicólogo, mas ela negava dizendo que estava bem e que iria mudar. Depois daquele acidente, ela realmente conseguiu se controlar, e tiveram alguns meses de paz. Rodrigo acreditava que finalmente a sua esposa havia melhorado e que tudo voltaria ao normal.

A paz durou pouco, e tudo foi por água abaixo quando Eva começou a reclamar da própria filha, alegando que Rodrigo ficava mais tempo com a menina em vez de lhe dar atenção. Para Rodrigo, aquele era um absurdo, e chegou a sentir muita raiva de Eva, que ficava dia e noite reclamando por atenção.

Rodrigo já não sabia mais como agir com ela, e todos a sua volta começaram a alegar que Eva havia se tornado um perigo tanto para ele quanto para a própria filha. Achavam um absurdo uma mãe demonstrar ciúmes da própria filha.

Todos os dias ele tentava inutilmente fazer algo para que Eva mudasse; tentava pacientemente persuadi-la a ir se tratar, buscar ajuda e conversar com psicólogo. Talvez isso ajudasse a melhorar. Eva sempre se negava e ficava muito irritada com as acusações de todos.

"— Eu amo a Bia, vocês não têm o direito de me acusar de ter ciúmes de minha filha."

Eva sentia raiva e, por mais que tentasse fazer que entendessem seu ponto de vista, já tinha uma imagem forte de neurótica construída na mente de todos. Sua família já não acreditava nela. Chocada com tudo que estava acontecendo, passou a tomar calmantes por conta própria para fugir de todo o inferno que estava vivendo.

E esse foi o seu erro. Tomou uma dose extremamente forte e dormiu, deixando o gás aberto, o que quase levou Beatriz à morte. A menina ficou alguns dias internada com estado delicado, enquanto Eva foi internada na área psiquiátrica.

Rodrigo estava apavorado. Motivado por familiares, pediu a separação e depois a guarda de Beatriz; o que foi concedido, já que tinha provas suficientes de que Eva era perigosa para si e para a filha.

Depois de alguns meses de cuidados no hospital, Eva saiu e voltou para casa de seus pais. Tentou algumas vezes ver a filha, o que não foi permitido por Rodrigo. Desolada e sem chão, entrou em uma profunda depressão. Perdeu tudo e se sentia a pior das mulheres. Uma tentativa de suicídio foi o cume de tudo, e novamente internada desistiu de viver.

A paisagem noturna vista pela janela do vagão distraiu Eva fazendo-a recordar desse passado sofrido. Ela se lembra bem do momento exato em que foi salva desse sofrimento.

"— Mamãe, estou com saudades. Quando você vem me ver?"

A voz de Bia, que chorosa ecoava do aparelho de telefone, atingiu o coração de Eva e, como um estalo, a despertou daquele estado vegetativo.

"— Em breve, meu anjo. Vamos ficar juntas, em breve..."

Desde aquele dia, Eva decidiu que sua vida mudaria e que teria a guarda de sua filha de volta. Começou a aceitar o tratamento na clínica em que os pais haviam-na internado por ordem do juiz. Alguns meses depois, ela recebeu alta e, determinada a retomar sua vida, voltou para casa dos pais, começando sua nova jornada.

Quando saltou na estação de Campo Grande, inspirou fundo e correu para pegar a van para a residência onde morava. Conseguira comprar aquele apartamento quando recebeu uma boa "recompensa" em dinheiro na separação do Rodrigo. Ela entendia que aquele dinheiro era um "cala boca" para se manter longe da filha e dele.


****


— Eva, hoje é sexta. Vamos a um bar de música ao vivo na Lapa. – Jessica sempre decidia os programas de todos.

— Claro, vai ser divertido.

— Pedro vai; aliás ele só disse que sim quando falei que você iria. – Piscou maliciosamente para Eva.

— Ah, que legal! – Sem jeito, sorriu e voltou ao seu trabalho.

No final do expediente, Jeferson, Pedro e Evaldo estavam na portaria esperando por Jessica e Eva. Ambas não demoraram muito e logo chegaram.

— Vamos curtir um pouco, pessoal. – Jessica segurou no braço de Jeferson.

— Vem, gata. Hoje só chegamos em casa ao amanhecer.

— Eu não vou ficar muito tempo, sabe? Moro longe. – Eva olhou para Pedro. — Ficarei até as 21h. É o máximo que dá; se não fica difícil chegar em Campo Grande.

Pedro ouviu Eva falando enquanto estava com Evaldo, que tagarelava sem parar sobre uns procedimentos do setor deles que tinha que fazer na segunda-feira.

— Eva, se ficar muito tarde, pode ir para meu apartamento. Melhor que ir para um lugar longe sozinha. – Pedro disse tão naturalmente, que não percebeu o olhar de todos para ele.

— Nossa, Pedro. Nem pagou a bebida para a moça e já chamou para o crime. – Jeferson foi quem quebrou o clima surpreso de todos com aquela piadinha. – Calma. amigo. Vai ao menos convidando para beber, conversar e depois leva para casa. – Jeferson riu.

Eva imediatamente ficou sem jeito. Ela sabia, ou ao menos pelo que conhecia de seu amigo de infância, que aquele convite não tinha nenhuma maldade ou conotação amorosa. Ela notou que Pedro ficou sério. Sabia que ele tinha ficado sem jeito. Com base em algumas coisas que conhecia da personalidade do amigo, ela entendia aquele silêncio e expressão séria e contida.

— Eu sei... – Eva cortou as brincadeiras de Jeferson. – Ele não tem essa maldade, Jeferson. Minha nossa! – Andou até Pedro e segurou seu braço. – Somos amigos e, nesse caso, já dormi muitas vezes em sua casa. – Olhou para Pedro pedindo um olhar de confirmação.

— Desculpe o Jeferson, Eva. Esse idiota vê maldade em tudo. – Jessica foi logo repreendendo o "namorido".

— Ahhh, qual é? Foi uma piada. Vocês são sem graça, isso sim.

— Pedro, eu gostei do convite, mas prefiro ir para casa.

Pedro olhou um tempo, e voltaram a andar direto para o bar na Lapa.

A noite estava realmente animada, e Eva vez ou outra olhava para o relógio. Pedro se aproximou e chamou a atenção.

— Preocupada com a hora?

— Sim. Acho que vou embora agora. Ainda tenho que fazer uma boa caminhada até o ônibus.

— Eu vou também; acompanho-a até o ponto.

Ambos se despediram de todos e seguiram caminhando até o ponto do ônibus que Eva tomaria para sua casa. Durante esse trajeto, ficaram em silêncio, até que Pedro puxou assunto.

— Eva, seria intromissão minha se te perguntasse algo pessoal?

— Ah, que coisa! Claro que pode perguntar.

— Vejo sempre você olhando uma foto de uma menina. Sua filha, presumo.

— Sim. Bia, minha filha.

— Eu notei que olha a foto com tristeza.

— Ela não vive comigo. Mora com Rodrigo. Você deve se lembrar dele. Fomos para faculdade juntos e depois nos casamos. Em um ano engravidei, e minha filha hoje tem sete anos. – Eva tinha um tom de voz triste ao relatar aquele momento ao amigo.

— E ela não quis ficar com você?

— Na verdade perdi a guarda dela. Estou tentando reaver, mas me foi negada duas vezes.

— Que coisa! – Pedro ficou imaginando o que Eva teria feito para perder a guarda da filha.

— Olha, deve estar se perguntando o que eu fiz de tão grave para perder a guarda dela, não é? – Eva parou de frente ao ponto final do ônibus, e Pedro esperou ao seu lado ainda olhando-a. — Eu quase a matei.

Surpreso, não fez mais perguntas. Silencioso ao lado de sua amiga de infância, esperou o ônibus chegar.

— Deve estar achando que sou uma maluca.

— Não, só pensando que, se um dia você quiser contar, estarei aqui para ouvir.

Eva rapidamente olhou-o, e ambos ficaram se encarando até que o ônibus chegou. Ambos se despediram sem mais nada dizer.


****


— Domingo de sol. Dia lindo, e aqui estamos as duas nessa praia maravilhosa tomando sol e uma cerveja gelada. – Jessica se ajeitava na espreguiçadeira ao lado de Eva.

— Eu não bebo, mas confesso que o dia está realmente lindo. Vir a praia foi uma boa ideia.

— Eu disse. – Jessica olhava-a por cima do óculos escuros. – E lá vem a dupla com nossos lanches.

Eva olhou na direção que a amiga olhava e inspirou, percebendo que Pedro estava junto de Jeferson.

— Vocês o convidaram? Achei que era só eu. – Ela parecia sem jeito. Desde a sexta-feira passada que não falara mais com Pedro.

— Ah. deixa de ser boba. Notamos uma certa tensão entre vocês dois. Acho que formariam um belo casal.

— Não, não, não... – Eva se ajeitou na cadeira de praia tentando disfarçar seu estado desconcertado, quando Pedro e Jeferson chegaram e sentaram sobre o chinelo na areia ao lado delas.

— Ele não queria vir. Arrastei de dentro do apartamento, quase um sequestro. – Jeferson sorria, divertindo-se ao lembrar a cena.

— Sabe que adoro paria... – Pedro, sério, somente abriu uma lata de cerveja e tomou um longo gole olhando para o mar.

— Ficar em casa em um dia desses é besteira. – Jessica pegou uma lata de cerveja da mão de Jeferson, tomou um gole e devolveu. – Vou lá à beira. Vem, Jeferson. – Ela levantou-se sem antes dar uma piscadela a Eva.

Jeferson a seguiu brincando com ela até chegarem às ondas quebrando na beira da areia.

— Esse dois não têm jeito, não é? – Eva estava tensa e quis quebrar o clima focando a conversa no casal de amigos.

— Eu não ligo. Fico feliz de te ver de novo. Só vim porque estaria aqui. – Pedro acendeu um cigarro e levantou para mudar de posição e para o vento não levar a fumaça até Eva. — E além do mais, o dia está mesmo lindo para ficar trancado dentro de um apartamento.

Ambos olharam para o céu, e Eva suspirou.

— Pedro, estou sem jeito.

— Eu também.

Se olharam uns segundos e por fim começaram a rir.

— Desculpa, mas parece que querem nos juntar de qualquer jeito.

— Eu sei. Jessica fica toda hora me cutucando.

— Jeferson faz a mesma coisa.

— Somos amigos. Que coisa! Era tão mais fácil quando estávamos no ensino médio. – Eva recordou.

— Era mesmo, mas pode voltar a ser.

— Será? Acho que a vida mudou tanto nesses últimos nove anos. Eu mesma nem me lembro mais de como era naquela época.

— Era decidida e corajosa.

— Sério? – Eva sorriu, colocando a mão no queixo apoiando o cotovelo na perna.

— Sim, ao menos me defendia. Afinal eu era motivo de piadinhas.

— Ah, mas aqueles garotos eram maldosos.

— Verdade...

Eva sorriu, quando de repente pequenas mãos cobriram seus olhos. Surpresa com aquele ato, ela congelou engolindo em seco.

Pedro reconheceu a dona daquelas mãos e sorriu.

— Adivinha quem é? – A voz infantil tinha um tom divertido ao fazer aquela pergunta.

Eva engoliu em seco, e seu corpo reagiu. Trêmula, ela gaguejou ao responder.

— B-Bia...?

— Mamãe... – A menina abraçou-a pelas costas e a apertou forte. — Você não veio me ver.

Eva se virou rapidamente e levantou abraçando a filha ainda mais.

— Quem? Espera, você está com quem aqui? Com seu pai? – Receosa, ficou procurando em volta até deparar com a face de Regina, que estava de braços cruzados olhando-as. — Regina.

— Tia Regina. Viemos à praia juntas. – Bia olhou para a tia e acenou. – Mamãe, chegou de viagem e nem veio me ver. Quando você chegou?

— Viagem? – Confusa, Eva olhou para Pedro e depois para a filha. – Eu... Disse que em breve iria te ver...

Regina se aproximou. Séria, chamou a sobrinha.

— Anda logo Beatriz! Vamos para casa.

— Não vai falar comigo, Regina?

— Olá, Eva. – Regina tinha uma expressão séria e pegou a mão da sobrinha. – Vamos logo, seu pai já ligou duas vezes. Vamos ter um sério problema se não formos encontrá-lo agora.

— Regina, não brigue com ela.

Regina olhou-a de cima a baixo e se foi, quando percebeu Pedro ao lado de Eva.

— Adeus, Eva.

— Vem me ver, mamãe. – Bia acenou sendo arrastada pela mão por sua tia até o calçadão. Ela olhava para a mãe com certa tristeza acenando em despedida.

Pedro ficou o tempo todo somente observando a cena. Eva estava prestes a explodir em lágrimas, quando virou-se, juntou a canga e a jogou na bolsa. Pegou o vestido e o colocou, ajeitando o cabelo.

— Eu vou embora – ela falou gaguejando nitidamente chorosa.

— Vou com você. – Pedro não a deixaria sair sozinha naquele estado. – Espera, ok? Vou avisar a Jeferson e Jessica que vou levá-la.

Eva ficou parada. Estava tão desnorteada com aquele encontro que não sabia o que fazer. Somente balançou a cabeça concordando. No entanto, antes que ele se virasse para ir falar com casal amigo, a dupla estava de volta. Ambos sorriam e conversavam.

— Gente, Eva não está bem. Vou levá-la para casa.

— O que aconteceu? – Jessica se aproximou dela, preocupada.

— Estou bem.

— Não está, e não vou deixá-la ir embora sozinha. – Pedro pegou sua camisa e vestiu.

— Eu, hein?! Não vai mesmo sozinha por aí se sentindo mal. Vamos todos.

— Não precisa, gente. Não quero estragar o dia de praia de todos.

— Eva! – Pedro se aproximou e tocou seus ombros fazendo-a encará-lo. —Você não está sozinha.

Ao ouvir essas palavras e os olhares de seus amigos, Eva não se segurou mais e as lágrimas começaram a rolar sem parar. Pedro a puxou e abraçou;passava a mão em seus cabelos, confortando-a.

— Jeferson, pega o carro. Vamos para meu apartamento. – Entregou ao amigo.

— Agora mesmo.

Jessica ficou ao lado da dupla, preocupada demais.

— O que aconteceu?

— Eva encontrou a filha que não via desde algum tempo.

— Minha nossa! – Jessica olhou em volta, quando viu o carro de Pedro guiado por Jeferson parar no meio fio do calçadão. — Jeferson chegou. Vamos!


****

No apartamento de Pedro, depois de tomar um banho, Eva volta à sala, e todos já estavam comendo algo quando ela se aproximou quieta e sem jeito.

— Estraguei o dia de todos. Me desculpem.

— Não se preocupe tanto. Venha logo, Pedro me deixou preparar uma bela macarronada para almoçarmos. – Jessica pegou a mão de sua amiga e a fez sentar à mesa ao lado de Pedro e Jeferson.

Todos comiam em silêncio. Eva começava a se sentir mal com aquilo e de repente começou a falar chorosa.

— Eu perdi minha filha. Por minha culpa, todos me odeiam. – Eva mal conseguia falar a frase.

— Eva, se acalme. Seja lá o que aconteceu, somos teus amigos. – Pedro afagou as costas dela confortando-a.

— Eu preciso falar.

— Fala logo, mulher. Se isso te faz sentir melhor, solta tudo... – Jeferson sorriu tentando amenizar a situação com seu jeito brincalhão.

— Cala a boca! É assunto sério, e você de piadinha. – Jessica deu um soco no braço de Jeferson.

— Ai, mulher, está forte, hein?! Vou denunciar você. Tem delegacia de proteção ao homem? – Jeferson perguntava a Pedro.

No fim todos riram, e o clima ficou ameno. Eva inspirou fundo e contou tudo que passou nos últimos anos com o casamento e as idas e vindas de internações, além dos incidentes que fizeram perder a guarda da filha. No final, todos olhavam para ela. Por um momento Eva temeu que eles se afastassem.

— Eu sou uma maluca e neurótica. Eu vou entender se...

— Neurótica e maluca é a Jessica. Viu o que ela faz comigo? – Jeferson cortou Eva apontando para Jessica.

— Começou de novo? Vou te socar de novo. – Jessica virou para Eva e abraçou-a – Homens deixam a gente assim. Vê só eu. Sempre fui calma e centrada, mas depois que essa tralha entrou na minha vida, vivo querendo matar um. Culpa de quem? – Olhava torto para Jeferson.

— Eiii...?

Pedro estava observando tudo e vez ou outra ficava pensativo. Por fim levantou-se e foi até a cozinha, trazendo de lá mais latas de cerveja e suco.

— Eva, amiga, acho que tudo que nos contou foi importante. Pelo menos quando acontecer algo como o que rolou na praia, saberemos como agir – disse Jessica. – Obrigada por confiar em nós e por contar algo tão pessoal.

— Parei com as brincadeiras; agora é sério. – Jeferson pigarreou antes de continuar a falar. – Olha, mulher, eu acho que se você está se cuidando é porque quer nova vida, e tenho certeza que as pessoas que te viram a cara hoje vão se arrepender lá na frente de terem feito isso, e tenha fé em que uma hora tudo se resolve e em que vai ter sua filha de volta. – Jeferson sorriu no canto dos lábios, olhando provocativo para Jessica. – Ah, e me passa o contato de seu médico. Vou levar Jessica para uma consul...- Abaixou a cabeça quando viu a almofada voar em sua direção. Saiu rindo pegando a lata de cerveja da mão de Pedro.

— Tudo vai se resolver. Dê tempo ao tempo... – Pedro estendeu um copo de suco de laranja para ela.

— Obrigada – sorriu emocionada para eles. – Obrigada mesmo, estou aliviada por ter contado.

Pedro aproximou e cochichou a ela:

— Passe o fim de semana comigo.

Ela olhou-o surpresa e, mesmo que não devesse, concordou.


****


Eva ainda não estava certa de se deveria ter aceitado passar o fim de semana com Pedro. Mas como dizer não, já que tinha sido prestativo e a apoiava naquele momento delicado? Não havia como e, por fim, concordou em eles irem até seu apartamento buscar algumas peças de roupas para passar o fim de semana com ele.

— Eva, agora que estamos aqui e tudo mais calmo, quero lhe falar algumas coisas. – Pedro colocava a pequena mala de Eva no quarto, voltando e a convidando a sentar no sofá ao seu lado.

Eva sentou-se ainda apreensiva com o que ele tinha para lhe falar.

— Lembra-se do último dia em que nos vimos? Estávamos nos despedindo de alguns colegas e sentamos nos bancos em que ficávamos sempre na praça perto do colégio. – Pedro iniciou a conversa.

— Lembro-me de alguns detalhes, não de tudo que aconteceu naquele dia. Todos estávamos tão eufóricos, tínhamos entrado para as faculdades que queríamos...

— Em um determinado momento eu te chamei e disse que queria te dizer algo, mas a Priscila puxou-a pelo braço levando para o grupo onde Rodrigo estava.

— Sim, disso eu lembro. – Eva sorriu. — O que era que queria me falar?

Pedro sorriu. Encostado no braço do sofá, estendeu a mão para segurar a dela.

— Eu perdi o momento. Depois fiquei sabendo que você e o Rodrigo ficaram. – Afagou a mão de Eva. – E alguns dias depois que estavam na mesma faculdade. – Deu de ombros. – Eu realmente perdi o momento.

Eva olhava-o confusa.

— Pedro, me diz logo, não estou entendendo.

— Eva, eu queria ter dito que a amava, que queria ficar com você.

Eva arregalou os olhos e inspirou prendendo o fôlego.

— Hoje cedo quando contou tudo que passou, fiquei pensando: "E se eu tivesse insistido?". Se tivesse ido até você e dito o que sentia, poderia receber um fora, talvez... – Fez uma breve pausa olhando-a com carinho. – Talvez tudo o que passou não tivesse acontecido.

Eva soltou o ar do peito lentamente pensando nas palavras dele.

— Falei besteira. Sou idiota. Você sempre me viu como seu melhor amigo... – Pedro soltou a mão de Eva e receoso voltou a falar. – E na certa deve estar pensando que ...

— Talvez tudo que eu passei poderia ter sido com você... – Ela olhou-o entristecida. – E assim como Rodrigo, você estaria nesse momento me odiando.

— Talvez... Porém, talvez estivéssemos juntos e felizes.

Eva desviou o olhar e inspirou fundo pensando em todas aquelas possibilidades.

— Eva quero te levar em um lugar.

— Ah, sim... Aonde?

Ele se levantou e pegou sua carteira e a chave do carro.

— Você vai ver. Vamos.

Alguns minutos depois, ambos estava em frente a um prédio. Ao entrarem, foram direto para o quinto andar; ao saírem do elevador, Pedro levou-a a uma sala. Nesse lugar havia um grupo reunido, e Eva pôde notar que parecia um grupo desses de dependentes que se encontravam em sessões, lembrando muito aqueles grupos de Alcoólicos Anônimos. Ela olhou para todos e depois para Pedro, confusa por um momento.

— Olá, Pedro. – Uma senhora se aproximou na recepção.

— Olá, Virginia. Desculpe vir assim fora de hora.

— Você é sempre bem-vindo. – Olhou então para Eva.

— Essa é Eva. Ela é uma amiga e está me acompanhando.

Eva se aproximou e sorrindo sem jeito cumprimentou a mulher.

— Elisa veio sozinha dessa vez. Estranhei, mas ela veio, o que já é um grande progresso. – Virou-se para o salão onde havia muitas mulheres conversando.

— Isso é bom; não quero que ela fique só dependendo de mim para trazê-la.

— Fiquem à vontade. Vou buscar alguns documentos. Podem assistir à reunião se quiserem.

Eva olhava para o grupo, tentando entender o que acontecia. Silenciosa, ficou ouvindo as pessoas relatarem diversas situações que viveram, todas relacionadas a relacionamentos e às formas como se portavam diante de todos.

— Aqui é uma organização que ajuda mulheres com algo que você contou para nós lá em casa. – Pedro falou baixo a ela.

— Eu notei... – Eva estava séria e murmurou em resposta.

— Eva, lembra da Elisa, minha prima?

— Lembro. Ela era bem problemática. Ela está aqui pelo que dona Virginia lhe falou.

— Sim, Elisa está em terapia e faz tratamento há poucos meses. Foi uma luta trazê-la aqui, mas conseguimos.

Eva engoliu em seco, e em seu peito o coração batia rápido. Estava tensa e nervosa com todos aqueles relatos. Eram absurdos e ao mesmo tempo tão familiares, que ela chegou a ofegar sentindo uma dor no peito.

— Eu quero sair daqui...

Pedro observou-a e em seguida segurou sua mão a levando para fora. Fez um aceno para Virginia e, depois de dizer que não era para falar a Elisa que esteve ali, saiu do lugar com Eva.

Durante o caminho, no carro, ficaram em silêncio, Eva não conseguia conter as lágrimas que escorriam sem parar pela face. Pouco depois estavam de volta no apartamento.

— Eva, perdão, deveria ter dito antes, acho que...

— Deveria sim... – Eva ofegou e murmurou chateada. — Já me levaram a tantos lugares, que não vejo por que me levar a mais um... – Caminhou para o banheiro onde se trancou.

— Eva, desculpa. Acho que errei, desculpa. – Pedro parou na porta tentando amenizar a situação. – Sabe, eu só queria te mostrar que entendo você.

Eva não respondeu. Sentou-se sobre a tampa do vaso e continuou a chorar. Por tanto tempo ficou aguentando as pressões de seus erros, que desejava sumir, desaparecer de uma vez.

— Eu quero ir embora.

Pedro ouviu-a do outro lado da porta, entristecido pela sua falha concordou.

— Eu levo você para casa.


****


Em seu apartamento, depois de ser deixada por Pedro, Eva mergulhou em sua própria dor. Ver sua filha, descobrir que mentiram para ela, depois ter que falar tão abertamente de seu problema e a atitude de Pedro. Tudo isso só resultou em mais dor.

Por tanto tempo evitou ao máximo se entregar. Queria mudar, mas sempre que tentava, tudo conspirava para que afundasse mais e mais.

Eva sabia que ninguém a entenderia. Seria uma perda de tempo tentar. Mais uma vez era como se estivesse sozinha no quarto frio da clínica psiquiátrica em que fora internada.

— Eu não sou louca.

Dizia para si mesma várias vezes até adormecer.

Na manhã seguinte, de volta ao trabalho, preferiu manter as aparências. Tratou todos normalmente, se desculpou com Pedro e seguiu sua rotina durante o dia de trabalho. No final da tarde, já perto da hora de ir embora, recebeu uma chamada de seu ex-marido Rodrigo.

"— Eva, o que disse a Bia?"

"— Boa tarde, Rodrigo. Antes de mais nada... "

"— Escuta, Eva: não tenho tempo para seus mimimis. O que disse a Bia? Sei que se encontraram na praia. Responde!" – Rodrigo estava gritando no telefone.

O que eu poderia dizer? Sua prima estava com ela como cão raivoso. – Eva inspirou fundo e nervosa, afinal algo aconteceu e precisava saber. – Afinal de contas o que aconteceu?

"— Você é o problema. Sempre é e nunca vai deixar de ser..."

"— Rodrigo, espera. Aconteceu algo com a Bi...a?" – Eva foi interrompida com o som da ligação encerrada.

Nervosa, tentou retornar, mas não foi atendida em todas as tentativas, até ouvir a mensagem que estava desligado ou fora da área de cobertura.

Eva estava desnorteada, sem saber como fazer. Decidiu ir até a casa de Rodrigo. Chegando ao prédio, ficou de longe sondando. Tinha que descobrir como saber se sua filha estava bem.

— Eva?

Assustada, Eva ouviu seu nome e virou-se rapidamente. Uma senhora de cabelos grisalhos se aproximou. Era a avó de Rodrigo. Ela estava acompanhada de uma jovem que Eva não conhecia.

— Dona Olga, eu... Desculpa, eu vou embora...

— Espera, Eva. Deve estar aqui por causa da Bia. — A senhora segurou no braço de Eva, puxando-a para seguir junto com ela.

— Dona Olga, acho melhor não entrar lá. Rodrigo me odeia. Eu só quero saber como ela está?

Eva parou a senhora e olhou-a ansiosa.

— É claro que você vai entrar. Rodrigo não lhe contou? Estamos todos procurando por Bia. Ela não voltou para casa desde a hora da escola.

— O quê?!! Meu Deus... – Eva estremeceu colocou a mão sobre os lábios atordoada. — Ela sumiu...?

— Calma! Vem comigo, que estamos todos procurando.

— Não, Dona Olga, tenho que procurá-la... – Eva estava nervosa olhando em todo local, tentando imaginar aonde a filha poderia ter ido.

— Eva, espera. – A senhora segurou a sua mão. – Eu dei seu endereço para Bia. Acho que ela pode ter ido para sua casa, mas eu não disse ao Rodrigo. Meu neto é nervoso demais.

— Dona Olga...

— Eu não imaginei que ela fosse fugir. Ela disse que queria escrever uma cartinha para você. – A senhora suspirou, mas podia se notar uma certa alegria naquelas palavras. — Acho tudo tão injusto. Ela precisa de uma mãe.

— Dona Olga, eu vou correndo para casa. – Eva abraçou a senhora e sem muita demora chamou um uberpara levá-la.

Durante todo o trajeto, ela pedia para que a filha estivesse em sua casa, que nada lhe acontecesse. Cerca de 40 minutos, e estava no condomínio onde morava. Desceu do carro e rapidamente passou pela portaria principal.

— Dona Eva. – Josivaldo, o porteiro, a chamou.

— Ah, que bom, Josivaldo! Por um acaso alguém chegou aqui me procurando... Na verdade uma menina...

O homem mal conseguia falar, Eva atropelava as palavras nervosa quando sentiu pequenos braços envolver a cintura apertando-a.

— Mamãe!!!

— Meu Deus... Meu Deus... – Eva esqueceu do porteiro e agarrou a filha desesperada apertando-a nos braços.

Chorando, ela afastou-se da menina e examinou-a, para ver se não tinha nenhum ferimento.

— Calma, mãe, estou bem. – A menina tinha um ar inocente e sorridente. – Eu vim te ver, mamãe.

— Filha... – Eva enxugou os olhos e levantou olhando para o porteiro.

— Dona Eva, a menina está aqui já tem quase 2 horas. Ela disse que é sua filha.

— Obrigada, Josivaldo! Essa é minha filha Bia. Obrigada por olhá-la até eu chegar.

Ambas seguiram para o apartamento de Eva. Bia estava radiante e tagarelava sem parar. Aassim que entraram, Eva desabou no sofá e chamou a filha para sentar ao seu lado.

— Bia, o que você fez foi errado. Vou ligar para seu pai e dizer que está aqui. Estão todos te procurando.

— Mãe... Eu queria te ver. Todos diziam que não podia.

— A mamãe fez um monte de coisas erradas. Por isso não pode ficar comigo. Mas eu prometo que vou arrumar tudo, e um dia vamos ficar juntas.

— Promete?

Eva levantou a mão e sorriu.

— Prometo.

Levantou e pegou o seu telefone para fazer a chamada. Inspirou fundo enquanto o sinal tocava, até que ouviu a voz de Rodrigo.

"— Ela está bem?"

"— Sim, chegou bem."

"— Estou chegando, vovó contou o que fez. Só quero pegar a Bia e voltar."

"— Ela é minha filha e você omitiu que havia sumido, egoísta."

"— Sua filha? Deveria ter lembrando antes de tentar matá-la."

Eva inspirou fundo, tentando manter o controle. Engoliu em seco a raiva e falou com a voz embargada.

"— Estamos esperando."

Desligou a chamada antes que ouvisse outro desaforo. Fungou baixo e andou até a cozinha, falando com a filha que lhe observava o tempo todo.

— Papai está com raiva.

— Infelizmente não vai escapar de uma bronca e na certa de um castigo. – Olho-a com suave sorriso. – Está com fome? Vamos comer uma pizza requentada?

— Melhor pizza.

Ambas lancharam aquela pizza, mesmo sabendo que o Rodrigo estava a caminho. Ainda demoraria um pouco para chegar, então aproveitaram os poucos minutos que tinham.

Eva sentiu-se bem. Estava com sua filha, e toda aquela dor que estava sentindo sumiu. Não tinha mais nenhuma razão para se entristecer, afinal havia algo maior que ela mesma para cuidar. Estava decidida a ter a guarda de Bia de volta.

****

— Nossa, Eva! Você passou por tudo isso ontem e não me falou? – Pedro chateado sentou ao lado de Eva.

— Desculpa. Não tinha muito tempo para falar com alguém, mas terminou tudo bem e Bia voltou para casa. – Eva abria a marmita sobre a toalha que forrava a mesa para a refeição.

— Que situação! Rodrigo poderia ao menos pegar leve.

— É. Boa parte disso é minha culpa; então, finjo que não ouço. Pelo menos pelo bem de Bia.

— Vai mesmo pedir a guarda dela?

— Vou. Sim. Estou bem e posso cuidar dela. Tenho emprego estável. Meu terapeuta disse que estou bem e até suspendeu dois remédios que tomava. Agora só um para controlar a ansiedade, algo que a maioria das pessoas "normais" tem. Acho que consigo a guarda de Bia.

— Vai conseguir, sim. Estou do seu lado.

Os meses passaram. Pedro sempre ajudando da melhor forma que podia e que Eva permitia. Sabia que era um pouco complicado chegar em seu coração, mas ainda tinha esperanças.

A audiência finalmente começa, e a defesa de Rodrigo continuava alegando que o transtorno de Eva era muito perigoso para a criança. A cansativa disputa no tribunal por muitas vezes deixava Eva chateada. Sabia que iriam expor tudo que fez de errado e inclusive o acidente que aconteceu no apartamento.

Regina estava acompanhada de Olga. A senhora queria ver toda a audiência e estava certa de que Eva teria condições de ficar com a filha; mas ainda assim, ouvia a neta reclamar.

— Faça-me o favor, vó. Eva é uma neurótica desequilibrada. Nunca que vai poder cuidar de Bia.

— Não fale assim, minha neta. Eva está bem, e toda menina precisa de uma mãe.

— Rodrigo está certo. Tem que mantê-la afastada da filha. – Regina inspirava fundo, demonstrando raiva de tudo que estava acontecendo.

— Vamos parar. Quem decide a guarda é o juiz.

— Ela tinha que ter morrido naquele dia, tomando todos aqueles remédios.

— Deus me livre! Para de falar bobagens.

— Era bem melhor. Nossas vidas eram um inferno com Eva. Rodrigo estava a ponto de surtar junto com essa neurótica. É uma pena que o remédio não fez o efeito. 800 mg deveriam tê-la apagado de vez...

— O que você disse, menina? – Dona Olga estranhou.

— Nada, vovó... Pensando alto...

— Já que começou, continua... – Rodrigo chegara à sala alguns minutos antes e ficou intrigado com o que Regina falara.

— Ah, Rodrigo, já acabou a audiência? Então, a guarda da Bia é sua, certo?

— Ainda não. Estamos no intervalo. Vão ouvir a Bia depois... – Rodrigo olhava Regina sério.

— Entendi. – Sem jeito sentou ao lado de Dona Olga.

Rodrigo continuava olhando-a sério.

— Algum problema, Rodrigo? – Regina tentava demonstrar aparente calma.

— Eu acreditava que tinha, mas algo começou a clarear. Primeiro me diga como você sabia que eram 800 mg do medicamento que Eva tomou naquele dia?

— Ué, todo mundo sabe que ela tomou remédio demais, tentando se matar... – Regina se ajeitou na cadeira mostrando-se chateada.

Rodrigo sentou ao lado dela e continuou a questioná-la.

— Ninguém sabia além de mim qual era a dosagem da medicação que Eva tomava. Me diga: como sabia que eram 800 mg?

Regina ficou tensa, aparentemente sem saber o que responder, quando Rodrigo voltou a falar.

— Eva realmente tinha começado a tomar uma medicação por conta própria, mas uns dias antes consegui levá-la à consulta, e o remédio foi passado tinha a dosagem de 500 mg. E sabe quem os comprou?

Regina ficou pálida e engoliu em seco.

— Eva estava perturbada. Estava realmente em surto e claramente precisava de ajuda, era neurótica e desequilibrada, podem chamar do que for. Mas uma coisa eu sei que Eva não é: mentirosa.

Nesse momento, o advogado de Rodrigo entra na sala para lhe informar que o juiz retornará, e ambos vão até a sala da audiência.


****


O sol estava sorrateiramente se pondo, Eva e Pedro estavam sentados na canga olhando o mar, em um dia típico de final de verão, com temperatura amena e brisa suave.

— Eles vêm. Tenha paciência. – Pedro sorrindo e notando a aflição nos olhos de Eva.

— Estão demorando.

— Calma. Agora falta pouco.

Eva tentava inutilmente enxugar as lágrimas que teimosas rolavam por sua face.

— Qual o receio?

— E se tudo for um sonho, eu não quero acordar.

— Deu tudo certo, é assim que tem que pensar. – Ele encostou o ombro no ombro dela.

— Não é sobre Bia.

— Ah? Não? Então qual é o problema?

Eva olhou para Pedro e suspirou, virando a face para o olhar o mar.

— É sobre o que me disse de ficarmos juntos.

— Desculpa, não quero te forçar a nada...

— Não é isso, é que eu não quero estragar tudo de novo.

— E por que estragaria? Digo, acha mesmo que não daria certo?

Eva encolheu-se e suspirou sem saber o que dizer. Realmente gostava muito de Pedro, mas tinha medo de voltar a ser como antes, quando estava com Rodrigo, e por isso sempre negava o pedido de namoro de Pedro.

— Eu gosto muito de você...

— Eu também.

— Mamãe!

Bia apareceu correndo na areia gritando por Eva. Logo atrás dela vinha Rodrigo.

— Bia! – Eva levantou e estendeu os braços agarrando apertado a filha. Olhou para Rodrigo. – Pegaram trânsito para chegar aqui?

— Não muito. – Rodrigo estendeu a mão e cumprimentou Pedro.

— Mamãe, vamos à beira da água? – Bia puxou Eva, correndo em direção às pequenas ondas.

Rodrigo e Pedro observavam, quando Rodrigo:

— Valeu pela dica no tribunal. Depois de tudo, nem tivemos tempo de conversar.

— Tudo bem. Era estranha a história dos remédios quando Eva me contou, mas o importante é que tudo se esclareceu.

— Regina vacilou, e eu de cabeça quente só piorei tudo.

— Deu tudo certo no final.

Rodrigo olhava Eva e Bia brincarem de pular ondas na beira do mar. Uma pequena pontada de saudades bateu em seu coração.

— Bom, vou já. – Despediu de Pedro e chamou a filha. – Bia. vou indo. No fim de semana te busco. – Deu um beijo no rosto da filha e olhou para Eva.

Ambos somente se olharam sem trocar palavras, mas sabiam que estava tudo bem e que, com a guarda compartilhada da filha, poderiam viver suas vidas sem arrependimentos.

O sol estava se pondo. Eva e Pedro olhavam o mar e também Bia, que brincava fazendo castelinho de areia.

— Pedro?

— Hum?

— Sim.

Pedro que tomava um gole de cerveja, parou e olhou-a um tempo. Um largo sorriso brotou em seus lábios, e ele voltou a tomar a cerveja normalmente.

Daquele dia em diante, Eva soube que acima do amor que ela acreditava dar, precisou entender que, antes de mais nada, saber amar é amar a si mesma, encher-se desse sentimento para depois transbordar a todos sem amarras, culpas e dores.


-FIM-




Oct. 10, 2020, 3:58 p.m. 0 Report Embed Follow story
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The End

Meet the author

Isa Miranda Escritora, designer editorial, editora de vídeos, assessora e divulga autores nacionais. Publica em plataformas digitais Wattpad e Amazon, participa de antologias e escreve para o Cyber TV. Nerd, otome e geek apaixonada pela cultura oriental. Viciada em RPG, livros, filmes, animes, séries e dramas BL asiáticos. Gêneros que escreve são dark fantasy, fantasia urbana e Boys love. A mãe de Rafael e Yasmin. Não gosta de café. Siga no Instagram @isaautora //

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