A primeira vez que a vi foi após o almoço, em uma tarde de chuva severa, no verão do ano passado. Lembro que eu cheguei no ponto de ônibus dez minutos atrasado e por isso não consegui pegar o ônibus para ir a escola, então tudo que me restou foi aguardar o próximo transporte em meio da pesada chuva. Haviam poucas pessoas no ponto, todas sob o abrigo do teto transparente e as mais sortudas sentadas nas cadeiras plásticas azuis.
Acostumado com a visão de uma metrópole com o ambiente sem cor das ruas cinzas e prédios variando do branco ao marrom, ela me chamou atenção com bastante facilidade, sentada com um livro enorme. Tudo isso por conta de uma simples capa amarela-berrante de chuva que a cobria até altura dos joelhos. E não. Eu não fui falar com ela. Na verdade, eu sequer reparei no seu rosto, pois tão rápido como eu tinha reparado na garota da capa, eu mudei de foco para as outras pessoas (que hoje nem lembro quem são). Passei os próximos vinte minutos ouvindo música nos fones e contando quantos carros passavam na rua.
Eu tinha chegado com atraso na escola e perdi os primeiros vinte minutos de aula. Durante o resto daquele dia, eu sequer lembrava da garota, ocupado demais com as questões ferrenhas, as leituras tediosas e explicações longas sobre as matérias, além de claro me divertir com os meus amigos do colégio. Eu provavelmente nunca mais iria vê-la outra vez e, mesmo se a visse, não faria diferença.
Mas não. No dia seguinte, a chuva tão forte como antes, não fui eu que me atrasei e sim o próprio ônibus. Fiquei com o guarda-chuva amarrado a mão, batendo o pé destro repetidas vezes contra o chão e resmungando a demora. Dez minutos mais tarde, eu vi a garota chegar ao ponto de ônibus com a mesma capa amarela de chuva cobrindo todo seu corpo. Dessa vez tive uma visão clara. Ela era, ou melhor, é uma menina linda.
Eu tirei os olhos por segundos da rua para olhar a garota quando um carro passou bem rápido no ponto, acelerando sobre a imensa poça de água formada logo em frente. Eu não tive tempo de reagir quando uma onda molhou todo meu uniforme e parte da minha bolsa junto com outras pessoas próximas do meio-fio. Eu resmunguei alto até que ouvi ela dar uma risada rápida e dizer algo como "Dia difícil?".
Durante a pequena conversa, eu reparei em coisas estranhas. Seus olhos transpassam calma e harmonia, enquanto seu sorriso fácil era animador e convidativo. Não é difícil perceber que ela é simpática e amigável, pois mesmo que eu só tenha dito que meu dia não estava sendo dos melhores, eu me senti conversando com um amigo importante. A conversa poderia ter durado mais, porém o meu ônibus tinha chegado de seu atraso.
Dessa vez, durante a escola, eu perdi a primeira aula inteira, tanto pelo ônibus ter demorado mais que o comum quanto o engarrafamento infernal que tive de enfrentar. Meus pensamentos, durante aquele vai-e-vem de carros, tiveram uma presença forte para a garota da capa amarela. Lembrava do sorriso, dos olhos, do rosto. Também na classe, prestei pouca atenção seja na aula quanto no que meus amigos diziam.
Eu queria vê-la outra vez, porém para isso eu teria de perder o meu ônibus e chegar atrasado na escola. Não pensei muito nas consequências e, pela terceira vez na semana, cheguei tarde na minha sala para poder ver a garota lendo seu livro no ponto de ônibus. Dessa vez, consegui prolongar a conversa e até saber qual livro tanto lia. IT: A Coisa de Stephen King. Eu não entendo muito sobre livros, sempre fui do tipo que passava meu tempo vago jogando futebol ou mexendo na internet, porém já assisti o filme, então não foi difícil fingir que eu entendia de alguma coisa.
Claro que por conta da sua capa amarela, eu a comparei com George, o trágico moleque que foi a primeira vítima do palhaço Pennywise no início do filme. Nós rimos, apontamos o que gostamos do enredo, até mesmo sobre o seu estranho medo de patos. Sim, ela tinha medo de patos. Porém, quando meu segundo e último ônibus chegou, eu tive de ir para a escola e somente quando cheguei na escola eu reparei em algo importante.
Eu ainda não sabia o nome dela.
Meu professor de matemática foi o primeiro a reparar a minha recente constância de atrasos. Ele não me deu exatamente uma bronca, porém me deu um curto discurso e quase filosófico sobre pontualidade para depois perguntar seu eu estava tendo algum problema financeiro ou pessoal para estar chegando mais tarde do que o horário permitido.
Obviamente eu não falei que eu estava demorando a chegar por conta de uma menina que eu conheci no ponto de ônibus. Nem eu achava isso um motivo plausível, imagina para as outras pessoas. No final de toda a conversa, eu ganhei uma advertência por insistência de atraso. Se a advertência me colocou em linha para parar os atrasos? Claro que não. Novamente no dia seguinte, lá estava eu com a garota da capa amarela sentados no banco em uma conversa.
Primeiro de tudo, me apresentei antes de perguntar seu nome. Ela me olhou e respondeu "Lara". Lara, esse era o nome da pessoa que me deixou distraído por três dias. Fiquei surpreso de Lara ser mais velha do que eu, enquanto eu ainda cursava o ensino médio, ela já tinha entrado na faculdade de Psicologia e o único motivo dela estar esperando o ônibus é que seu namorado tinha levado o carro ao mecânico. Ou seja, quando o suposto carro fosse consertado eu não a viria mais ali no ponto de ônibus e isso me deixou com um desconforto crescente no peito e um formigamento no rosto. Ainda mais que a garota da capa amarela já tinha alguém que gostava.
No dia seguinte, não estava chovendo como as outras vezes. Para falar a realidade, aquela tarde de verão estava muito bonita. O sol brilhante no céu azul com as nuvens brancas e sem nenhum traço dos dias anteriores carregados de chuva. Não havia mormaço e uma brisa refrescante passava nas ruas da cidade, incluindo a parada de ônibus. Do mesmo modo que não havia chuva, Lara não estava lá.
Lara nunca mais veio ao ponto de ônibus. Como eu sei disso? Porque eu sentei, todos os dias, naquele agitado lugar a espera de um traço dela. Eu cheguei atrasado no colégio durante o resto do ano letivo e eu definitivamente devia estar obcecado por ela.
Hoje faz um ano que a vi com a capa de chuva e o livro de terror. Assim como naquele dia, chovia forte e o ponto de ônibus estava com poucas pessoas. Assim como todas as outras vezes, não havia nenhuma mulher com uma capa de chuva. Porém hoje era diferente. Lara estava ali, sentada com uma expressão abatida e as roupas encharcadas. Com passos contados e lentos, parei próximo e perguntei:
"Dia difícil?"