Sob uma lua apática e abaixo das chaminés das fábricas e telhados cobertos de fuligem, uma figura sombria e esguia se move. Deslizando feito um fantasma envolto em preto, ele ganha metro após metro das ruas e vielas pavimentadas com pedras irregulares. Ignora pouquíssimos transeuntes, muitos destes bêbados e meretrizes, e passava desapercebido aos olhos dos poucos guardas que patrulhavam aquela região. Por debaixo de um chapéu de abas largas marrom escuro, um tanto empoeirado, dois olhos rapineiros cintilam em tons escarlates, perscrutando as sombras a cada esquina que dobra, varrendo cada centímetro em busca de algo, em busca de uma presa.
O homem alto, com ombros largos e braços longos de um espadachim estaca. Chega a um beco terminado em uma sólida parede de tijolos mal rebocada. Havia poucas janelas ali, e todas estavam em perfeito estado, sem sinais de terem sido abertas ou forçadas nos últimos instantes. Um vento frio e cortante irrompe o beco, fazendo a capa esfiapada voar pelos lados. Com uma espada longa e curva, duas adagas e uma pistola longa, demonstrando realmente buscar algo para predar, um alvo.
Abaixando a máscara que cobria seu rosto, exceto os olhos, o homem caminha lentamente, inalando grandes porções de ar com suas narinas dilatadas, como um perdigueiro em busca de um rastro. De repente detêm-se, erguendo o nariz levemente aquilino, encarando o centro do beco. Seus olhos faíscam e se voltam para o telhado de laje com chaminés a sua frente. Lá em cima, cerca de doze metros de altura do chão, outra figura o encarava. Sob aquela luz prateada e mórbida, olhos comuns não conseguiriam distinguir mais do que um vulto. Contudo, as esferas carmesins que aquele perseguidor tinha como olhos conseguiam ver perfeitamente um sorriso se desenhando nos lábios finos do perseguido, com dois caninos brancos feito marfim saltando dos cantos de sua boca.
O homem de cima do terraço se vira e sai correndo, podendo-se ouvir suas passadas sobre a laje, sumindo na escuridão em instantes. Observando melhor a parede a sua frente, o caçador percebe pequenas saliências, como se alguns dos tijolos estivessem saltando da superfície, formando assim pequenos degraus. Em um movimento a figura soturna investe, batendo suas botas longas de couro contra o paredão, parecendo ser mais leve que uma pluma conforme ascendia. Usando as mãos uma vez ou outra, não levou mais do que alguns segundos para o vulto esvoaçante de sua capa pairar entre o luar e a laje coberta de fuligem, como um falcão ganhando os céus noturnos daquela cidade fabril.
Assim que os pés do algoz tocam o concreto, ele dispara feito uma flecha. Puxando sua máscara novamente, seus cabelos brancos esvoaçam por entre a máscara e o chapéu, assim como sua capa negra e úmida, que sob a luz lúgubre e prateada mais se assemelhava com asas abissais.
A presa empreendia uma corrida formidável, saltando claraboias, parapeitos e telhados com maestria, parecendo um gato de rua fugindo de um cão raivoso. Ele trajava calças marrons, camisa branca encardida, um colete amarelado e um chapéu de abas curtas e amarrotadas. Os trajes de um operário. Quando já estava próximo do fim do quarteirão, tendo a sua frente o rio insalubre que cortava todo distrito, onde pretendia saltar sobre uma cabana construída em sua margem, escuta um estrondo! Um trovão, vindo de poucos metros atrás deles. Seu corpo perde toda a balança e vai de encontro ao chão. Uma dor lancinante irradia de seu ombro conforme ele capotava por cima do cimento e acertava uma pequena amurada com a cabeça, ficando atordoado momentaneamente.
– Seu maldito… Eu deveria ter estourado seus miolos naquele beco enquanto farejava feito um cão sem ter me visto… – Ferido, o homem busca se erguer, sentindo o corpo inteiramente dormente. Cospe sangue convulsivamente.
– Deveria tê-lo feito, sem sombra de dúvida. Seu erro foi me subestimar, velho amigo. – O algoz se detêm alguns metros atrás, no incio da laje, pistola longa com o cano ainda fumegando em sua mão esquerda.
O alvo, cambaleante, enfim se põe de pé, ainda vendo a figura de capa esvoaçante a sua frente – Não vou mentir… Eu realmente achei que poderia fugir sem problemas… – Outra cusparada de sangue – Mas tenho que dizer que sou mesmo azarado… De todos que poderiam mandar, logo você, Venator? Não parece zombaria daquela prostituta pomposa?
– Não encare assim, Jonathan. – A voz era fria como aço e tão cortante quanto o vento invernal que abraçava aquela noite – Você sabia o que estava fazendo. Não me importa as circunstâncias nem suas motivações. Sabia que se o fizesse viríamos atrás de você, e viemos. Eu vim.
– Devo admitir uma coisa: Seu sangue realmente é pestilento, assim como o de sua criadora o deve ser… Nunca imaginei que um tiro fosse fazer tanto estrago assim… É muito pior o sangue de morto comum, o qual usaram para me alvejar enquanto eu fugia do palácio… – Ele vomita mais sangue, lutando para se manter de pé.
Venator enfia a pistola na cinta, pousando a mão esquerda numa bainha longa e de entalhes intrincados, segurando o cabo da espada com a destra e começando a puxá-la lentamente. Assim que o habaki aparece, a mão esquerda corre bainha acima, pousando-se sobre o fio, e conforme a arma é sacada, um profundo corte é talhado na mão, embebendo a lâmina em sangue. Com um giro rápido, como o utilizado para limpar o sangue do fio, o líquido carmesim se precipita, como se fosse voar, porém antes que isso aconteça, se solidifica, cobrindo todo metal com infindáveis dentes irregulares e afiados.
– Kamu… Pode estar com guarda e cabo diferentes, mas esta lâmina maldita… Eu podia senti-la pulsando muito antes de sacá-la… – Arregala os olhos involuntariamente enquanto Venator começa apontar a espada em sua direção, assumindo uma postura ameaçadora.
A reação para a frase proferida foi o silêncio e olhos afiados, como a lâmina em riste, segura com ambas as mãos. A esquerda, próxima ao pomo, não demonstrava mais qualquer sinal de corte ou uma gota de sangue sequer.
– Hahahaha! – O ferido explode em uma gargalhada nervosa perante o silêncio assassino do verdugo, apertando a mão direita contra o ombro ferido, fazendo seu sangue correr em maior profusão – O verdadeiro poder jaz além do jugo daquela meretriz que usa a coroa de prata! Deixe-me lhe mostrar um pouco do que eu consegui naquela noite! – A voz dele se torna gutural, rasgando suas cordas vocais.
Jonathan enfia os dedos terminados em garras longas e afiadas na ferida, arrancando e jogando o casco de prata oca de lado que ali jazia alojado. Suas presas brilham e parecem crescer, assim como sua mandíbula, se deslocar. Seus cabelos negros começam a cair conforme sua cabeça aumenta e sua pele se acinzenta. Suas orelhas se tornam mais pontiagudas e seu nariz se dilata e achata, como o de um morcego. Seus músculos se rasgam e se reconstroem, aumentando e tornando sua pele cada vez mais fina. A coisa se avoluma como um colosso. De suas costas um par de asas membranosas sai, rasgando sua carne e se abrindo com mais de três metros de envergadura. Com um guincho, ele crava seus pequenos olhos, agora negros como duas fossas abissais, em Venator, que jazia imóvel, com os mesmos olhos frios de segundos atrás, igualmente fixados na presa a sua frente.
Com um bater de asas a distância entre homem e fera se encurtara terrivelmente. Antes que o ruflar se dissipasse pelo ar, os dois braços maciços com garras atrozes já alcançava o pescoço do espadachim, que acompanhando o movimento dá um passo rápido para o lado, retaliando a investida imediatamente. Com um corte diagonal da direita para a esquerda, a espada canta em notas rubras e o morcego monstruoso se une a melodia escarlate com um chio estridente, seguido pelo pesado som de seu braço esquerdo caindo sobre a laje.
O caçador tinha apenas um pequeno corte na face, danificando mais sua máscara do que sua pele alva propriamente dita. A espada em suas mãos brilhava e parecia convulsionar, como se absorvesse o sangue que arrancara da fera. Esta por sua vez, impelida pela dor devastadora da perda de um membro, se lança novamente, caindo sobre seu alvo. Contudo, sua força recém-adquirida e garras de uma única mão não seriam o bastante para ceifar a vida daquele fantasma de vestes sombrias. Outro passo rápido, para trás, como se tudo ao seu redor estivesse calculado e pudesse ser acessado por seus pés ligeiros. Outra retaliação, porém não o bastante para separar outro membro, porém não menos devastadora.
Outro guincho, mais estridente e dolorido do que nunca. A criatura bate as asas pesadamente, não mais investindo contra seu oponente, mas buscando o céu enegrecido. Seu braço restante havia sido aberto até a altura do cotovelo, pele, carne e ossos, expostos, lançando jorros de sangue em todas as direções. Era preciso apenas mais um bater de asas para deixar o perímetro daquele maldito telhado, entretanto isso nunca viria a acontecer. Tão rápido quanto olhos poderiam piscar, o caçador desprende a mão esquerda do punho intrincado e saca a pistola, que ainda contava com mais cinco tiros em seu tambor, e cada um deles encontrou seu alvo.
O peso da abominação era tamanho que o estrondo de sua quebra estilhaçou as claraboias próximas. Não conseguia sequer gritar mais. Suas asas se contorciam enquanto se virava e encara as estrelas que nunca alcançou. Se arrasta por menos de um metro, já readquirindo sua forma humana. Nu e ensanguentado, esta era a visão de Jonathan que Venator tinha enquanto se aproximava, girando a espada no ar, desfazendo a cobertura de sangue, que cai sobre o cimento emitindo um som nauseante.
A espada é embainhada e a pistola é enfiada na cinta. Os olhos da presa demonstram um medo que jamais sentira em toda sua não-vida. Jonathan sabia que aquilo soava zombeteiramente como justiça poética, lembrando-se agora de todas vidas que encontraram um fim entre suas mandíbulas potentes, vendo ele mesmo seu antigo companheiro de armas abaixar a máscara e escancarar os dentes hediondamente brancos. Não houve palavras finais, pedidos de clemência ou último desejo. Tudo que o homem espalhado sobre o chão frio sentiu foi a dor lancinante de sua garganta sendo rasgada e sugada, enquanto até sua última gota de sangue era removida de seu corpo. Quando tomba, a última coisa que seus olhos agora vítreos capturam é o rosto pálido daquele a sua frente, manchado quase que completamente de rubro, e seus olhos como os de um falcão, contemplam vitoriosos os restos mortais de sua caça já devorada.
Antes mesmo pudesse se virar, Venator é tomado por uma convulsão, caindo de joelhos e sentindo seu corpo todo se empertigar. Sua carne queima e seu sangue ferve nas veias, fazendo-o urrar feito louco. Quando retoma a noção dos seus arredores, sente um cano gelado de ferro encostar em sua cabeça, ainda conspurcada com o sangue impuro de sua vítima.
– Levante-se devagar, sua aberração… – A voz era jovem e tremia mais do que sua mão, que em si parecia um galho fino e seco a mercê dos ventos terríveis de uma tempestade.
Os olhos rubros logo distinguem o uniforme azul-escuro, mal iluminado por uma lamparina a óleo na mão esquerda. O rosto era o de um homem, pouco mais de vinte anos, mesma idade aparentada pelo algoz, que obedece e se levanta.
– Aos meus pés jaz o responsável pela morte de meretrizes e pedintes neste distrito nos últimos meses. Os louros são seus e a história suas para conceber. Sugiro apenas que desencoste este revólver de minha cabeça, pois tudo que conseguirá é me irritar, e caso isto aconteça, você será outro corpo, junto deste infeliz, antes mesmo que possa entender o que lhe retalha… Abaixe a arma e vá examinar o corpo.
– Tudo bem… – O jovem franze as grossas sobrancelhas castanhas, abaixando a arma quase que involuntariamente, virando o rosto na direção do corpo mutilado e drenado. Quando olha de relance para o lado, onde o homem coberto de sangue estava, não vê nada. Ainda aturdido, vasculha os arredores como podia, torcendo para que outros policiais também tenham ouvidos os tiros e cheguem logo, pois divisa ao longe, já sobre o telhado irregular de outra ala da fábrica, uma capa esvoaçando como duas asas negras, vastas como os abismos que jazem nas partes mais sombrias do coração dos homens.
Vielen Dank für das Lesen!
Wir können Inkspired kostenlos behalten, indem wir unseren Besuchern Werbung anzeigen. Bitte unterstützen Sie uns, indem Sie den AdBlocker auf die Whitelist setzen oder deaktivieren.
Laden Sie danach die Website neu, um Inkspired weiterhin normal zu verwenden.