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O protagonista da obra é Dom Quixote, um pequeno fidalgo castelhano que perdeu a razão por muita leitura de romances de cavalaria e pretende imitar seus heróis preferidos. O romance narra as suas aventuras em companhia de Sancho Pança, seu fiel amigo e companheiro, que tem uma visão mais realista.


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#classicos #Dom-Quixote #389 #Miguel-de-Cervantes
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Don Quixote

Don Quixote 

(Em comemoração de seu quarto centenário)

 

  

Ao comemorar os 300 anos do Quixote, escrevia Rudolf Rocker em 1905: “Vivemos num mundo de ciência positiva e nossos corações estão vazios e as almas murchas.” e também “O caminho para as estrelas foi esquecido; hoje o idealismo permanece tranqüilamente no solo e recolhe vermezinhos...”.

 

Cem anos se passaram, e estas palavras nunca foram tão atuais.

 

Mas as generalizações são perigosas e, acrescentaria Nelson Rodrigues, burras. Inclusive porque o próprio Quixote era uma exceção sonhadora em um mundo que já enterrava os sonhos cavaleirosos e cavalheirescos.

 

Todas as vezes que li o D. Quixote, inclusive esta, li um D. Quixote diferente, porque em diferentes fases da vida. Dessa vez, pensei cá com meus botões: “acho que o entendi melhor”, porque já passei da idade em que ele resolveu sair ao mundo à cata de aventuras. Um pouco tardio, mas não serôdio, cá estou eu, agora e ainda, de lança em riste, contra os que confundem modernidade com o abandono de valores básicos, sem os quais não creio que a civilização persista ou, em persistindo, será como caricatura, sem que valha a pena.

 

Honra, decência, honestidade, empenho e respeito à palavra dada e, acima de tudo, sobretudo, fidelidade aos próprios sonhos, respeito a si mesmo. Valores que não deveriam ser, e não são, de esquerda ou de direita, mas civilizatórios. Todos valores que encontramos no D. Quixote e, aqui e ali, ainda nos que persistem, em uma época em que se diz que “o sonho acabou”. Pior, digo eu: “transformou-se em pesadelo”.

 

Que consigamos sair do pesadelo, e não pela morte, para que, ao se comemorar os quinhentos anos do Quixote, alguém possa escrever: “o sonho voltou e com ele a aventura e a ventura humanas. E o sonho é belo, porque agora é a realidade!”

 

Teotonio Simões

Outono de 2005

 

 

 Don Quixote

 (Em comemoração de seu terceiro centenário)

 

  

DON QUIXOTE, nobre cavaleiro da Mancha, amigo e protetor dos sofredores, amante da imortal Dulcinéia del Toboso e dono do fiel Rocinante: cobre teu rosto com ambas as mãos para que não se note sua vergonha ante a ofensa que acabam de infligir-te; porque nunca te ofenderam tanto como hoje, trezentos anos depois daquele dia inesquecível em que abandonaste pela primeira vez tua casa e teus amigos para percorrer o mundo em defesa da justiça e para fazer ressuscitar a fama eterna da cavalaria andante.

 

Muito padeceste em tua vida, grande cavaleiro da Triste Figura! Combateste uma batalha desesperada contra gigantes, mas afinal os gigantes eram apenas moinhos de vento e tiveste de pagar teu erro com a cabeça quebrada e alguns ossos partidos. Rústicos aldeães quebraram teus dentes cavalheirescos, pastores de ovelhas vulgares pisaram -te com seus pés, gente ingrata, incapaz de compreender a grandeza cavalheiresca, te encerrou numa jaula de madeira e te convenceu de que estavas encantado; até corrias o perigo de que em tua estranha clausura se sentisse o mau cheiro, e se não fosse o bom Sancho, a poesia de tua empresa heróica teria terminado num fato demasiado prosaico... Mas suportaste com paciência augusta, porque teu escudo estava branco e nenhuma mancha sujava tua honra de cavaleiro. Todo o mundo se ria então de tuas façanhas imortais, mas que importava o seu riso? Tu vivias em teu mundo próprio, mundo distinto do dos outros; cada acontecimento se apresentava ante ti em cores e imagens particulares e quem se atreveria a sustentar que tuas visões eram piores que as dos outros? Tu vias gigantes, enquanto Sancho só percebia moinhos de vento, e considerando-se que a verdade absoluta não existe, já que aquilo que denominamos verdade está sempre determinado por nossas condições subjetivas, por nossa convicção interior, tua opinião não foi pior que a do bom Sancho... Se tivesses contemplado o mundo com os mesmos olhos que os outros homens, jamais terias sido Don Quixote; no entanto, devido precisamente a teres interpretado os fenômenos do mundo segundo tua própria maneira, teu nome se tornou imortal e tua imagem aparece em nossos corações tão fresca e vívida como há três séculos. Portanto, nada pôde agravar-te por ter visto e sentido de um modo distinto do de teus contemporâneos. Eles zombaram de ti, mas tu nem sequer os ouvistes: seu riso não teve eco em teu mundo.

 

Mas hoje, ah! hoje o quadro variou completamente. Hoje te admiram, valente cavaleiro da Triste Figura. Agora celebram teu terceiro centenário com sábios discursos e festas ruidosas. Os mercadores, Don Quixote, os traficantes, os filhos pervertidos de teu fiel criado Sancho, te admiram. Outrora eras grande porque os mercadores, os homenzinhos prudentes e práticos zombaram de ti, mas hoje, hoje celebram tua memória ocultando o quadro de tua grandeza luminosa com seus ventres avultados e suas almas grosseiras... Nem sequer te consultaram se estás de acordo com seus festejos, se agradam suas homenagens... Eles são os donos da vida, grande cavaleiro, eles, os traficantes, compraram a propósito várias fangas de aveia para o magro Rocinante, a fim de que não seja tão magro em meio de uma companhia tão gorda.

 

Ó, compreendo tua dor, cavaleiro imortal! Sei por que ocultas teu rosto com ambas as mãos: para que o mundo não veja a ofensa grave que te causaram. Acredita-me, nobre cavaleiro, que conheço teus pensamentos ocultos e participo completamente da dor de tua alma ofendida. Que o mundo se tenha rido de ti, que importava? Mas, que os mercadores festejem tua memória, que os ricos comerciantes de Madrid estabeleçam um prêmio de vinte mil pesetas para o que pinte o melhor retrato de ti, isto sim é doloroso, mais amargo que o fel... Eu não sei que classe de quadro vão fazer de ti, mas temo muito que representem o bom Rocinante como cavalo de cervejeiro e que a ti mesmo te ponham uma pança... Sim, grande cavaleiro, temo que o façam, porque nos tempos que correm já não se respeitam os ideais “magros”; no mundo dos mercadores até o idealismo engordou: não lhes nasceram asas, mas em compensação adquiriram um ventre respeitável... Que necessidade têm de asas? O caminho para as estrelas foi esquecido; hoje o idealismo permanece tranqüilamente no solo e recolhe vermezinhos...

 

Ó, nobre cavaleiro da Mancha! Tu travaste uma batalha contra gigantes e serpentes de fogo; os gigantes morreram a pouco e pouco, o fogo extinguiu e só ficaram as serpes, serpes — mercadoras, frias, escorregadiças que não podem contemplar o céu azul e o sol luminoso porque se arrastam através da vida como ladrões. Se te levantasses agora de teu túmulo e não voltasses a percorrer o mundo para realizar façanhas heróicas certamente deverias lutar com os mercadores, mais perigosos que os antigos gigantes...

 

Recordo ainda como se fosse a primeira vez que te conheci. Eu tinha então uns doze ou treze anos. Era uma noite de Natal; nós, as crianças, estávamos na cozinha aguardando com impaciência que a mãe bondosa abrisse a porta; estávamos impacientes, pois quem poderia adivinhar as surpresas que mamãe havia preparado para nós? E por fim abriu-se a porta do paraíso e todos corremos ao aposento com tanto ímpeto como se houvesse tratado de salvar a vida. As velas da árvore de Natal brilhavam com todas as cores e ao derredor delas estavam distribuídas as coisas boas que mamãe havia comprado para nós e ocultado com tanto zelo durante toda a semana. Aí estava o meu lugar: uma pequena espingarda, um quepe, um teatro infantil, maçãs, nozes e diversos doces, e no meio de toda essa riqueza havia um livro. A princípio não o havia visto, pois meus olhos estavam absorvidos por outros objetos; mais tarde, porém, ao descobri-lo, tomei-o rapidamente na mão e o contemplei com olhares curiosos. Trazia na capa um quadro: duas figuras extravagantes. Um homem alto e delgado que levava uma velha armadura demasiado pequena para ele e montava um velho cavalo tão magro como o dono; ao lado do primeiro ginete ia, montado em um asno cinzento, um homem pequeno e gordo. O título do livro era: História do engenhoso fidalgo Don Quixote de la Mancha. Aquela noite contemplei apenas as figuras do livro — era uma edição ilustrada para crianças — mas não li nem uma palavra. Na manhã seguinte me entreguei ao meu tesouro literário. Fazia um frio espantoso em casa; não havia lume porque minha mãe dormia ainda. Cuidadosamente desci da cama, peguei o livro e tornei a meter-me nela entre os frios lençóis. E comecei a ler. A princípio a história não me produziu grande impressão; logo depois, porém, quando cheguei às façanhas heróicas do nobre fidalgo, eu não contive o riso. “Que louco! — pensei — Até um cego poderia ver que se trata de moinhos de vento e não de gigantes. Estranhava-me que não se importasse com as palavras razoáveis do prudente Sancho!” E eu experimentava um verdadeiro prazer quando lhe quebravam as costelas. Mas logo nasceu em meu coração outro sentimento: a compaixão. Eu imaginava a figura de mártir do valente cavaleiro e seus lábios ensangüentados e me indignei porque o tratavam tão mal. “É um louco; não sabe o que faz! Por que maltratá-lo tanto?”

 

Voltei a ler o livro com freqüência, até que o perdi um dia no bosque. Sentia-o muito, mas as crianças esquecem facilmente e eu também esqueci a pouco e pouco a Don Quixote, a Sancho Pança, a Rocinante, à formosa Dulcinéia del Toboso. Passaram-se os anos. O idealismo tormentoso da juventude me abraçou também a mim com toda a veemência de sua força. Nesse formoso período voltei a ler pela segunda vez Don Quixote. Havia caido por causalidade em minhas mãos e desde então já não me separei dele.

 

Eu não poderia afirmar que me tenha sentido entusiasmado por ele nos primeiros tempos. Ainda via nele um cego fantaseador, vítima inconsciente de uma idéia fixa; contudo lia-o com sumo agrado, porque a esplêndida arte narrativa de Cervantes me produzia uma forte impressão. Então compreendi também contra quem havia dirigido sua obra imortal, o grande espanhol; algumas coisas somente me eram incompreensíveis: eu não percebia ainda o Rocinante, que eu mesmo montava e ainda não me dava conta de que eu estava também enamorado da imorredoura Dulcinéia del Toboso. Agora sei muito bem que cada um de nós cavalga em seu próprio Rocinante e está enamorado de alguma Dulcinéia e, para dizer a verdade, alegro-me de que seja assim... Mas então ignorava tudo isso. Don Quixote era um dos meus favoritos, mas na realidade só era um hóspede para mim.

 

E novamente transcorreram meses e anos. Eu abracei a vida e a beijei com todo o idealismo, com toda a força da juventude. Em minha mente se refletiam quadros sublimes, quadros de felicidade e de amor, de um futuro grandioso e belo. E neste período me visitava amiúde um hóspede estranho, desconhecido; chegava ao anoitecer, quando a obscuridade se estendia lá fora, e levava sempre a mesma capa negra sobre os ombros secos. Sua visita nunca era prolongada. Vinha, contemplava-me com olhos frios e cruéis, em seus lábios finos e pálidos aparecia um sorriso de desprezo e não pronunciava uma única palavra. Cada vez que me visitava eu sentia uma punhalada no coração: não o queria, mas tampouco o odiava. Eu esperava sempre que me falasse; às vezes até movia os lábios como se me quisesse dizer alguma coisa, mas eu nada compreendia. Logo deixou de vir por algum tempo. Mas uma noite voltou de novo e esta vez sim, falou-me. “Louco, para que?” — isso foi tudo o que disse, e logo partiu. “Louco, para que?” Estas palavras ardiam em minha alma como um fogo infernal, ressoavam constantemente em meus ouvidos, causando-me muitos momentos amargos e dolorosos. Qual, é o sentido dessas palavras? — perguntava-me. E de repente me apareceu a cara conhecida, com os olhos frios e impiedosos, os lábios finos e pálidos e o eterno sorriso de desprezo... E perdia o valor de achar uma resposta à minha pergunta.

 

Em certa ocasião, era no inverno, voltei para casa altas horas da noite. Havia ido ver Hamlet e a obra formidável do genial inglês impressionou os sentimentos mais recônditos de minha alma. Eu sentia tanta amargura em meu coração, estava eu tão triste e melancólico, que quase ia a romper em choro. Sentado ante minha mesa, volvi a ouvir as palavras terríveis que tanto me haviam torturado e que me eram tão odiosas: “Louco, para que?” Desesperado, tomei do livro: era o primeiro tomo de Quixote. Nobre cavaleiro da Mancha, podes imaginar quão agradecido te fico? A não ser por ti, certamente não teria sobrevivido àquela noite tremenda, inesquecível. Passei a noite lendo e meu coração se sentiu aliviado e contente; meus olhos derramaram lágrimas, não por causa da dor, mas devido a uma alegria interior que me fazia chorar. Por fim deixei o livro de um lado e me pus a passear pela pequena casa. Nessa noite, que começou tão tristemente, senti-me inteiramente ditoso.

 

De repente olhei por acaso o espelho que estava em cima da chaminé. Que é isso, um sonho ou um quadro real? Ali, no espelho, divisei o fidalgo da Mancha. Montava seu Rocinante e me fazia amavelmente um sinal com a cabeça. Mas seu rosto me era muito conhecido! Movi o braço para a esquerda e o cavaleiro do espelho fez o mesmo. Meneei a cabeça; Don Quixote fez idêntico movimento. E logo compreendi quem era e conheci também Rocinante. Mas não vou revelar-vos o segredo... “Louco, para que?” ressoou novamente em meus, ouvidos; mas esta vez já não tive medo da pergunta, porque já sabia que responder. “Louco, para que?”, perguntas, hóspede silencioso e desconhecido dos grandes olhos enigmáticos, “para que?”. Pois agora vou dizer-te: para montar um Rocinante e estar enamorado de uma Dulcinéia del Toboso...

 

Então eu não sabia nada de Nietzsche, mas já compreendia a magnífica lição de Zaratustra: Ditoso é o homem que pode zombar de si mesmo! Desde aquele momento o nobre cavaleiro da Mancha já não era para mim um hóspede, mas um bom amigo. Via-o em todos os períodos da história humana e concebi que Don Quixote e Hamlet são os dois pólos ao redor dos quais gira a nossa existência.

 

Sim, valente fidalgo, tu eras grande, não por teus fatos, mas pela força de tua vontade poderosa. Não esperastes que algum dia criara um mundo para mim, tu mesmo criastes um mundo, teu próprio mundo; podem os outros rir dele, tu contudo és um criador, enquanto eles são somente seres de outro mundo, que receberam em herança, pois eles jamais seriam capazes de criá-lo. Tu és imortal porque o és todo para ti; não querias ser o escravo mas o senhor da vida e por isso tiveste sempre o valor de proceder, ainda quando a razão prática de teus coetâneos não via nenhum motivo para a ação. Ó, cavaleiro da Triste Figura, oxalá tivéssemos nós um pouco desse valor para agir, desse valor que não teme as conseqüências! Que bem nos faria nesta época em que o espírito de Hamlet domina as almas e os corações dos poucos homens que não tomam parte no baile dos mercadores em torno do bezerro de ouro! Todos nós temos visto, como Hamlet, o fantasma de nosso pai assassinado e conhecemos o assassino, mas renunciamos à ação, à ação salvadora e libertadora, nobre cavaleiro. Vivemos num mundo de ciência positiva e nossos corações estão vazios e as almas murchas.

 

Antigamente os homens tremiam ante a morte e por isso suportavam com mais resignação o jugo da servidão e da escravidão, desde que pudessem salvar a vida. Os Hamlet de nossa época não temem a morte, sua covardia adquiriu um caráter diverso: tremem ante o ridículo, porque se esqueceram de rir de si mesmos. Eles vêem a sombra ensangüentada do assassinado e bem quiseram tirar vingança do homicida, mas há uma coisa que os detém: não o medo da morte, mas a idéia de que talvez os gigantes se convertam em moinhos de vento, que a tragédia talvez termine em comédia; e em tal caso Hamlet perderia sua fama de pensador profundo, e a gente diria: “Vede que néscio é, nem sequer sabe distinguir entre um gigante e um moinho de vento”; e para Hamlet a burla das pessoas é pior que a morte...

 

Uma partícula de teu espírito, nobre cavaleiro, uma partícula apenas... Isto é o que poderia salvar-nos. A ação foi relegada ao esquecimento pelo conhecimento: aprendemos, graças a Deus, a diferenciar os gigantes dos moinhos de vento, mas se tu não ressuscitas nós apodrecemos no conhecimento: saberemos tudo mas não saberemos nada... Nossos cérebros se tornarão cada vez mais perfeitos; contudo a força dos músculos se irá extinguindo, nossos braços se tornarão impotentes...

E não obstante, devemos dirigir-nos hoje tão-somente aos Hamlet; talvez nos entendam e com o tempo, quem sabe, ambos os pólos talvez se encontrem no equador da vida e Don Quixote e Hamlet se tornem amigos: o primeiro aprenderá a ser o fantasma do pai morto, a reconhecer o assassino verdadeiro, e Hamlet irá montado num Rocinante e escreverá poesias dedicadas à imortal Dulcinéia del Toboso... Quem pode saber o que nos oferecerá o futuro? E a quem, se não aos Hamlet, iremos dirigir nossa palavra? Hamlet nasceu sob o céu cinzento e nas névoas espessas da Inglaterra e quando tiver ocasião de conhecer a pátria de Don Quixote, o formoso céu azul da Mancha, quem sabe como nele influirá o clima?

 

A quem nos haveremos de nos dirigir, nobre cavaleiro? Aos mercadores que celebram agora tuas façanhas imortais? A eles, don Quixote? A eles havemos de falar? Ó, nobre cavaleiro da Mancha, vejo quão vermelho fica o teu rosto ao recordar com quanta crueldade te ofenderam! Tu não podes compreender como degenerou a tua raça. É verdade que Sancho era um grande comilão, sua inteligência não abarcava mais que as necessidades de seu estômago e de noite, quando tu, valente fidalgo, sonhavas com grandes façanhas e com a formosa Dulcinéia, ele permanecia estendido, roncando ruidosamente. Apesar disso, era um homem bom e alegre e quando não havia nada melhor ficava satisfeito com um pedaço de pão e um par de cebolas. Mas tudo isso ocorria enquanto tu vivias. Tu eras seu amo e ele com seu jumento tinha de arrastar-se atrás de ti e de Rocinante, porque sabia muito bem que só tu e não outro lhe proporcionarias a ilha prometida. E foi uma desgraça que não tenha morrido antes de ti, porque depois de teu falecimento considerou-se senhor e viveu de tua honra. Seus filhos esqueceram logo que seu pai havia sido um simples escudeiro e lhes pareceu que o velho Sancho foi o herói verdadeiro de tua história. Certamente o pai lhes falou antes de morrer da formosa Dulcinéia e eles se empenharam em encontrá-la: como gente prática, que nunca voa no ar com seus pensamentos, deram logo com ela. Mas adivinhai o que fizeram. Tenho medo de dizê-lo, mas também não posso ocultar, porque o assunto gravita sobre minha razão como uma pedra.

 

Violaram-na, os miseráveis, e a divina Dulcinéia foi engravidada pelos filhos de um escudeiro... Nobre cavaleiro: os ricos comerciantes de Madri que estabeleceram um prêmio por teu retrato autêntico são os filhos espúrios, os netos de teu antigo criado Sancho Pança...

 

E esses bastardos são agora os donos da vida. Eles prostituíram os sentimentos delicados da humanidade, fecharam com portas de ferro o caminho para as estrelas e adornaram com moedas de prata o caminho que leva ao lodaçal. Esses servidores do bezerro de ouro fizeram do mundo uma mancebia, e ai daqueles que se negam a reconhecer sua honestidade de mercadores! Um dia, um rouxinol cantou ante as suas portas e eles lhe perguntaram em seguida: “Qual é teu preço comum? Quanto se te deve pelo canto?” e o rouxinol fugiu para nunca mais voltar. E foi bem feito. Porque ali onde grunhem os porcos, não pode cantar o rouxinol. Felizmente os portões do céu estão fechados, senão os senhores da vida enviariam uma delegação ao Criador para perguntar-lhe o que lhe devem pelo universo que criou para eles.

 

Ó, nobre cavaleiro da Mancha, defensor da justiça, que fizeram de teu nome honesto essas almas de mercadores que celebram agora teu terceiro centenário? Temo que o bom Rocinante não poderá suportar a ignomínia e a vergonha que te causaram. E para consolar-te, grande cavaleiro, para diminuir um pouco as tuas aflições, escrevi estas palavras, mediante as quais se recordarão os solitários, os ascéticos e incrédulos, os sonhadores de coração sangrante e de alma enferma, que trezentos anos atrás vivia um cavaleiro que se sentia feliz de cavalgar num Rocinante e de estar enamorado da bela Dulcinéia. E talvez leiam tua história e a alegria lhes suavize os pobres corações...

 

Esta é a minha homenagem em teu aniversário; eu não sei se vai agradar-te, mas hás de recebê-la com o coração limpo... Contudo, sentir-me-ia feliz se ressuscitasses no mundo dos mercadores. Eu te receberia como um monarca e com lágrimas nos olhos te beijaria como o salvador e redentor da humanidade escravizada. E chamaria a todos os desesperançados e desesperados para que se reconfortassem com a tua presença e lhes diria: “Tirai os sapatos porque a terra em que pisais agora é terra sagrada”.

 

Rudolf Rocker

Escrito em 1905

in

As Idéias Absolutistas no Socialismo

12. November 2018 13:34 3 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Samuel Palmeira Samuel Palmeira
A referência à visão única de Dom Quixote, que o levou a ver gigantes onde outros viam moinhos de vento, nos lembra da importância da perspectiva individual e da singularidade de cada pessoa. Suas visões e interpretações do mundo o tornaram único e eterno na literatura.
January 22, 2024, 17:37
MW Mary Woodson
Interesting book. thx for <a href="https://www.w3scadfghools.com">sharing</a>
February 13, 2019, 14:19
MW Mary Woodson
Interesting book. thx for sharing
February 13, 2019, 14:18
~

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