pensadorlouco Pensador Louco

A cientista forense Clarisse Vieira atende a um chamado de campo, viajando ao interior brasileiro para opinar sobre resultados inconclusivos em alguns casos. Esperando um tedioso trabalho burocrático a respeito de causa mortis, ela se depara com talvez seu maior desafio na vida.


#31 in Horror #3 in Zombie Horror Nicht für Kinder unter 13 Jahren.

#295 #terror #378 #misterio #zumbis
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Capítulo um

Claro que a porta tinha que estar empenada.

Esta era a única constatação na cabeça da doutora Clarisse Vieira, lá pela terceira tentativa de girar a maçaneta e entrar. O velho prédio, certamente condenado e interditado se não ficasse no Brasil, ocupava lugar em uma rua tão desabitada, e de tal maneira povoada por casebres destruídos, que o baixo edifício do Registro Municipal de Prontuários Médicos parecia nobre, praticamente um arranha-céu. Uma construção das antigas, em seus quatro andares, em um local tão ermo que seus funcionários, supondo haver lá algum para ajudá-la a entrar, seriam a prova final de que alguns empregados pagos pela prefeitura tinham muito mais tempo para gastar seus salários, do que trabalho a fazer para merecê-los.

E o diabo da porta não abria.

Estava destrancada, Clarisse podia atestar facilmente pelo pouco que havia cedido ao primeiro empurrão, mas não se mexera mais além fosse ela tentando, com seu corpo orgulhosamente em forma, ou caso fosse um brucutu qualquer em busca de algum documento sobre o que teria levado sua avozinha para o túmulo. A resolução do prédio em não deixá-la passar fazia-o parecer um bloco de detrito intransponível.

Estava levando a melhor. De longe.

Dentre todos os seus anos como legista, Clarisse nunca fora mandada a lugar algum. Tinha todo um histórico impecável de serviços prestados à polícia forense do exército, isso sem contar cada ano de curso ministrado na Universidade Cipriano Fonseca, e não lhe cabia ter por que se rebaixar a acatar ser enviada a uma ruína para analisar papeladas forradas de mofo e traças. Não sem praguejar muito, ao menos. Era verão; seu guarda-pó branco principiava a transparecer o suor, o qual já tomara conta das roupas casuais que usava por baixo; entrar em seu carro sem ar condicionado, em ponto de assar qualquer pernil facilmente, de tanto sol, seria suicídio moral; serviço de campo não aparecia em qualquer ponto na lista de sua zona de conforto; e o Tenente Maciel ainda levaria a sua pelo pedido absurdo de mandá-la ao lugar. Que enfiasse suas ordens em algum estagiário com alvo de babaca marcado na testa, e a deixasse voltar a seus mortos em paz. Aquilo já era demais.

Sem querer nem por um decreto usar os ombros como aríete, dando um último tranco à porta de madeira velha e pesada, Clarisse optou por deixar-se vencer e deu meia volta. Apanhou sua pesada maleta do chão. Quem eles pensavam que ela era, droga? Trinta e sete anos bem mantidos entre formaldeídos e peles acinzentadas, uma vida beirando a perfeição em análises forenses e causas mortis determinadas, e eles tinham a petulância de a enviar por tempo indeterminado para aquela cidadezinha horrível e brejeira para organizar e avaliar certos registros de autópsia inconclusivos? Ah, não. Nenhuma mulher com respeito próprio aguentaria aquilo. Empinou o nariz e chegou a descer dois degraus da soleira rumo ao carro, já prendendo a respiração, antevendo o baque quente do ar que a daria boas vindas ao entrar em seu Civic.

— Cê tá quase uma hora adiantada — a voz vinha de trás de Clarisse, e acompanhada de um deslizar tão suave nos trincos da teimosa porta, que a médica achou estar sofrendo de alucinações pela insolação.

— É a primeira vez que ouço falar disso como se fosse ruim — respondeu imediatamente. Virou-se nos calcanhares. Encarando-a, havia um homem beirando os setenta. Magro ao ponto de dar dó. De jeito algum teria aberto a passagem se não contasse com algum truque.

— Entra e dá as chaves. Depois mando deixar teu carro num lugar melhor — o velhote não parecia em nada incomodado, ou desapercebido da chegada da visitante. Ela era esperada.

— Há quanto tempo sabia que eu estava aqui? — perguntou a médica. Pontinha de irritação.

— Ixe, te vi chegando de carro quando cê ainda procurava se orientar, ha ha — mostrou um tablet na mão que estava oculta pela porta. Tela dividida em vários quadrados cinzentos de imagens, em tempo real.

— E não podia ter aberto a porta antes?

— É meio que uma aposta que os povo faz aqui, sabe? Pra ver quanto tempo leva até alguém desistir. Não tem muito o que fazer durante os dias, pra se passar o tempo — ele deu de ombros. Clarisse não estava procurando, quando viera pela estrada de terra batida e mato, mas saber que havia câmeras durante o caminho deixava tudo mais intrigante ainda. Definitivamente um contraste com o que avaliara do prédio, e o serviço que ocorria nele, pelo lado de fora.

— Entra, já disse — o velho reforçou sem perder a cordialidade. — A porta aqui nunca pode ficá aberta muito tempo.

Clarisse passou adiante, e a porta, aquela coisa acabada e dura e de verniz rachado, fechou atrás de si sozinha, por um mecanismo hidráulico que não tinha como ter visto pelo exterior. As janelas externas cerradas, com antigas venezianas e acúmulo de pó, não davam nenhuma dica do que haveria do lado de dentro. Não estariam mais certas se pudessem. Nada era a palavra do dia.

A sala de entrada no Registro Municipal estava numa situação de descaso e abandono igual ao visto pelo exterior. Paredes antigas com papel descolando na junção do teto, marcas de bolor em toda parte, chão de linóleo irregular ao ponto de ser perigoso, e uma mesa velha de madeira. Com uma cadeira condizente, um radiosinho AM/FM daqueles de se ouvir partida de futebol, organizador de expediente em acrílico rachado e nada mais. Uma escada subindo para sabia Deus onde, duas outras portas abertas, para salas vazias exceto por fichários verticais detonados de ferrugem, e o velho recepcionista. Não parecia a toa que ele ficasse fazendo apostas para passar o tempo, o coitado sequer tinha acesso a uma televisão.

Clarisse deixou cair os ombros e suas feições seguiram, mas o senhor que a recebera, percebendo, interveio prontamente.

— Calma, cê não tem mesmo nada pra fazer aqui em cima — disse, e puxou a tela do tablet para o lado com tanta perícia que desfez a imagem de velhote-que-mal-sabe-receber-um-e-mail, que passava. Apertou a tela em um padrão de movimentos que Clarisse não entendeu de primeira. — Vai por ali.

A legista ouviu um baque suave e abafado vindo de entre as portas das duas passagens, que eram bem separadas uma da outra, e se surpreendeu novamente ao notar que os batentes estavam ali para ocultar as frestas de uma outra porta. Uma oculta, que andou alguns centímetros reta para trás, depois deslisou para cima e deixou a mostra um elevador novo e moderno, em aço brilhante como os trincos hidráulicos da porta de entrada. O aceno do recepcionista para que entrasse foi inofensivo o suficiente, e Clarisse então percebeu que havia desistido de fazer um boneco vodu imaginário do Tenente Maciel. Entrou. O velho ficou para trás, sorrindo mais por costume.

Painel de apenas um botão do lado de dentro, exceto pelo de emergência. Só podia descer, tendo que ela estava no térreo e nada acima parecia valer o esforço. Câmera em ângulo no teto. Pelo tempo que levou a chegar, Clarisse já notava que estava muito mais abaixo do solo do que poderia imaginar. Sua curiosidade chegava a níveis alarmantes. Como uma grande concha de wasabi queimando em sua língua. Não estava acostumada a trabalho de campo, mas menos ainda a aquele tipo de incógnitas, especialmente naquele lugar esquecido por todos.

Sem dar qualquer indicação de quantos níveis havia descido, o elevador simplesmente parou e abriu uma porta única para um corredor longo, branco ao ponto de causar desconforto e com alguns funcionários tão diligentes, trafegando entre suas portas transversais, que a médica pensou ter atravessado a passagem para uma outra realidade ou país. Ao fim dele, uma mesa. Nela uma mulher lhe acenava para se aproximar.

“Bem, ao menos o ar condicionado está ligado aqui embaixo”, Clarisse pensava enquanto ia em direção da mesa.

Notou rapidamente que não estavam acostumados a receber visitas, os que-diabos-será-que-fazem-ali, pois o tráfego praticamente parou com sua chegada. Todos os olhares nela, como se esperando que tropeçasse. Podia jurar, o som chegou a diminuir e foi trocado por cochichos. Olhares julgando-a de cima a baixo. Avaliando-a. Como carne sendo mostrada a cães famintos. Talvez fossem mesmo, quem poderia saber? Teve vontade de enfiar a todos em uma máquina de reciclagem, moê-los até poderem ser vendidos como nuggets de um e noventa e nove.

Palavras como Gostosa, expressões a nível de Eu ia fácil e frases clichê de Ela não dura duas semanas aqui passaram batidas a cada passo.

— Que é isso, uma vadia a mais nunca é demais — ela ouviu baixinho de um homem enorme, barba dura e roupas de segurança. Risinhos seguiram o comentário.

A legista trancou a respiração. Mordeu o interior da bochecha para impedir a língua de agir por conta própria. Sabia melhor do que causar problemas logo no primeiro dia, e isso sem sequer saber o que havia ido fazer lá.

Não poderia ser pior que cada nova turma na Cipriano Fonseca, jovens adultos todos querendo se mostrar uns aos outros e a ela. Aquilo seria moleza. Manteve o nariz empinado. Seu corpo já deixava para lá a mácula de ter passado tanto calor do lado de fora, e ela chegou à mesa fresca e refeita como quando saíra do banho de manhã.

— Você é a doutora Clarisse Vieira, certo? Certo. Preciso que leia e assine isto antes de prosseguir — seca como uma empada deixada por muito tempo no balcão, a mulher entregou a ela folhas grampeadas e uma caneta. Maria T. Sem cargo definido, no crachá de coloração laranja, logo abaixo da sigla do Registro de Prontuários, fosse o que fosse que aquele nome significasse. Provavelmente uma função invisível de levar e trazer ordens. Clarisse notou que o monitor de seu PC não mostrava uma conexão com a internet. Imaginou se a falta de comunicação online com o mundo externo não seria o motivo de ela haver sido recebida como uma alienígena. “Sinto muito por você não poder checar teu face, garotinha”, pensou, sorrindo.

— Pode me dizer do que se trata? Já não fui informada quando enviada pra cá, e gostaria ao menos de ter me preparado.

— Assinatura primeiro. Protocolos. Te contam tudo depois — a mesma gastura. Mastigando palavras. A médica olhou por cima a primeira folha e concluiu rapidamente que era um acordo de confidencialidade. Muito formal. Deixou sua maleta calmamente no chão e passou a ler cada linha com a mesma seriedade. Basicamente, não poderia revelar nada do que transcorresse naquela instalação nem mesmo com os superiores que a mandaram para lá, exceto se ordenada formalmente a fazê-lo. Seu alarme de vai-dar-merda começou a disparar no cérebro como louco, relembrando a inquietação do Tenente e sua equipe ao se dirigir ao assunto antes da viagem, mas assinou assim mesmo. Curiosidade. Maior virtude. Mais severo inimigo.

— Aqui está — Maria puxou de uma impressora lateral um novo crachá e o estendeu na mão. De cor verde, como se isso quisesse dizer algo a mais que laranja. — Nem pense em perder, não gostamos de extravios aqui.

— O.k., agora será que alguém poderia me informar o por que disto tudo? — mencionou, olhando para baixo, prendendo o crachá na lapela.

— O aquário — mencionou atrás de si o brutamontes barbudo e armado que murmurara sobre ela no corredor. — Te explicam tudo lá. Pega tuas coisa e vem comigo — ele continuou. Estava tão próximo dela que sentiu seu hálito na nuca. Silencioso. Clarisse não o sentiu chegar, mas notou Maria se encolhendo. Desviando o olhar.

Um aceno de cabeça foi tudo o que recebeu da novata, em retorno. Clarisse podia não saber quem ele era ou sua função ali, mas a primeira impressão não fora nada boa e primeiras impressões sempre perdurariam. Ela já passara tempo suficiente resvalando no plano astral do imaginário masculino e suas idiotices, para reconhecer um espécime daqueles quando os via.

Seguiram pela porta transversal à direita a passos rápidos.

— Aqui acontece o seguinte, bonitinha, e é tudo o que tu precisa saber: Cada um cuida da sua própria vida e não pisa no trabalho ou setor dos outros, entendeu? Não tenho ideia de quem tu seja mas sei bem por que veio mandada pra cá, e o lance aqui é esse e não vai mudá com tua vinda. Se tiver qualquer grilo, tô aqui pra te dar a mão, entendeu? Só isso. Simples e fácil. Ó aqui, chegamos.

Clarisse poderia vencer qualquer mesa de pôquer, com sua ausência de expressões. Não lhe passara na cabeça dar ao homem um esporro quando chegara, certamente não faria isso ali, quando pararam frente à porta.

Não.

Claro que lhe passara na cabeça, para que mentir? A médica fora tocada, não de uma maneira aceitável, desde que andara por ele a primeira vez, e isso apenas com o olhar. Colocar o orangotango no chão, onde ele merecia ficar, era quase um pré-requisito, e ela sequer sabia seu nome ao certo. Silas qualquer coisa, no crachá verde. “Mas espere”, disse a si mesma. “Espere até se meter a besta mais perto que dois metros de mim, pra ver o que te acontece.”

O tal Silas girou a maçaneta e entraram no aquário. Que, pelo quanto Clarisse conhecia da expressão, nada parecia com o ambiente ali. Mas, até então, parecer era um verbo bem irrelevante desde que acatara a missão.

“Aquário! O diabo da sala nem ao menos conta com uma janela! O lugar é no subsolo, pelo amor de Deus!”, pensou a doutora em sua primeira análise.

A sala na qual Clarisse entrou era ainda mais decepcionante que o prédio quando visto pelo lado de fora. Toda branca, longa, quase vazia tirando pela mesa igualmente comprida e o médico sentado nela. Duas cadeiras, uma ocupada pelo responsável, a outra esperando. Por ela? Provavelmente. O ambiente inteiro de uma brancura que se estendia do chão ao teto. Cegante. Estéril. Repelido pelas outras cores, não fossem as pastas displicentemente dispostas sobre a mesa, um monitor cinzento, e a própria pele mulata vibrante de Clarisse. E uma cortina emborrachada. Igualmente branca. Imaculada. Separando a sala no sentido longitudinal.

— Entre, você era aguardada — disse o médico. O segurança fechou a porta atrás de ambos e permaneceu parado junto à cortina.

Clarisse andou até a cadeira e estendeu a mão. O médico sorriu e se apresentou:

— Doutor Alessandro. Hã, Alessandro Costa e Souza, caso não lembre. Já nos vimos no meio acadêmico algumas vezes. Fui eu quem te recomendou para o caso — estendeu a mão também e trocaram o aperto. Enfim um ponto cordial. A legista se deixou relaxar novamente. Ao menos não estava mais entregue apenas à companhia do segurança de cro-magnon.

— Sim, claro. E pelo menos duas convenções — respondeu ela, afável. — Você é o culpado, então.

— Sou, e não gostaria de ter indicado alguém mais além. Se é o caso de culpa, estou aqui de réu confesso. Tenho ideia de que esteja ainda um pouco estonteada com o lugar e a pressa velada em trazê-la. Não é exatamente um domingo no parque, mas verá como toda essa privacidade é necessária em instantes.

— Ah, afinal vai me dizer o que vim fazer? — a inquietação pulando como carvão no fogo. — Porque, desde que o Tenente Maciel me passou essa bomba, e até chegar aqui, não consegui nem mesmo elaborar as ferramentas que precisaria para fazer o que for que me queiram aqui. Quero dizer, não me entenda errado, mas não parece bem um trabalho burocrático, ou teriam, pelo que vi, bastante gente capaz de varrer folhas de papel. Mas se for uma análise de diagnósticos, isto igualmente não parece nada com um hospital ou necrotério.

— Certo, bem… — o médico tirou os óculos e apertou fundo entre os olhos, esfregando a pele do nariz fino — não é como se houvessem muitas instalações como esta no país. E claro que entendo que esteja um pouco indignada pela escassez de dados, mas é a premissa daqui. Por isso somos tão poucos, os órgãos que tratam do que tratamos, e igualmente por isso não podemos ficar à vista de qualquer um. Todo civil com um celular na mão é uma estação de mídia completa, estes dias. Este prédio é tão arbitrariamente insosso por fora que duramente alguém imaginaria a verdade de nossas instalações, se é que me entende.

Ela entendia.

— O que me leva a pedir que me entregue teu celular enquanto estiver no Registro — o pedido veio de mão estendida, segurando um envelope aberto.

A doutora já esperava. Entregou sem piscar, e o aparelho foi lacrado no papel e guardado na mesa do colega de profissão.

— Sei que é chato exigir isto, mas todos passamos por esse contratempo. De qualquer maneira, não há sinal que se propague aqui embaixo, seria só pra… — gesticulou de forma vaga — impedir as outras funções. Ficará comigo e você pode levá-lo toda vez que sair.

Ela entendia também.

— Sente-se um instante, sim? Bom. Posso pedir uma água pra você? Café? Não mesmo? Perfeito, vamos logo ao que interessa. Não espero ficar te passando migalhas de informações, posso ver que você está bastante ansiosa e incomodada como está, então vamos jogar o caso de uma vez no ventilador. Foi no bairro do Rio Negro. É nas marginais da cidade ao lado, Cramberí, há o quê? Três meses em média, foi isso? — doutor Alessandro se dirigiu ao segurança mais por fazer, mas Clarisse não virou o rosto para ver a resposta.

O médico continuou:

— É um lugar um pouco largado, se consegue imaginar. Pequena comunidade, poucos habitantes. Mais um… como é? Lixão, poderia dizer assim, quando fomos informados de nossa paciente zero andando a esmo pelo lugar…

— Paciente zero — a médica cortou o monólogo imediatamente. — É uma nova patologia? Porque se for, cotando por baixo há cinco nomes melhores que o meu pra fazer uma…

— Sim, veja, não tire conclusões por enquanto — Alessandro devolveu o corte. — E sim, é uma patologia mas não ao certo como você a mediria por ouvir falar. De qualquer forma, a mulher causava muitos problemas na comunidade que lhe falamos. Ela foi… — pausa, apertando o osso do nariz novamente — hostilizada pelos moradores de rua e seu comportamento era entre violento e fugidio. Acabou caindo nos ouvidos da polícia militar mas eles também não puderam resolver, então você imagina que alguém na PM falou com seu superior, que falou com a superintendência militar, que repassou a algum general e assim por diante. Acabou desabando em nosso colo e temos tentado lidar com ela desde então, mas a gente pode só ir até certo ponto sem precisar da ajuda de terceiros, o que nos levou a você.

Clarisse transbordava dúvidas sob o olhar do colega de profissão. Depois de alguns segundos ele seguiu:

— Claro, não vazou na mídia por meio de ordens maiores, e as possíveis testemunhas foram incentivadas a não deixar passar nada, e, hã, os moradores do Rio Negro acabaram sendo relocados. Eles, bem… não tinham realmente credibilidade para comentar sobre um caso desse cacife.

— Doutor, desculpe minha franqueza, mas isso é tudo muito factual sem dizer nada, realmente. Fui prometida por você, e isso agora mesmo, já, que receberia respostas e, pra ser sincera, ainda estou esperando por elas. Porque não parte pra cima do que é tudo isto, ao invés de ficar apenas mastigando o assunto pelas bordas?

Alessandro franziu os lábios de forma bem apertada, algo entre medo e o sorriso de alguém que sabe mais que outro alguém. As sobrancelhas ruivas deixavam sua aparência ainda mais desamparada. Ela estava certa, claro, por que não partir para cima de uma vez?

— Aí está — disse ele, acenando brevemente com a mão em direção a ela. Já Clarisse, estava inquieta demais para perceber que Silas puxara a cortina inteira silenciosamente enquanto ela falava. — Atrás de você.

Aquário. Agora sim. A parte encoberta da sala era dividida por uma espessa parede de vidro. Tão espessa, analisando melhor, que deveria ser hermeticamente fechada para não deixar passar nada. Nem som. Nem ar. Nem o que quer que afligisse aquela pobre mulher.

— M-mas que merda… — a doutora Vieira perdera, em um instante, todas as chances de manter sua forma educada e decidida de comunicação.

As paredes do outro lado do vidro eram de azulejos brancos, também. Ou ao menos deveriam ser, se não estivessem imundas a um nível sem classificação imediata. Sujas de sangue velho seco, fluídos corporais e manchas de restos orgânicos em um padrão tão aleatório que poderia lembrar uma obra pontilhista. Ao fundo, uma maca igualmente maculada. Alguns rasgos. Várias cintas e algemas de restrição abertas, mas não era o todo do aquário que chamava imediatamente a atenção. Clarisse somente olhou em volta para encontrar, nos arredores daquela sala lacrada, algum sentido para contrapor ao foco central, o qual fugia a qualquer opinião que pudesse tecer sobre a situação.

Presa detrás da parede de vidro, uma mulher jovem, em roupas que deveriam haver sido brancas e hospitalares em alguma encarnação, jogava-se contra o vidro grosso sem qualquer pudor ou receio de se ferir. Olhos alucinados rodando nas órbitas, furiosos, um olhar insano de camaleão. Dentes claramente podres raspando na parede translúcida com voracidade, deixando trilhas frenéticas de uma secreção opaca e enojante. Pele, as partes da pele não tapadas pela roupa em ripas esvoaçantes com o movimento incessante, acinzentada e irreal, coberta de marcas, hematomas e cicatrizes de incontáveis altercações. Sem parar. Sem chance de respirar entre cada investida contra o vidro. Enraivecida, ainda que seus gritos e grunhidos não transpusessem a parede. Sangue escuro na vista rodeada de olheiras pretas. Louca de vontade de atravessar aquela barreira e atacar os três a qualquer instante.

Poderia ter sido bonita, um dia. Mas no momento estava uma visão de horror.

E morta.

Definitivamente e à prova de discussão, por mais inconcebível que pudesse ser. A garota estava morta há algum tempo, mas parecia não haver sido informada de seu óbito, como se aquele fosse um mero detalhe.

A doutora andou alguns passos para trás, quase tropeçando nos próprios saltos e sendo escorada pelo tampo da mesa. Mãos tremendo. Ela, que não tinha deixado transbordar medo e indignação quando a analisar resultados de assassinatos que dicionário algum poderia classificar. Virou-se para o lado sem conseguir verbalizar qualquer pensamento. Silas levara a mão à boca, contendo risadas de deboche. Na certa estava há algum tempo esperando essa reação. Doutor Souza, impávido.

Sem encontrar nos dois respostas para perguntas que não conseguia fazer, olhou a mesa e suas pastas empilhadas. Esperava ansiosamente ver o mosaico de papeis ganhar vida, dançar, desafiando verdades euclidianas. Planilhas, exames e relatórios dando as mãos, rearranjando-se para formar de sua sopa de letrinhas uma resposta oficial. Contudo, conforme sempre ditara a realidade referindo-se a situações impossíveis de ocorrer, antes ao menos da exceção à regra do outro lado do vidro, nada aconteceu.

Frustrada e apavorada, pele eriçada em arrepios, não sentiu a aproximação por trás do imenso segurança.

Ou seu conselho de amigo.

— Calma, doutora. Fica assustada não — disse calmamente. Ela quase podia sentir o lixar de sua barba na borda da orelha. — Essa aí é só uma Joana Ninguém.

1. Juni 2022 19:58 8 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Bella Oliveira Bella Oliveira
Amei...
September 22, 2023, 18:41
Daniel Trindade Daniel Trindade
Olá! Faço parte da Embaixada Brasileira do Inkspired. Estou aqui para lhe parabenizar pela Verificação de sua história. Espero que ela seja prestigiada por muitos leitores aqui em nossa comunidade. Sucesso e felicidade em sua arte! ♡
February 09, 2023, 00:28
Lanthys LionHeart Lanthys LionHeart
UAU!!! Eu comecei a leitura imaginando um crime de cidade pequena que se tornaria algo bem maior envolvendo militares, milícias entre outros, e confesso que achei que a porta era de correr ao invés de empurrar kkkk! Mas conforme fui vendo as "tecnologias" já passei a crer que estavamos diante de uma história com aliens... Quando a doutora Clarice passou pelo Silas e teve as piadinhas de "eu pego" e tal, achei, isso deve ser um local de gente condenada e que tá ali trabalhando em algo perigoso pra pagar pena, tipo, soltaram a médica na prisão de OZ, mas finalmente quando vimos o "aquário" e a criatura lá dentro, eu me senti feliz por ter entendido tudo, era alguma pessoa com alguma mutação que a estava matando; também essa mutação a obrigava a viver na água e agora tinham de reverter o caso... Foi só depois de ele falar às claras que a mulher estava morta que eu finalmente percebi o poder da trama de me conduzir pra tudo quanto é lado primeiro, pra só depois eu sacar que estavamos lidando com um caso zumbi! Cara, sem palavras, que texto fenomenal, mandou muito bem, partindo pro episódio 2 agora mesmo!!! \0/
June 24, 2022, 16:28

  • Pensador Louco Pensador Louco
    Uau digo eu, meu amigo. Joana Ninguém foi minha primeira noveleta, e uma que tenho com carinho no coração. Espero de coração que continue gostando, teu comentário vale sempre ouro. June 26, 2022, 13:13
Norberto Silva Norberto Silva
Cara! O que foi esse começo? Cara, desde a primeira linha eu simplesmente mergulhei de cabeça na história, acompanhando os passos da doutora Vieira, totalmente perdido como ela e aí chega nessa cena final e... Putz!!! Foda demais. Meus mais sinceros parabéns cara!
June 14, 2022, 22:01

  • Pensador Louco Pensador Louco
    Norberto, muito obrigado pelo comentário e leitura. Joana Ninguém foi minha primeira noveleta, e minha menina os olhos de escrita. Um slow burner, que escrevi com muita vontade e dedicação. Espero mesmo que goste, e se prepare pro final. 8) June 15, 2022, 01:12
Evaristo Ramos Evaristo Ramos
Do inicio ao fim do capítulo foi uma leitura maravilhosa com uma tensão crescente e pontas certeiras para serem amarradas nos próximos capítulos. Confesso que de inicio não pensei que veria um zumbi na história, mas vamos ver o que vai rolar mais a frente.
June 03, 2022, 06:00

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