Ainda sonho em noites quentes e melancólicas com aquele mar de fios vermelhos que, como em um desenho em minha mente, formam uma longa cabeleira ruiva; e puxando mais um pouco as linhas, forma-se o rosto. Nele eu encontro os olhos que me prendem ao passado, junto de um sorriso que, mesmo após anos, ainda aquece meu coração e o faz palpitar.
Então as linhas se puxam e repuxam, se contorcem e andam em linha reta. Aos poucos dou a mulher forma completa em minha mente. Seus lábios se mexem, mas não ouço nada, apenas tento adivinhar o que quer me dizer, já que perdi a lembrança de sua voz a algum tempo.
Com uma vontade que me arrancou lágrimas e noites em claro, guardo pequenos momentos meus ao lado dela em folhas amassada de um caderno — que não tenho vergonha de assumir ser meu bem mais precioso. A única coisa que me chateia é não poder guardar o perfume dela em simples palavras que, apesar de descrevê-lo, já não fazem lembrar-me de como era exatamente.
Quinze anos? Vinte anos?
Minha memória foi ocupando-se com tantas outras responsabilidades e preocupações ao longo da vida, que já me falha em relação ao meu tempo de juventude ao lado dela; quando sorrir era espontâneo tanto quanto respirar. Também não guardo mais seu toque em minha pele, apesar de vagamente lembra-lo como suave ardente.
Kushina Uzumaki poderia ter sido a mulher da minha vida, e ela possuiu tal título durante nosso envolvimento — breve, porém marcante. Fomos apaixonados no ápice do sentimento recíproco, fazíamos mil e um planos para o futuro, onde só havia felicidade quando juntos. E talvez esse tenha sido o pior erro, não visualizar um amanhã sem o outro.
Sou um viciado assumido e apaixonado por cafeína, por isso me pego às vezes a comparar a vida a um grande copo de café forte e de um amargor leve e incômodo na garganta. E em minha própria metáfora pessoal, o leve incômodo são minhas dores que estão sempre lá; uns dias maiores, outros quase passa despercebida, mas sempre lá; e mesmo se eu me atrevesse a mudar a bebida por uma mais adocicada e fraca, não me sustentaria. Eu dormiria no primeiro apoiar de cabeça contra o banco da lotação e acordaria com um incômodo novo, este sendo o amargar doce.
Quase consigo visualizar Kushina me servindo do líquido forte e quente todas as manhãs. E ela se senta ao pé da minha cama, sorri; passa as mãos entre os fios vermelhos, desembaraçando-os no improviso, e me olha com ternura. E então se vai, assim como meu sono; restando-me apenas a forte bebida que sorvo até o último gole para me manter vivo mais um dia. É ela que, de alguma forma, coloca o ingrediente principal em meu café para que o incômodo em minha garganta nunca suma e há dias que minha língua adormece.
Da minha própria forma, eu segui em frente, mesmo que tenha sido tortuoso o caminho, e que algumas vezes, acabou me levando em becos que pensei nunca mais achar a saída. Ainda estou vivo mais um manhã, e os raios de sol que atravessam a brecha da janela e me tocam a pele dão a tudo um toque real.
Fecho meus olhos com força, percebendo que a mulher ruiva não viera hoje, e tento raciocinar se é um sinal ou apenas fruto dos efeitos das tantas cartelas de remédios que andei tomando durante a semana. Penso demais, minha cabeça dói, e então finjo que esqueço essa questão.
Pego o celular em cima do criado mudo e constato que é dia onze de uma sexta-feira com previsão para fortes ventanias. Minha cabeça lateja mais um pouco ao constatar que, em plena seis e meia da manhã, o trânsito já está congestionado. A visão fica turva. Preciso de um bom café amargo e um banho quente para encarar a selva lá fora.
Espero mais um pouco, e um pouco, pouco...
Até que já são sete horas e mais meia hora e estarei atrasado. Porém, ainda assim não quero me levantar; as cobertas estão tão acolhedoras, que me fazem lembrar os braços de Kushina e de como um abraço seu me acalentava a alma. E então volto a questão: ela não estava mais ali.
Meu tempo para divagar e afundar-me em meus mares de angústia é encerrado quando a porta do quarto se abre com um rangido irritante aos ouvidos, e por lá vejo entrar um borrão amarelo, que se aproxima receoso. Não consigo identificar nada mais que amarelo. Minha visão não se estabiliza.
— Pai, já estou indo para o colégio. Fiz o seu café da manhã e deixei na mesa.
Eu sabia a quem pertencia a voz, eu sei a quem pertence a voz. Mas nenhum nome ou rosto me vêm. A mente está em branco.
— Não durma mais que a cama ou vai se atrasar mais uma vez. E depois não quero ouvir de você que sou irresponsável. — Ele brincou.
Minha visão clareou-se, e pude ver o seu rosto exatamente quando sorriu, me lembrando de Kushina; os dois tinham o mesmo sorriso. Disse um "até mais tarde" e fechou a porta, me deixando sozinho novamente. E então, como uma torrente forte de água que destrói o que vê pela frente, tudo me veio a mente de uma vez.
Kushina, filho, café, morte, trabalho. Nessa ordem não tão ordenada dos acontecimentos, mas ordenadas de forma que me fez recuperar a lucidez. Me levantei de uma vez já indo tomar um banho, e quando terminado alcancei o copo de 600ml de pura cafeína amarga em cima da mesa da cozinha não dando atenção as panquecas, pois meu atraso de cinco minutos não permitia.
Mãos no volante e carro ligado espero impaciente a garagem se abrir, o que acontece não tão rápido quanto eu gostaria, com o sol já mais forte e me cegando os olhos instantaneamente. E então a vejo de relance, misturando seu vermelho ao amarelo e azul do céu; ela me olha e sorri fechando os olhos me lembrando de nosso filho, Naruto.
E se vai, assim como meu sono e disposição de mais uma manhã, me deixando sem saber verdadeiramente como seguir. Porém mesmo assim dirijo pelas ruas, enfrento o trânsito, trabalho, almoço, chego em casa e só penso em dormir, mas não o faço até que meu filho chegue e me conte como foi seu dia.
E em nenhum momento sinto sua presença, até que meus olhos se fechem de cansaço. E antes que o completo escuro tome minha consciência, alguém entra em meu quarto, levanta as cobertas até a altura dos meu ombros e deposita um beijo em minha bochecha.
— Boa noite, Minato.
As vozes de Kushina e Naruto se mesclam nas palavras e sou incapaz de dizer quem realmente está ali, se é meu filho ou uma doce lembrança de minha esposa.
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