nathymaki Nathy Maki

Existiam ainda uns poucos humanos que haviam me fascinado durante sua breve existência. Com estes eu sempre tinha um cuidado especial, acompanhava suas histórias e guardava-as na memória como um sinal de respeito e reconhecimento. A Morte contadora de histórias? Devem ter ouvido antes, algo sobre uma garotinha cujo passatempo era roubar livros. Esta é uma dessas histórias.


Lebensgeschichten Nur für über 18-Jährige.

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Kurzgeschichte
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Capítulo Único

Notas iniciais: Olá! História original feita para o desafio Mapa-múndi.

País escolhido: Turquia.

Bom eu passei dias sonhando com essa história, e reescrevi ela três vezes porque os personagens não pareciam certos. Até que saiu isso! Espero que gostem! Mas fiquem de olho nos avisos das tags :3

****

Chamam-me de cruel, de injusta, de absurda e até mesmo de cria do diabo. Esta última eu peço que reconsiderem, uma vez que não tenho nenhum tipo de relações com o cara lá de baixo, muito menos com o todo poderoso lá de cima. Quando na verdade eu sou apenas a Morte. Nem preto nem branco. Nem bom ou mal. Apenas existo. Cumpro meu dever. E, ademais da repulsa e do medo, de uma coisa tenha a certeza: a morte sempre chega para todos e eu estarei lá quando for a sua hora.

Mas, de uma coisa não podiam me acusar: ser insensível. Era sempre difícil levar os bebês, com seus rostinhos corados e olhos inocentes que não faziam a menor ideia do que estava acontecendo e nem mesmo haviam vivido o suficiente para sentir falta da sensação; os animais que não possuíam culpa das atrocidades contra eles cometidas; e existiam ainda uns poucos humanos que haviam me fascinado durante sua breve existência. Com estes eu sempre tinha um cuidado especial, acompanhava suas histórias e guardava-as na memória como um sinal de respeito e reconhecimento. Se haviam sido bons o suficiente para chamar minha atenção, o mínimo que eu devia a eles era manter sua memória viva. A Morte contadora de histórias? Devem ter ouvido antes, algo sobre uma garotinha cujo passatempo era roubar livros.

Esta é uma dessas histórias.

A minha primeira visão dele fora no alto de uma colina, na bela Capadócia, o casaco amontoado ao redor do corpo, o gorro escorregando pelos cabelos loiros e compridos levados pelo vento e a risada explosiva e feliz que só uma criança intocada podia ter. Os pais seguiam atrás, as mãos dadas e os olhares ainda apaixonados.

A garotinha correu pelas pedras, gritando e rindo de suas formas, falando de dragões e monstros com os quais batalhava e que o impediam de atravessar o labirinto até a borda. Nenhum deles havia me notado ali flutuando, e muito menos haviam notado o corpo pendurado no fim do caminho. A criança prosseguiu, cada vez mais perto da beirada e do corpo. Já tendo recolhido a alma daquele humano, detive-me ali para ver a sua reação, cativada pelo brilho singular naqueles olhos multicoloridos.

— Victorie! Vá devagar!

Ela girou para olhar os pais, as botas deslizando na grama verdejante e caiu, as mãos enterradas na terra fofa mas o riso ainda nos lábios. Não tive medo que rolasse e caísse de toda àquela altura, seu nome não estava na lista dos que eu recolheria agora.

Observei a expressão mudar, os olhos arregalaram e se tornaram mais escuros, os lábios tremeram e as faces avermelhadas pela corrida perderam a cor. Um, dois, três segundos, contei. E então veio o grito. Lamentei de verdade por aquela bruta realidade que lhe fora apresentada tão cedo, mas não havia o que ser feito. A morte era o curso natural de todo ser vivo, era o contrapeso, o equilíbrio necessário para a vida. Todos deviam entender pois estavam submetidos a esse ciclo.

Parti daquelas escarpas, deixando para trás uma criança chorando com os pais abraçá-la enquanto comunicavam a polícia.

****

Tornei a encontrara Victorie muitos anos depois, quando suas feições já haviam deixado de lado a infantilidade e se preparavam para a transição que todo ser humano passava. Ela corria pelos corredores subterrâneos das casas escavadas nas encostas, um gatinho ferido bem apertado nos braços. Segui-a, minha presença presa aos seus movimentos por aquele ser em seu abraço cuja vinda findava-se. Mas, pelo que via em seu olhar, desesperado, embora focado, os olhos agora claros como uma piscina iluminada, ela não desistiria tão facilmente.

— Dr. Marcocio! Dr. Marcocio! – Gritou, derrapando em frente a uma casa na complexa estrutura da cidade subterrânea de Kaymali onde morava com os pais, e entrou sem bater. — Meu gatinho! Por favor, ajude-o! – Um homem surgiu na sala de estar bem arrumada e fitou brevemente a garota cujos olhos se enchiam de lágrimas.

— Por aqui. – Guiou-a até seu escritório e instruiu-a a colocar o animal sobre a mesa para examiná-lo. Victorie tinha as mãos apertadas e os lábios se movendo em uma prece silenciosa. Lamentei por ela, nenhum deus a ajudaria. A alma do bichinho já estava em minhas mãos.

O médico pareceu perceber o que havia acontecido e suspirou antes de guardar os aparelhos. Voltou-se para a garota que negava com a cabeça.

— Lamento, Vic. Ele se foi. – Ela caiu de joelhos e o médico se abaixou ao seu lado, afastando os cabelos emaranhados do rosto para que pudesse olhar em seus olhos e consolá-la. Mas os olhos se detiveram na marca que havia na bochecha. Os contornos arroxeados já estavam desaparecendo, mas ele sabia muito bem quem havia causado aquilo.

— Ele te bateu de novo? – Perguntou em um tom brando, tentando não a pressionar muito e evitar que fugisse de si mais uma vez.

— Anne diz que é culpa da bebida. Que ele não queria realmente me bater. – Ela fungou e ergueu o rosto para o encarar, o impacto daqueles olhos e de suas variantes coloridas devia desconcertar qualquer um que os encarasse por muito tempo. — Mas eu sei que não é isso. Baba me disse. É por mim. Por minha culpa, por eu ser o que sou. Dessa vez a Milla tentou impedi-lo, mordeu ele para me proteger. E agora ela está morta. Tudo que eu toco morre. – Tornou a se esconder na cortina de cabelos loiros.

— Vic...

— Por que Dr. Marcocio? Por que eu tenho que ser estranho assim? Ser uma garota e me sentir melhor como um garoto? – Os olhos aflitos voltaram a encará-lo, implorando por consolo, por respostas.

— Isso não é verdade Vic, você é perfeito do jeito que é. Não pode deixá-lo tirar isso de si. – Antes que o médico pudesse prosseguir, sentiu uma forte dor no peito que o fez cambalear e perder o equilíbrio. O coração batia acelerado e a dor o atingia em todos os nervos.

— Dr.? Dr. Marcocio?! – Victorie gritou e jogou-se contra o peito do homem tentando chamá-lo, mas era tarde demais. Sua alma assistiu ao choro da garota melancolicamente ao meu lado.

— Tem certeza que é assim que deve acabar? Não posso fazer mais nada? – Ele me perguntou.

— Não. Lamento. Precisamos ir.

Agarrei sua mão e juntos partimos deixando mais uma tragédia para trás.

****

A terceira vez que vi Victorie foi por acaso. Eu havia passado ali apenas para assistir ao nascer do sol. Naquele vale com o decolar dos balões que eram uma das principais atividades turísticas, o fenômeno do nascimento de mais um dia se tornava deslumbrante. Do alto era possível ver os campos verdes e até mesmo alguns animais selvagens, vales, morros, cidades, as casas nas cavernas e formações rochosas típicas dessa região. E eu gostava de assistir a mistura das cores e das formas, a dança suave dos balões no céu. Além de pegar ocasionalmente algum descuidado que perdia bem mais que uma câmera e acabava por despencar de toda aquela altura.

Ele se encontrava em um balão de um bonito azul escuro. Ao seu lado um senhor de idade avançada o controlava, subindo um pouco mais para que ficassem na linha do horizonte. Os cabelos continuavam compridos e ele usava uma blusa de mangas e uma gravata estranha de cor roxa sob a flanela, além de jeans velhos e folgados.

— Mais alto! – Pedia ao senhor, rindo de forma encantada e estendendo as mãos como se pudesse tocar o céu.

— Vic... Sabe que não podemos subir muito, a lei só permite até 1.500 metros.

— Eu sei, Gustav. – Mas seus olhos brilhavam e eu sabia que ele não voltaria atrás. — Mais alto!

— Garota levada. – O senhor resmungou mas fez o que lhe foi pedido.

— Garoto. – Ele corrigiu com um sorriso.

— Então dessa vez é para valer?

— Sempre foi, Gustav. Meu baba apenas não aceita isso. E agora, anne também está do lado dele. – Ele disse com desgosto.

— E por isso você vem aqui todos os dias e me importuna para subir no balão e voar. Está fugindo deles. – Recebeu uma careta como resposta, antes que ele se voltasse para a paisagem e voltasse a tentar tocar o céu.

— Se eu ao menos pudesse fugir para o ar, poderia subir e subir até tocar nas nuvens e nunca mais desceria. – Gustav riu da expressão sonhadora que mesmo depois de tantos anos de maus tratos e abusos, ele conseguia conservar.

— Sabia que uma pessoa uma vez tentou fazer isso? O nome dele era Icarus, e mesmo com o pai o avisando de que não podia voar muito alto, ele desobedeceu e tentou tocar o sol.

— O que aconteceu com ele? – Vic perguntou interessado.

— Ele chegou tão perto do sol que toda a cera de suas asas derreteu e ele caiu no mar. – Passaram um minuto em silêncio, observando o nascer do astro e o dourado que cobria os campos e iluminava as formações rochosas pelo vale.

— Que Icarus mais estúpido, - ele disse de repente. — devia ter usado um balão.

Gustav sorriu e apoiou a mão na cabeça dele com afeição.

— E um dia você usará esse para ir aonde quiser. – Murmurou mais para si mesmo em uma promessa.

E quando foi a hora de Gustav, sua alma me acolheu com resignação.

— Espero que o garoto fique bem.

Foi tudo o que disse antes de me acompanhar tranquilamente.

****

A última vez que vi Vic sem ser proposital, foi no funeral de seu pai cuja alma não tinha sido muito boa de se recolher, lutara e resistira, e tal fato refletia a personalidade tinha em vida.

Vic estava parado em um canto, a cabeça abaixada e os cabelos antes compridos, cortados em desalinho e com as pontas tortas. A mãe ao seu lado chorava, mas eu podia enxergar nos olhos dele, com tantos séculos de experiência vagando pelo mundo, eu havia me tornado boa em interpretar sentimentos não falados e os dele estavam expostos para mim como se eu estivesse lendo um livro aberto. Ele estava feliz com a morte do pai, culpado por esse sentimento, mas feliz de todas as surras terem chegado ao fim. A mãe ao seu lado pareceu sentir seu estado de espírito, pois a mão se moveu com a incrível velocidade acertando a face e levando-o ao chão.

— É tudo culpa sua! Se não fosse tão assim! – Olhou para o terno e gravata que ele vestia e os cabelos que ela mesma cortara em um acesso de raiva. — Não posso acreditar que seja minha filha! Sua aberração!

— Eu sou seu filho! – Gritou de volta e as pessoas ao redor passaram a olhar a cena cochichando, algumas espantadas e chocadas outra lançando olhares de desprezo.

O som da cabeça dele se chocando com a janela era algo que eu nunca esqueceria, e certamente ele também não. Não dada a cicatriz marcada na pele macia da bochecha que era obrigado a encarar todos os dias ao se olhar no espelho. A partir desse dia, eu passei a visita-lo por vontade própria, para acompanhar sua história e ver aonde tanta determinação que eu enxergava em seus olhos o levaria.

****

O balão agora decolava todas as madrugadas. O azul escuro combinando com o céu ainda noturno, mas em pouco tempo contrastava com o laranja vibrante que surgia no horizonte. Era sempre fascinante observar as cores, a mudança dos espectros e como estes encantavam os turistas.

Vic agora fazia passeios sempre que podia e pelo que podia ver, a mãe substituíra o pai nos maus tratos e ele estava tentando juntar a quantia necessária para de afastar de vez. Em um desses passeios, no qual o acompanhavam somente uma garotinha de tranças e seu pai e um passageiro inusitado que se atrasara e correra até o balão ameaçando se pendurar nas cordas para subir, eu presenciei como os sentimentos podem nascer de maneira inesperada.

— Com licença, mas qual o seu nome? – Vic recuou, e os pensamentos se embaralharam. Os olhos escuros fitavam os seus e a pele dele tinha um tom bonito de café. O sorriso muito branco e a mão que coçava o cabelo curto indicava que estava sem jeito, envergonhado pelo atraso mais cedo. Diferente dos demais turistas, ele deixava de apreciar o passeio para se concentrar naquele que os guiava.

— Icarus. – Ele mentiu, dando o nome que usava no trabalho. Não podia se dar ao luxo da mãe descobrir o que fazia e o trancar para sempre em casa. Quando entrava no balão, não era mais Victorie, e sim Icarus.

— É um nome incomum, não deve ser real, não é? – Vic assentiu e voltou a se concentrar nos controles. Mas o passageiro não parecia querer encerrar a conversa. — Lamento pelo inconveniente mais cedo. Não era minha intenção atrasar o passeio.

— Tudo bem. – Ele murmurou pouco acostumado com estranhos que pareciam tão à vontade conversando consigo. Geralmente as pessoas se afastavam de si, murmurando e lançando olhares de desprezo, pouco compreensíveis para com os outros humanos.

— Meu nome é Alexey, em homenagem ao grande comandante Alexandre o grande. E o seu, por que Icarus? – Vic lhe lançou um olhar sem compreender o motivo dele continuar puxando conversa mesmo com sua clara demonstração de afastamento.

— Por que um dia quero tocar o céu, mais tenho que lembrar de não chegar próximo demais do sol ou poderei cair no mar. – Algo naquele olhar o impeliu a dizer a verdade.

— Mas na Capadócia não tem nenhuma praia. – O passageiro pareceu verdadeiramente confuso o que arrancou uma risada genuína de Vic.

— Já olhou para baixo? – Os dois observaram a grama verdejante que se entendia pelo vale. — O mar não precisa ser necessariamente azul. – Os olhos escuros se arregalaram em compreensão.

— Oh, eu vejo! – O sorriso animado relampejou em sua direção e Vic sentiu o rosto corar. Passou o restante do passeio em um silêncio constrangido, mas não pode deixar de sentir os batimentos acelerarem ao pousarem e ouvir a despedida. — Vou estar aqui por alguns dias, posso te ver de novo amanhã?

E para aquela pergunta não havia como dizer não.

****

O céu estava limpo e as nuvens pareciam algodão, passeando lentamente pelo céu. Eu me encontrava deitada na grama ao lado dos dois, assistindo ao desenrolar da conversa que aqueles encontros matinais causavam. Os dias rapidamente se tornaram meses e logo Alexey procurava residência permanente na cidade.

— Não, sério? Jogaram você na fonte? – Vic riu, os cabelos espalhados na grama e as roupas confortáveis de verão.

— Jogaram. – Ele confirmou. – E o pior foram os guardas me perseguindo por ter molhado a entrada da Mesquita Azul! Eu precisei me esconder em uma barraquinha de comida fingindo ser o vendedor. – Por um momento as risadas dominaram o ambiente.

— Então você já esteve em todo lugar? Isso faz de você um aventureiro.

— Quem sabe? – Alexey sorriu, virando-se para o fitar diretamente. — E digo mais, sinto que minha próxima aventura é você.

— Saçma. – Vic riu, abanando o rosto vermelho, sem jeito.

— Estive em todos os lugares da Turquia, ainda não conseguir sair do país. Mas há tantas coisas maravilhosas para ver por aqui. Gostaria que pudesse te levar para ver os mosaicos da Basílica de Santa Sofia ou comprar roupas no Grande Bazar em Faith. Tenho certeza que seu estilo os deixaria atordoados. – Sorriu para a camiseta desenhada com carinhas sorridentes e os tênis azuis reluzentes.

— Você sabe que eu não sou uma garota, não é? – Vic soltou de repente o que vinha rondando seus pensamentos por dias.

— E isso importa? – Alexey estendeu a mão e traçou o contorno de uma das nuvens. — Eu acredito que estamos nesse mundo para amar o conteúdo e não a embalagem.

— Me chamou de embalagem? – Vic recuou fingindo estar ofendido.

— Não seja bobo. – Alexey riu e segurou a mão dele que descansava nas laterais do corpo. — Você é você, independente do que demonstre por fora. – Os olhos multicoloridos eram deslumbrantes ainda mais quando iluminados pela luz natural. — Agora me conte, Icarus, depois desse tempo todo eu mereço saber seu nome verdadeiro, não acha?

— Você sabe exatamente como acabar com o clima. – Reclamou, mas estava sorrindo e sussurrou o nome em meio ao sopro do vento como se fosse um segredo mágico. E, naquele momento, para os dois, de fato era.

****

Haviam adormecido nas cavernas, enrolados juntos em uma pesada manta que os protegia do frio noturno. Os gemidos e a movimentação acordaram Alexey que dormia a sono solto.

— Não morra, por favor, não morra. Eu paro de ser assim. Vou parar!

— Vic! Vic! – Alexey o sacudia em uma tentativa de acordá-lo. – Değerli!

Os olhos se abriram e correram de um lado para o outro, assustados.

— Eu tenho medo, Alexey, medo de que tudo que eu toco realmente vá morrer. Que você morra. E que seja culpa minha. – Os olhos escureceram, as lágrimas caindo pelas bochechas e os cabelos bagunçados. Alexey segurou seus pulsos e subiu as mãos dele para o próprio rosto.

— Está vendo? Está me tocando agora e eu não fui a lugar nenhum. Você não foi a lugar nenhum. – Tocou o rosto dele, limpando as lágrimas e beijou as pálpebras fechadas com carinho. — Olhe para mim. – Vic obedeceu. – Eu estou aqui para você, meu Icarus, e um dia iremos tocar o céu juntos. É uma promessa.

E desde esse dia eles não mais se separaram. Alexey via Vic como ele gostaria de ser visto: de modo tão preciso, tão maravilhoso, tão espontâneo. Estava simplesmente lá. Enxergava exatamente o que Vic queria que fosse visto. Via uma pessoa muito nítida, muito clara. A pessoa perfeita para si.

****

— Estou pensando em pintar estrelas no balão. Deixar mais chamativo para os turistas. – Vic olhou criticamente para o tecido azul escuro imaginando as constelações que os pontinhos ali pintados poderiam formar.

— Só não coloque ali as estrelas dos seus olhos. Essas eu gosto de ter o privilégio de olhar.

— Saçma. – Comentou, o rosto avermelhado.

— Bobo por você. – Alexey se aproximou e entrelaçou os dedos aos do amado. Confortável, respeitoso e exatamente como deveria ser. — O que acha se eu ajudar a pintar?

— Seria perfeito. – Vic sussurrou em resposta.

Quando os lábios se tocaram, virei-me para partir, dando-lhes a privacidade necessária para que o amor que cultivavam florescesse.

****

Enquanto Vic enfim deixava a casa da mãe e partia para iniciar sua vida com Alexey, eu me encontrava em Ancara, capital da Turquia, em frente à Estação Central de trens recolhendo as almas dos mortos após as explosões ocorridas durante uma manifestação sindical em favor da paz no país. Enquanto alguns apreciavam a chegada da paz em sua vida, outros pagavam caro por ela. Os humanos simplesmente morriam demais. Haviam coisas demais para findar sua parca existência: guerras, sentimentos inflamados, a dor interna que não era compreendida, as doenças.

Ah, as doenças, isso era outro tópico que me fascinava. A facilidade com que eles decaiam em minhas mãos por culpa de uma gama de fatores ambientais que se esforçavam para cumprir seu papel de controle de espécie. HIV, Câncer, peste negra, gripe espanhola, todas cobriam os meus dias e os tornavam atarefados ao extremo. Porém, uma em especial, era uma causa recorrente. Já ouviram a frase doente de amor? Aposto que sim. Muitas coisas são feitas em nome do amor, não devia surpreender a doença ser uma delas.

Acompanhei Vic definhar com o tempo. Alexey havia concordado em passar por um curso intensivo de veterinária e para isso precisou se mudar para Ancara por algum. A cada mês passado distante do amado uma parte sua se retraia. Ele passara a murmurar para si mesmo as palavras que tanto ouvia na infância, tendo pesadelos e sonhos nos quais Alexey lhe deixava. E a cada ligação o amado fazia questão de deixar bem claro que isso não aconteceria j.

— Adivinhe, Vic! Estarei de volta amanhã bem cedo, então prepare o balão, sim? Iremos voar e tentar novamente tocar o céu como você gosta.

— Mal posso esperar. – Sorriu, esperançoso, a saudade estampada nos olhos agora claros.

Naquele momento, eu lamentei meu trabalho. Enquanto colhia a alma de Alexey após um acidente de carro na volta, Vic recebia a carta, uma surpresa para o aniversário dos dois. Havia um poema e um chocolate que ele sabia ser o seu favorito. E sorrindo feito bobo, com a esperança renovada, foi fazer os preparativos para o balão estar no ar quando o amado chegasse. E foi nesse momento, recebeu a ligação.

Não pensou. Apenas subiu no balão com a carta em mãos e levou-o  até o ponto preferido dos dois onde parou, fitando o horizonte.

O fim era frio e solitário. Não havia ninguém para ouvir suas últimas palavras, o sussurrar lançado ao ar e carregado pelo vento. Ninguém visível a ele, ao menos. Mas eu estava lá, aguardava com a paciência há muito cultivada e acolhia sua súplica final.

— Eu não quero morrer, mas não quero viver sem você.

E como boa observadora, apenas flutuei melhor em busca de uma posição melhor para assistir ao desenrolar dos fatos. E ali, no ar, cercado pelas nuvens fofas do fim da tarde e pelas encostas deslumbrantes da Capadócia, parado no ar no balão que lhe foi deixado de presente no qual o amor havia pintado estrelas, Icarus fechou os olhos e, tal qual seu homônimo, caiu.

Por um momento, ele pode tocar o céu, a mão esticada e um sorriso nos lábios. O sonho de criança enfim realizado. Era um fim digno, muito mais do que esperava que fosse. Então uma voz sussurrou com carinho em sua cabeça:

“Prometa para mim que aconteça o que acontecer, você irá continuar vivendo. Não por mim, ou por nós, pois pode chegar o dia que a morte irá nos separar, mas por você. Porque você é importante e merece ver o mundo, conhecer outras pessoas como você, viver em um lugar no qual te aceitem como é, como eu aceito. Viver por si mesmo. Prometa-me que fará isso. 

— Eu prometo. ”

E, com um assomo de percepção, os olhos multicoloridos se abriram e as mãos seguraram em uma das cordas que escapavam dos nós que prendiam os sacos de areia ao cesto. Ele lutou, a adrenalina percorrendo as veias e lhe dando a força que não possuía, mas que era necessária para escalar até o topo do cesto e se jogar lá dentro, deixando o balão ser levado pelo vento para onde quisesse enquanto chorava amargamente por sua perda.

****

A última vez que o vi, foi no dia de sua morte. Já muito velhinho, mas com os mesmos olhos determinados. Sua alma sentou-se ao me ver chegar e me acolheu como se há muito me aguardasse.

— Foi uma boa vida? – Eu perguntei curiosa.

— Não. – Ele me sorriu, os olhos multicoloridos ainda marcantes na face. — Mas eu a vivi como podia, nunca desisti, e tenho certeza que ele ficaria orgulhoso.

Juntos olhamos uma última vez a bela paisagem com seus balões flutuantes que havia sido o palco de sua vida.

— Gostaria de encontrá-lo?

— Bastante. – O sorriso que me lançou continha esperança e saudade. — Obrigado. – Sussurrou antes que eu agarrasse sua mão estendida e o levasse comigo.

E juntos partimos.

****

Glossário: *Baba – papai. / Anne – Mamãe. / Saçma – Bobo. / Değerli – querido.

Notas finais: O evento que a Morte visitou aconteceu em 2015 e deixou 95 mortos e 246 feridos e ocorreu devido à explosão de duas bombas em meio a um protesto na cidade de Ancara, capital da Turquia.


24. November 2018 23:20 6 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

Über den Autor

Nathy Maki Fanfiqueira sem controle cujos plots sempre acabam maiores do que o planejado. De romances recheados de fofura a histórias repletas dor e sofrimento ou mesmo aventuras fantásticas, aqui temos um pouco de tudo. Sintam-se à vontade para ler! Eterna participante da Igreja do Sagrado Tododeku <3

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Olá! Primeiro de tudo, pedimos desculpa pela demora para postarmos o comentário e faremos o possível para que esse atraso não se repita. A história de Victorie, ou melhor, Icarus foi uma grande montanha-russa de emoções. O começo aparentemente feliz, depois todo o conflito com os país, a fuga pessoal dentro do balão com o céu como desejo e depois Alexey… Incrível! A questão dele ser trans foi trabalhada bem e você conseguiu mostrar como o personagem se sentia com tudo o que acontecia. O final foi realmente aliviante com esse pequeno suspiro de vida! E ah, é claro o fato de que a Morte conta a história deu todo um brilho para a história. E tudo isso passado na linda Turquia, que você conseguiu descrever e se manter dentro do tema! Agradecemos que tenha participado e te esperamos nos próximos desafios! Até mais!
February 22, 2019, 16:26
Erin C Erin C
Existe um mensagem muito bela aqui, nossa... Eu tô realmente segurando as lágrimas. Porque não é fácil viver, não é simples enfrentar os obstáculos e por vezes não sentir que é suficiente desta forma. Desistir, também é uma decisão difícil. Eu fiquei feliz que ele escolheu a pior, continuar lutando, por uma promessa. E isso foi tão lindo! Sobre a morte, excepcional. Adorei a perspectiva dela, a suavidade que ela deu a história e a forma de como a morte é 'comum'. E a mensagem de continuar lutando foi maravilhosa, obrigada por isso. 💙
December 02, 2018, 14:42
Eu estou chorando. Começou quando ele pulou e veio a promessa a sua mente, e não parou até o final. Seu conto teve momentos tão doces misturados a momentos tão tristes que nem sei como me sentir. Escreveu sobre uma vida completa, então não tinha como ser de outro modo, não é mesmo?! No começo pensei: uhn, ela colocou que era menino e depois menina, tenho que avisá-la para corrigir. Mas aí tudo fez sentido. Achei muito linda toda a construção, e devastadora, mas o final acho que deu uma compensada por dar a entender que o casal vai se encontrar novamente. Dá aquela aquecida no coração rsrs Parabéns pelo conto ♡
November 28, 2018, 00:58
Ayzu Saki Ayzu Saki
Parabéns, me fez chorar de novo. Eu já esperava algo triste - a morte está narrando afinal, o que mostra que ela estava de olho -, mas fiquei mais triste do que esperava hahaha. Eu sou fascinada pelo tema, acho que já deu para perceber, e a menina que roubava livros até hoje é um dos meus livros favoritos por isso. E agora, essa é uma das minhas estórias favoritas também <3
November 25, 2018, 16:39
Di Angelo Di Angelo
Eu pensei que ia ser fofo ou no máximo um pouco triste, mas quando percebi tava chorando do começo ao fim e as letras embaçadas eram a prova do qual triste ela é. O pai que o agredia, a mãe que não era muito melhor e todas as pessoas queridas que Vic viu morrerem eram uma nova lágrima. E esse final. Caramba o final foi um primor. Sua fala pra morte deve representar tantas pessoas que já se foram. Com certeza uma obra linda.
November 25, 2018, 14:11
Saah AG Saah AG
MENINA, HELP! Fiquei de coração partido quando li essa one :c Todo o sofrimento do Vic na infância apanhando do pai e depois da mãe, da rejeição da família porque o Vic é trans pra depois ele achar alguém que o aceitava e AAAAAAAAAAAA. Fiquei triste :c Principalmente porque ele acabou vivendo o restante dos dias, mesmo sem ter um sentido pra viver. Sério, fiquei mt triste mesmo. Tô esperando a senhora na lista dos destaques do desafio, ouviu?? u.u Porque, miga, mesmo que você não tivesse dito nas notas iniciais, dá pra ver CLARAMENTE que você pesquisou sobre o país (fora que o plot foi mt bem pensado e mt criativo). Sério, essa one tá digna de um prêmio bem lindo <3 Ps: as referências ficaram do babado.
November 25, 2018, 02:45
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