franklin-oliveira1600280834 Franklin Oliveira

O Vale de Nok já teve seus dias de glória e abundância, mas isso já é um tempo distante. A estabilidade dos mundos espiritual e físico estão em risco, e a ganância humana os levará à própria ruína. Aruna, nascida em uma das muitas tribos do Vale, entra numa jornada de auto conhecimento e sobrevivência, buscando pela origem de suas habilidades e salvação de sua terra natal. Sua afinidade com as Artes Espirituais é inigualável, mas seria ela capaz de superar todas as dificuldades no caminho?


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Aruna de Nok

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Aruna de Nok

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— Mama adorava me contar histórias sobre a dinastia Nabu e a fartura daquele tempo! — dizia a velha Suli, com um sorriso discreto —, e eu amava escutar.

Depois de uma breve pausa, enquanto olha o próprio reflexo na xícara de chá de marula sobre a mesa, continua:

— Ela me dava luz. Me dava a força necessária para sobreviver. Mesmo em dias como aqueles, nossa família estava sempre sorrindo.

— E quando é que tu ficou rabugenta desse jeito? — lançou Marco, em tom de deboche, orgulhoso da piada que fizera.

— Marco! – grita Jasha, desacreditada com o irmão — Cadê a noção, hein!?

Depois de tantos sóis cuidando de Marco, a idosa nem ao menos demonstra surpresa. Calmamente, pega a xícara a sua frente e toma um pouco do chá, encarando o jovem atrevido enquanto ainda ri, despreocupado. Quando seus olhares se encontram, Marco congela. Antes escuros como carvão, os olhos de Suli agora emanavam uma luz aconchegante, e as tatuagens em seus braços respondiam ao chamado.

— Ei, ei, calma aí! Foi só, foi só...! — assustado, nem ao menos termina a frase e tenta correr até a saída da cabana.

Antes que pudesse escapar, a velha bate no chão com os pés, e uma onda de energia dourada percorre todo o ambiente em instantes, até que o menino cai com o impacto. Assustado, logo se levanta e tenta gritar, mas o esforço é em vão. Marco olhava chocado para a irmã, que também não sabia como reagir.

— Ansiã... O Marco, ele...! — falava a irmã em desespero.

— Hahahaha!— gargalhava Suli — Não se preocupe, pequena. O encanto só deve durar alguns minutos.

— Tem certeza? — perguntou Jasha.

— Não, mas a gente vê isso depois. – debochava a velha, ainda contente com o sucesso da conjuração.

Suli, na tentativa de engolir o riso, volta a se concentrar no seu chá. Esvazia a xícara em dois goles rápidos, dá um pequeno suspiro e se acalma. As crianças, agora quietas, encaram obedientemente a anciã, esperando que continuasse a história.

— Onde é que eu tava mesmo? — pergunta a Marco — Ah, é. Hehehehe.

— A gente meio que nem começou — respondeu Jasha.

— Pois bem. — embora meio cansada, continua – A dinastia Nabu. Eles foram os primeiros habitantes do Vale de Nok, e também os primeiros a estabelecerem acordos pacíficos com o Reino Espiritual.

Nessa hora, Suli vê certo brilho nos olhos das crianças, atentas à história. Cruza uma perna sobre a outra e continua:

— Em troca de proteção no nosso plano, o Reino Material, os espíritos ensinaram os humanos do Vale a utilizarem o Arkhé para alterar as leis que regem o mundo físico.

— O que é arquê, arc... — se esforçava Jasha — isso aí?

— Arkhé. Imaginei que perguntariam. – sorria a anciã, enquanto estendia a mão aberta sobre a mesa — Arkhé é o início e o fim. É a energia que rege o equilíbrio e o caos. É espírito, matéria e luz.

Ainda com a mão estendida, Suli pega um dos orobós em uma cumbuca próxima e mastiga. Sem demora, seus olhos e tatuagens brilham mais uma vez. Num instante, toda essa luz se concentra sobre a palma de sua mão e cria uma pequena chama de cor distinta. Não era fogo nem luz, só era lindo.

— Que legal, velhota! — gritou Marco, involuntariamente — Ué, já?

— Devo estar ficando velha mesmo. — disse desapontada, recolhendo a mão e conjurando outro encanto de silêncio no garoto.

— A gente também consegue fazer isso? — perguntou Jasha animada.

— Quando chegarem na idade, talvez. — respondeu a velha, sem muito ânimo.

Satisfeita com a resposta que recebeu, a menina pergunta:

— O que acontece depois?

— Com a ajuda dos espíritos, os Nabu deram vida ao Vale. — falava Suli empolgada, lembrando da própria mãe — Com os espíritos da terra, abriram uma gruta próxima do topo do Monte Kili, onde hoje é o Santuário Nokti. E com a ajuda dos espíritos da vida e da água, criaram a nascente do Rio Protea. Por onde passava, havia paz e fartura. Animais, espíritos e pessoas de todos os cantos do continente migraram para suas margens.

— Onde fica esse rio? — endagava Jasha, esperançosa.

— Basta olhar pela janela, pequena.

— O quê?! — gritou, desafinada — E o que houve com toda a comida?

Complacente com tal dúvida, más memórias vinham à cabeça da anciã. Já passara por muitas coisas mas a fome era, sem dúvidas, uma de suas piores lembranças. Dá uma breve pausa, e continua:

— O Vale prosperou ao passar de muitos sóis, e por milhares de quilômetros, a Dinastia Nabu estabeleceu paz entre ambos os reinos. Durante milênios, não havia ganância ou inveja, fome ou sofrimento. Tudo do rio vinha, e tudo para o rio voltava. O ciclo de energia entre os dois mundos era perfeito.

— Qual era o problema, então? — questionava Jasha.

— O povo Nokti triunfou, mas isso não era o bastante para parte dos Nabu. — franzia a testa, como se estivesse ansiosa com algo — Algo havia os corrompido. Muitos dizem ser feitio de espíritos sombrios, mas não eu. Aquilo era fruto de nada menos que a natureza humana. Fome insaciável. Tinham tudo ao seu alcance, e mesmo assim nada. Queriam mais do que os espíritos eram capazes departilhar. Por isso, tentaram tomar seu poder à força. Sem aviso ou piedade. Somente fome. O começo do baculejo, como dizia Mama, foi quando–

Por um minuto inteiro, Suli ficara em silêncio, sem demonstrar nenhuma reação. Assustada, Jasha levanta do banco e tenta acordá-la do transe. Quando vai tocar em seu ombro, alguém entra na cabana correndo.

— Mama! — grasnava a preta retinta, com tatuagens e pinturas faciais semelhantes a da anciã. – A Indira entrou em trabalho de parto!

Era a filha de Suli, sucessora e aprendiz a protetora da tribo. Ela estava cuidando da mãe de Jasha e Marco, que estava grávida e prestes a darà luz.

— Eu imaginei — falava a velha, já acordada do transe e preparando toalhas quentes e algumas frutas. — Preparem-se, vão conhecer a irmã de vocês hoje.

— É uma menina!?— perguntava Jasha, muito animada.

— Não temos tempo pra isso, apressem-se! — gritou Maia, que já estava na metade do caminho.

Suli terminou de coletar o que precisava em sua cabana, e colocou mais um orobó na boca. Recitou algumas palavras em baixo tom, e começou a correr em direção à cabana de Indira. Os irmãos, ainda um pouco surpresos, logo pensaram em artes espirituais. Não podiam estar mais errados. Podia estar velha, mas seu corpo de guerreira jamais pereceu.

Quando chegam à cabana, Jasha se apressa e segura a mão esquerda da mãe. Já Marco senta do seu lado direito, com cara de preocupação e desconfiança. A velha e sua filha corriam de um lado para o outro, fazendo os preparativos. Indira, focada em não gritar muito alto e alertar os sentinelas, mordia seus grossos lábios, que já mostravam carne viva.

— Não se preocupe, minha querida. — dizia Suli, com uma voz suave mas distorcida pelo fruto sob a língua — Já fiz mais partos do que posso contar nos dedos.

A anciã finalmente morde o orobó, e se prepara para conjurar outro encanto. Marco se põe um pouco para trás, o que não passa despercebido pela mãe. A velha, de mãos agora reluzentes, massageava o ventre da pobre mulher enquanto cantava uma música infantil. Mais rápido do que o normal, Indira se acalma e passa a respirar melhor.

— Obrigado, adhya. — agradecia a moça à anciã, em dialeto Nok — Por cuidar das crianças e de mim.

— Ainda temos trabalho pela frente, chhat.— respondeu Suli em tom nostálgico. A velha costumava dar aulas a Indira e algumas crianças da tribo. — E foi um prazer cuidar das crianças. Mais ou menos.

No mesmo instante, Indira já imaginava a situação. Vira o rosto rapidamente para Marco e fala, repreendendo o garoto:

— Você precisa respeitar a anciã, Marco. Ela também será sua adhyaem alguns anos.

— Desculpa, mama. — respondeu o garoto, cabisbaixo e preocupado. — Mas pelo menos vamos ter uma irmãzinha!

— Uma irmãzinha? — pergunta, intrigada com o que escutara — Quem te disse isso?

No mesmo instante, Indira sente de novo as fortes contrações no ventre, e sente que está cada vez mais próxima de dar à luz. Naturalmente preocupada, desvia o olhar para a anciã. Não precisava falar nada, pois a velha entendia perfeitamente. Com uma voz calma, Suli instrui a pobre mulher:

— Chhat, preciso que controle a respiração. Sua energia está distorcida.

Pouco a pouco, Indira recupera o fôlego e mantém um ritmo acelerado, mas saudável. As dores continuavam, mas isso não importava agora. Já era seu terceiro parto, e seu orgulho não permitia que reclamasse. Para a tribo dos Ashanti, guerreiros espirituais, o nascimento era uma dádiva da natureza. Uma nova vida significava renovação, em corpo e alma.

— Com licença, querida. — dito isso, Suli verifica delicadamente se a dilatação do colo de Indira estava acontecendo — Você está indo bem, jovem mama.

Indira só conseguia responder com alguns gemidos abafados. Com os dentes cerrados, contorcia-se por inteiro. Suas veias se destacavam, e o suor entregava o esforço de várias horas de intensas contrações. Maia a enxuga, e ajuda a assumir uma posição mais confortável. Um pouco inclinada, com várias toalhas em suas costas, solta um longo suspiro.

— Está quase... na hora... Lembro bem... dessa sensação.— diz Indira, ofegante. Vira seu rosto para Marco, e dá um sorriso desajeitado.

Marco segura sua outra mão, e sorri de volta. Instantes depois, uma forte contração faz Indira dar um grito abafado, e Maia diz à mãe:

— A pressão dela parece ter aumentado, mama. Estamos perto.

Sem demora, Suli pega uma raiz de inhame no bolso e coloca na boca de Indira, para evitar que se machuque durante o parto. Diz sem demora:

— Chegou a melhor parte, chhat. Seu colo dilatou o bastante, tá na hora de fazer força. — levanta as sobrancelhas, esboçando um sorriso.

Indira logo morde o Inhame e começa a contrair o ventre. Enquanto fazia força repetida e ordenadamente, podia-se ouvir seus gemidos abafados pela raiz por toda a tribo. Vários rostos conhecidos então aparecem nas portas e janelas. Os Ashanti pareciam animados, mas não queriam atrapalhar e permaneceram em silêncio.

Após muito esforço, Suli finalmente vê uma figura animadora saindo do âmago da jovem. As tatuagens de Indira ganham grande vigor e tingem-se em luz dourada. Sua pele, muito bela e retinta, era ofuscada por tanta energia. De olhos fechados e concentrada em dar sua filha à luz, não percebe, mas todos em volta se fazem perplexos.

A anciã retoma o juízo e aumenta o tom, para que Indira consiga escutar:

— Vamos, guerreira!Continue! — já movendo suas mãos abaixo das pernas de Indira, à espera da criança — Só mais um pouco!

Entre suspiros e gritos, o esforço da mãe era incessante. Já era possível ver boa parte da criança, e ao ponto que todo seu torso já estava exposto, uma última contração lhe empurra para o zelo da velha Suli. A cabana, antes submersa em energia espiritual, voltara ao normal. O sol de fim de tarde iluminava o tão surrado assoalho com um brilho familiar, como se desse boas vindas à recém nascida.

Tudo que se escutava era o suspiro da mãe, exausta, e um choramingado tímido. Quem a visse, não pensaria que acaba de nascer, mas sim que foi recém acordada de um breve cochilo. Em uníssono, a tribo dos Ashanti recebe a menina, quebrando o silêncio com gritos, tambores e agogôs:

Naya khoon, naee subah! —gritavam todos em Nokti para novo sangue, nova aurora.

Suli, enquanto isso, segurava a recém nascida em seu colo. Uma sensação de serenidade parecia florescer em seu âmago, como se estivesse algo pesado tivesse sido tirado de seus ombros. Sem demora, corta o cordão que ainda a ligava à sua mãe com uma lâmina afiada e trata o local com uma pasta de sálvia, erva de propriedades medicinais.

— Naee subah, Aruna. — deixa escapar a velha, discreta — Os espíritos a abençoaram com muito vigor, Indira.

Indira finalmente volta à consciência, e estende os braços para a anciã, que a entrega a menina. Emocionada, deixa escapar algumas lágrimas enquanto segura sua filha próxima ao próprio peito. Incomodada, a criança enfim abre os olhos. Eram como duas grandes joias. A cor, próxima ao âmbar, prendia a atenção da mãe. Transbordavam energia e inocência.

— Esses olhos... — Maia parecia sem palavras. Ela, como ninguém, sempre escutou os contos da velha Suli.

— Aruna. — completa Indira, ainda em êxtase com a situação. — O nome dela vai ser Aruna.

Suli solta um longo suspiro seguido de um sorriso preocupado e senta-se ao lado das outras crianças. Parecia admirar a recém nascida. Aruna ostentava uma linda pele retinta, herdada de sua mãe. Era um símbolo de vitalidade na tribo dos Ashanti. Seu cabelo, embora ralo, já marcava presença com pequenos cachinhos.

O nascimento em si, para o povo do Vale de Nok, já era motivo o bastante pra festa, mas aquilo era diferente. Mais do que novo sangue, nova aurora, a existência de Aruna representava o início de uma nova era abundante em esperança e fartura. A cor de seus olhos era prova disso. Marco e Jasha, no entanto, não haviam chegado nessa parte da história ainda. Suli, percebendo a confusão, quebra o silêncio:

— Me permitam explicar. — limpa a garganta e prossegue — Segundo as escrituras sagradas da dinastia Nabu, guardadas no Santuário Nokti, Aruna foi o nome dado ao primeiro dos nove orixás enviados à criação universo por Olorum. No início, não havia nada, nem mesmo o vazio. Aruna foi a primeira manifestação da existência, e ela era linda.

— Mesmo que por tradição não representemos tais entidades em figuras ou esculturas — acrescenta Maia, enquanto Suli dava uma pausa —, as histórias sobre a orixá-mãe ainda nos dizem isso.

A velha concorda com a cabeça e volta a falar:

— Não havia luz o bastante, então seu corpo era negro. Mas seus olhos, como prova de sua conexão divina, alcançavam a força de mil estrelas.

— Mesmo assim, eram bondosos e confortantes. — diz Indira de olhos fechados, ainda abraçada com a filha, de forma a esconder seu rosto.

— Não havia ninguém para confortar. O início era solitário, e Aruna não suportava isso. Como resultado, fragmentou a própria existência e a dispersou por todos os cantos do universo. Arkhé. De sua essência, surgiu a vida, o espaço e o tempo.

— Toda vez que praticamos a arte espiritual, vislumbramos a energia da criação. — completa Maia, enquanto toca as próprias tatuagens.

— Os fragmentos de Aruna deram origem aos orixás, aos espíritos, aos animais e tudo que conhecemos. Sem forças, no entanto, ela deixara de existir no Reino Material. O restante de sua consciência habita o outro lado do mundo, mesmo que passiva a tudo em sua volta.

Suli parecia preocupada, e para por um instante. Estava pensativa. Maia tenta continuar, mesmo que do próprio jeito:

— Diz-se que de tempos em tempos, como fruto de sua consciência adormecida, a essência de Aruna renasce em um mortal. Mesmo que tenha a própria personalidade e não se lembre de suas vidas passadas, humana ou fera, têm a mesma convicção imaculada em suas mentes: restabelecer o equilíbrio entre os reinos.

As crianças, inocentes à magnitude do que recém escutaram, parecem animadas e impressionadas com a própria irmã. O restante, no entanto, parecia muito preocupado. Depois de muitos anos sofridos, conheciam até onde a ganância humana poderia chegar. Permaneciam em silêncio, até que escutavam galopadas se aproximando. Eram os sentinelas.

Sem pensar muito, Suli corta a própria mão com as próprias presas e bebe um pouco do sangue que escorrera. Imediatamente, seus olhos e tatuagens iluminam-se, mas com intensidade pouco vista naquelas terras, visto que a energia espiritual era escassa. Com suas mãos carrancudas de guerreira, recita um verso antigo em Nokti e passa a mão na cabeça de Aruna. A energia se dissipa, e a bebê começa a chorar. Indira logo percebe que a cor de seus olhos mudaram, e entende a situação.

— Está tudo bem por aqui? — diz um dos sentinelas que chegam à cabana, instigados pela aglomeração dos Ashanti.

— Sim, hayrab. — diz a anciã, muito rígida, enquanto aperta o próprio punho ao peito. — Acabamos de receber uma nova criança.

— Naya khoon. Mais uma para servir a nosso Hoggami. — diz outro soldado em tom de deboche, montado em outra besta.

— Prosperidade a Hoggami. — dizem os Ashanti em uníssono.

Os sentinelas se afastam, e a pressão na cabana se dissipa. Todos se olhavam preocupados. Podiam vislumbrar a chance de um futuro promissor, o caminho até lá não seria fácil. Como se estivessem pensando a mesma coisa, alguns dos que carregavam tambores gritam:

— Por uma nova aurora! — seguidos de gritos e celebrações, que duram até o fim da noite.


📷
Sept. 16, 2020, 6:33 p.m. 0 Report Embed Follow story
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