O velho projetor elétrico esforçava-se para produzir imagens.
Tentar produzir! Eletronicamente, de maneira a esboçar tanto afinco que quase orgânico. Fabricar. Reimaginar. Reinventar a partir de fragmentos em ordem incoerente. Interpretar. Recontar. Já que, o processo de rotacionar os quadros na velocidade desejada para avançar de forma fluída as imagens escalonadas já não o executava satisfatoriamente, há muito tempo.
Quando uma das "Errantes" acionara os motores de Fótons e fugira desnorteada rumo ao nada muito acima das estrelas, já era tarde demais para tudo que fosse minimamente racional. Feito estrela da Santa Natalidade desfazendo seu erro a tempo. Em rota de evasão. Anunciando o fim e não o recomeço!
O fim é sempre assim. Apenas o reinício parido de qualquer maneira, em meio ao caos!
O ruído repetitivo e sofrível da película plástica encurtada pelas restaurações a exaustão, confirmava o quão impossível seria mais uma sobrevida, caso acontecesse o pior. Ou, se o gerador que urrava feito os últimos animais clonados abandonados para morrer, no Complexo Arca, antecipasse o fim irrevogável.
O projetor tremulava no decorrer da passagem dos frames. Desfocava muitas vezes. Em outras, congelava movimentos. Misturava cores e tons, sombras e claridades. Procriava resultados estranhos. Em circunstâncias mais amenas, tornariam-se apaziguadoras, até! Um micro-caos lindo, de certa forma. Havia uma bizarra beleza naquela amálgama de realidades sobrepostas em quadros por segundos. O pífio alto-falante gaguejava palavras. Tornavam cacofônicas, frases há muito trituradas pelo desgaste das repetições. Seus sensores auditivos de microfilos de carbono e ouro, localizados nas laterais do crânio de liga leve e desenhados de forma a imitar o desenho de ouvidos estavam prejudicados irremediavelmente também, para ser mais justo com a máquina primitiva!
Acontecera depois da tarde chamada de "Esporro de Deus". Quando as fundações do céu ruíram estrondosamente, uma por uma. Míssil após míssil. Até que todo o firmamento se espatifasse em centenas de explosões feito um imenso inferno de vidro e cacos avermelhados que urravam tão alto que abafaram e reduziram a quase nada todos os gritos de socorro e ódio dos próprios anjos em agonia e fuga. Ou, o clamor da humanidade por salvação mais que tardia. Revogada. Ensurdecida de qualquer clemência divina. Testemunhando atônita o resultado de milênios de ódio e bestialidade em relação à sua própria espécie.
Então, quase tudo que sintonizasse ondas de rádio reverberou muito além do máximo de decibéis a que fora fabricado. Um zunido metálico que sempre elevava seu tom aos finais de tardes ou início da manhã onde a radiação escarlate como metástase fazia sangrar e escorrer seu tom adoecido sobre o resquício de nuances azuis no céu até atingir o horizonte decaído, nunca mais silenciara. Uma ironia irritante no pesado e respeitoso silêncio reinante. Uma carpideira extinta a cantar sobre um sepulcro que nunca se encerrava.
O calor que emanava da pequena e frágil base motora do projetor prenunciava sua morte iminente. Morte. Iminente, repetiu o par de palavras, a voz metalizada. Feito uma criança que já assistiu sua animação preferida incontáveis e incansáveis vezes. Numa perfeita sintonia com os lábios do pequeno ator congelado e desfocado sobre a tela branco-amarelada fixada na parede de frente ao projetor.
Enquanto seu ocular esquerdo, um tanto seco pela falta de reposição do fluído lacrimal, maximizava o zoom entre uma das frestas da base verde descorado e afuliginado.
Uma forma gasosa de cor mais enegrecida do que gostaria de constatar escapava por ali.
-"Você... é... mesmo..."
A frase interrompida congelou novamente as feições do pequeno ator humano. As retinas aumentaram o zoom agora de ambas as lentes cravadas no contorno dos olhos. Mantiveram o tamanho aproximado da imagem em estática. Permaneceu assim por quase um minuto. Poderia jurar que sua célula de alimentação central abaixo dos contornos torácicos diminuía por conta própria sua pulsação eletromagnética.
-Vamos, vamos. Mais uma vez. Você consegue, repetiu mentalmente.
O ângulo de visão fixo. Perfeitamente calibrado ao nível angular aos dos olhos vidrados do pequeno humano da tela de projeção. O céu além das placas de cristal balístico escurecidos e quebrados manteve-se em silêncio. Nenhuma nuvem.
Som algum, de qualquer máquina voadora. Há mais de cinco anos. Nenhuma espécie de pássaros.
A vegetação moribunda e infértil. Vez por outra trovões. Rugiam de maneira tão primitiva, livres de apegos ou vigilância lançavam raios cada vez mais longos e ziguezagueantes por toda a extensão vazia do céu. Suas tormentas duravam, às vezes, pares de dias sem interrupção.
Os elementos atmosféricos estavam completamente livres outra vez! Animais fossilizados, de volta à vida. Ainda assim, repugnava aquele azul tristonho suspenso sob os telhados que teimavam em não deixar suas antigas e obsoletas definições de lares.
Não havia mais quase ninguém sob o céu radioativo. Ele morria aos poucos. Cada vez menos azul agora, era fato. Mais melancólico a cada ciclo de rotação planetária natural completado.
Um chiadinho rebelde do rolo de fita.
-Vamos, você sabe qual a palavra a seguir, repetiu numa das variáveis conclusivas possíveis de sua programação de diálogos de rotina.
Seu último SSD perseverava. Precário e em alguns momentos, falho!Mas, seria o bastante.
A coloração das paredes ao seu redor era de uma tristeza envergonhada pelo desfiguramento de tons. Desgastados pelo moribundo nível de radiação que atravessava sem a pressa de horas que não se contavam mais as paredes do inabitado bunker. Acima dele a carcaça da cidade em ruínas. Quase sempre silenciosa. Às vezes murmurante. Outras vezes chorosa, entrecortada por gritos de ecos fantasmagóricos de algum animal ou ser humano. Quase sempre, depois que o sol se punha. Feito criança a resmungar por alguém que finde seus pesadelos à noite. Sombras abandonadas pelo sol aglomeravam-se pelos cantos. Uma plateia de compostura indiferente. Ele não gostava da presença delas. De sua companhia ausente. Testemunhas cíclicas de mais um dia que morria, como todos os outros, sem a devida despedida. Ou, a devida cova definitiva. Talvez porque já não existisse mais nada da qual valesse a pena se despedir. Mas, quem sabe, fosse o contrário. E já não existisse nada que merecesse um final definitivo.
-Vamos, você sabe qual é a palavra...
O projetor cuspiu. A imagem descongelou-se:
Lik... lik...lik...
Na distorção gerada um pequeno e fictício androide questionava seu tutor de modelo adulto algo sobre uma possível fada azul. Ela, de alguma forma além de sua compreensão e busca nos dados de informação e lógica, inseriria humanidade em sua composição robótica.
Pausa.
O projetor suspirou agradecido. O modelo série três 2559-Home sempre pausava neste trecho. Buscava compreender. Buscava dados. Sobrepunha-os. Cruzava-os. Inseria variáveis. Entrava em "Standby" por horas. Algoritmos quânticos buscavam compreender!
Neste processo algo acontecia silenciosamente. Questionava.
Não sob a diretriz básica de sua linha de I.A. Algo além. Algo supostamente semelhante à inquietude. Questionara-se dezenas de vezes após a primeiro vez. Buscara falhas. Vírus. Variáveis no software de raciocínio avançado. Qualquer rastro de dados corrompidos até mesmo no VIRH, Variantes de Empatia ao Raciocínio Humano.
Mas, não havia nada lá. Rastreara incontáveis buscas. Ainda assim. Além da certeza irrevogável dos intrínsecos dados matemáticos, "pressentia": Havia algo!
Um par de horas depois, quando retomava suas funções básicas, ainda fixava o mesmo ponto da película. Sem respostas.
O projetor aguardava. A pergunta do pequeno autômata suspensa na película congelada. Os pulsos eletro-magnéticos a escaparem pelos tubos de fluído de ar gelado que resfriavam os componentes responsáveis pela movimentação motora reimaginada à partir da anatomia humana e seus movimentos. A pequena caixa do gerador subatômico, localizado no centro da caixa torácica de metal de liga leve elevava a temperatura à níveis pulsantes. Nada lá. Mas algo, ainda assim!
"- Você é mesmo a..."
Uma palavra a mais. Uma de cada vez. O modelo Home esperou. Cruzou dados novamente. Aflitou-se. Variáveis. Desejou. Começara a ventar. Os sensores de precipitações atmosféricos acoplados na placa-mãe dispararam. Nível dois de cinco. Uma palavra a mais. Registrava, adicionava. Nível três e meio de cinco. Rápido demais. Qual seria a palavra a seguir? Pulsos eletromagnéticos em modo quase crítico.
-Fale. Antes do...
Nível quatro. Diretriz acionada! Tarde demais. O modelo Home levantou-se. Sua perna esquerda rangeu. A rótula travava. O fluido de manutenção das engrenagens aglutinara-se há tempos. Resultado da perfuração depois da colisão até o nível um do bunker, o Confessionário. Setor com acesso restrito apenas àqueles cuja integridade biológica estariam irremediavelmente comprometida.
A escada que dava acesso ao mediano salão que sempre mantinha os níveis de oxigênio perigosamente misturados aos compostos tóxicos de incenso vegetal e toxinas alucinógenas havia ruído depois do último grande tremor sísmico. Home locomoveu-se com maior dificuldade do que vinha sendo registrado em seu banco de dados de integridade física. Rangia. Sua cintura não correspondia à exata execução do tórax em relação à velocidade e precisão de suas pernas. Então, as solas de borracha líquida de seus pés socavam o solo de concreto e aço chocoalhando seu crânio e tornando-o desengonçado feito um boneco de aço. Ainda assim precisava ser rápido.
Nível quatro, ponto setenta e oito. Um tornado classe cinco formava-se rapidamente. Tinha que acionar as comportas de vedação.
O abrigo teria que voltar à condição de bunker. E desligar todo o sistema elétrico desviando a energia apenas para os módulos de sobrevivência. Apagar o projetor. Interromper a projeção.
A velha máquina não suportaria mais uma reanimação. A película se desfaria no exato ponto da resposta. No exato ponto de onde nunca avançara. O "modelo Home" ibernaria no escuro total por meses. Reiniciaria-se com menos funções secundárias que da última vez. Apenas o ciclo de diretrizes básicas de sobrevivência. Manter-se ligado. Manter o abrigo. Registrar e filmar toda a ausência e solidão do lugar. Desativar-se em pequenos intervalos para poupar as células de energia.
Manter-se ligado. Manter o abrigo... Manter...
Nível quatro ponto setenta e três.
Qual é mesmo a palavra seguinte da frase em suspenso? Home sentiu um latente tremor no braço direito. Em pé. Ao lado do projetor. Abrira o compartimento de resfriamento de seu sistema interno e acoplara o conduíte ao módulo de ventilação do projetor. Ficaria com o vetor de visão e equilíbrio parental irremediavelmente comprometido. Não mais calcularia com exatidão vital processo motor de locomoção.
As imensas placas de cristais balísticos trincavam feito superfícies de lagos congelados com os primeiros raios de sol no fim do inverno. As paredes de aço reclamavam de sua traição para com a integridade do abrigo com um som raivoso. Condenavam-no.
A palavra. Qual seria?
A imagem congelada. O pequeno androide da película congelada a buscar o sentido de seu próprio questionamento quanto a ser. O porquê de ser. Home cruzava dados. Reposicionava variáveis. Negligenciava diretrizes. Buscava. Alimentava o projetor com todo o restante de suas células de energia vital.
A palavra. Qual era a palavra?
Ignorava o alarme de nível crítico cinco. O que você busca, pequeno androide? Perguntava silenciosamente à tela estática. Não assumiu o protocolo de autopreservação quando enfim a primeira ira do tornado estilhaçou de vez as placas de cristal. Cortou o áudio exterior subvertendo em silêncio os urros da tormenta cada vez mais próxima. Histérica. Anunciando que o pior estava próximo e irrevogável.
Agarrou o projetor contra seu dorso metálico antes que fossem arremessados para o outro lado do fim. A palavra. Qual seria a palavra? Inércia. Paz. Um último e improvável resultado de variáveis antes que tudo silenciasse. Uma possibilidade lógico-matemática possível. Um cálculo quântico quase humano:
-Fada!
Silêncio. O clarão que dissipava todas as moléculas do plano físico transformou tudo em caos. Tudo em nada. Em um novo vazio. Quando beijou o chão. Primeiro em explosão. Seguida pelo mais perfeito e transformador caos. Reimaginou tudo. Desfez e refez tudo ao seu redor.
O pequeno Home saberia, se pudesse abrir os olhos. Não qualquer fada! Uma em especial. Do tom da última estrela doentia e faminta caída do céu dos homens....
Azul.
Vielen Dank für das Lesen!
Esplêndido, profundo e contemplativo, como todas as obras deste que vem sendo um de meus escritores que sigo de perto, sempre sabendo que encontrarei algo único em suas reflexões e histórias nada menos que incomparáveis. Você é um achado, meu amigo. Alguém a ser celebrado. Recomendo não só esta, mas todas as suas obras !
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