Kurzgeschichte
0
2.2k ABRUFE
Abgeschlossen
Lesezeit
AA Teilen

De olhos vermelhos

Trem da meia noite, Tubarão, 01 de abril de 2018.

"De olhos vermelhos, de pelos branquinhos, de pulo bem leve, eu sou tão bonzinho. Sou muito safado, também sou guloso, por uma boa alma, já fico manhoso. Eu pulo pra frente, eu pulo pra trás, dou mil cambalhotas, sou forte demais. Levei sua alma, com casca e tudo, tão triste ele era, fiquei mais chifrudo!"

Piuíííííííííííííí!

- Acorda Mariana!

Nena berrou no pé do ouvido da amiga. Salivava ao sacanear a maquinista que tirava uma soneca em seu posto de trabalho, o comando da Maria Fumaça. O problema é que ela berrou perto demais, perto o bastante para levar uma braçada involuntária de Mariana, que quase derrubou a cesta de ovinhos de páscoa que tinha em mãos. Alguns deles, voaram pela cabine, mas nada que alguém fosse reparar.

Mariana que havia saído de um pequeno pesadelo com um coelhinho muito esquisito, acordou suando, pálida e com os olhos inchados. Parecia que havia chorado. Lá fora, ainda tocava no sistema de som da estação a musiquinha irritante de coelhinho que se misturou em seus pesadelos. Nena continuou:

- Amiga, brigada por me substituir hoje, minha família agradece.

Nena sabia exatamente o esforço que sua colega estava fazendo. Mas sua colega ainda tenta diminuir sua boa ação:

- Não faço mais que a minha obrigação.

- Não Mariana, isso não é obrigação. É coisa de amiga! Você trabalhou a noite toda e agora vai aturar o passeio de páscoa só pra me substituir. Diz “de nada” e pronto!

- Tá bom! De nada!

- Aqui estão os ovinhos pra caça. Se quiser já pode esconder agora, tá meio chuvoso então não vai derreter.

- Tá bom Nena, tá bom. Manda um beijo pros seus pestinhas.

- Mando sim, te amo! Feliz páscoa!

Mariana não conseguiu responder, não era habituada a receber carinho, já morava sozinha há anos e nunca achou ruim. Trabalhava à noite, preferia assim não só por causa das festas que aconteciam no “Trem da meia-noite”, mas porque nesse horário era proibido crianças. Naquele domingo abriu uma exceção para Nena, que tinha 6 filhos.

A maquinista pegou a cestinha de palha e entrou no primeiro vagão, que de tão vazio parecia estar isolado do mundo. Menos das musiquinhas de páscoa do sistema de som. Não dava a mínima importância para ovos de páscoa, mas achava divertido as crianças se estapearem por eles. Por isso, escondeu os ovinhos nos cantinhos mais ferrados do vagão. Banco por banco, nos porta malas, nos porta copos e até se agachou para esconder no chão. Foi lá, embaixo de uma das mesas de centro que Mariana encontrou um ovo. Dourado. “ué” pensou ela. Esticou-se toda para pegar o dito cujo, quando conseguiu percebeu logo que era gelado e mais pesado que os dela. Continuou, e mais à frente encontrou outro, e outro...

- Que estranho, quem botou isso aqui? a Nena não foi...”

Mariana esqueceu dos próprios ovos e catou os dourados que foi encontrando, sem perceber que eles formavam uma trilha, que a levou até o último vagão.

Era nele, que não oficialmente, acontecia a parte mais hedônica das festas do “Trem da meia noite”. As melhores drogas, os melhores homens e as melhores mulheres, as melhores bebidas, as melhores comidas, as melhores bandas. No vagão, decorado luxuosamente, não existiam regras e nem pudores, também não existia vigilância e quem entrava lá sabia que no turno da maquinista Mariana, você assume os riscos para ter as melhores experiências pecaminosas da vida inteira. Dessas que você não conta para ninguém. Wellcome to the Nigthtrain.

Foi lá que Mariana, que de tanto juntar ovos dourados, encontrou sentado no último banco um homem estranho. Com os pés na mesinha de centro vestia preto dos pés à cabeça, com um chapéu de mafioso, bota de fivelas prateadas, e vestimenta de motociclista. Em seu colo o mais lindo coelho branco de olhos vermelhos, que acariciava com as mãos vestidas de luvas de couro. Claro, não podemos esquecer o ray-ban quadrado modelo anos 80.

Mariana ainda enjoada da ressaca da farra que acabara de sair, misturada com o cansaço de aturar as festividades da páscoa, demorou um pouco para ligar os pontos daquela cena e ainda se dar conta de que vários outros coelhinhos branquinhos pulavam pelo vagão todo. Demorou para abrir seu bocão enorme e mostrar quem manda ali:

- Como tu entrou aqui?

- Bom dia em primeiro lugar. Como você está se sentindo hoje?

- Esse trem deveria estar vazio...

- Mas não está. Como você pode ver...

- Como tu entrou aqui?

- Isso não é relevante, porque eu entro onde quiser. Sente-se vamos conversar. Quer café?

- Não bebo nada que eu mesma não faça.

- Que desconfiada!

- Quem é você?

- O homem que já ressuscitou neste mesmo dia. E que agora está de volta.

Mariana respirou fundo e coçou os olhos que já ardiam há um tempo. Eles pesavam gostoso pedindo muitas e muitas horas de sono como era de costume. Mas não, ela tinha um homem para expulsar e um trem cheio de crianças chatas chegando para atender:

- Era só o que me faltava, tem mais maluco de dia do que na noite...que bosta.

Com o ânimo de um bicho preguiça de mau humor, seu desejo era largar tudo e ir embora. Principalmente depois que percebeu que ainda eram só seis horas da manhã e tinha um dia inteiro de trabalho pela frente. Mariana pensou em simplesmente fingir uma crise de coluna e ir embora de ambulância. Essa era sua melhor desculpa para uma fuga estratégica, já tinha escapado várias vezes de situações piores fingindo crises de coluna. Mas o homem parecia saber muito bem o que estava fazendo, pois percebeu o que ela estava planejando e agiu sem escrúpulos:

- Ovos de páscoa são legais, e a partir de hoje você está curada da coluna.

O homem estalou os dedos e Mariana sentiu um estalo no pescoço. Mariana se fez uma massagem no local e continuou:

- É o meu emprego... Não ligo pra eles.

- Eles o que?

Questiona o homem que andava meio confuso com os humanos. Mariana bufava:

- Os ovos de páscoa ué!

- Ah é! Pensei que estava falando da coluna que consertei. Quer que eu ajude a escondê-los?

- Não gosto que me ajudem.

- Por que não?

- Mas, que coelhada é essa?

- Deve fazer parte da festa sei lá, deixa eu lhe ajudar, não é trabalho nenhum.

O homem avançou em sua direção, Mariana fechou a cara e se armou de vez para o homem que chegava cada vez mais perto de seu rosto. E isso lhe causava arrepios, mas não era só de medo, o jeito que aquele homem a olhava era um elogio. O jovem pegou alguns ovinhos da cesta e puxou conversa:

- Tá com medo de mim?

Ela disfarçou e se afastou com dois passos para trás, tudo para poder se agachar, fingindo que ia esconder um ovinho por ali, tirar um canivete do bolso e esconder na palma da mão.

- Não vai me responder?

- Olha filho, eu não costumo conversar com maluco...

- Pelo visto você não costuma conversar com ninguém!

- Me deixa trabalhar viu...

- Olha, eu sei como a solidão pode ser triste... quando eu morri foi o dia que me senti mais sozinho na vida.

- Agora e na hora de nossa morte... amém.

- Bem lembrado, sempre gostei dessa frase. Será que a morte de todos é assim?

- Acho que quando você morreu, seu pai tinha te abandonado.

- É, mas minha mãe estava lá...

Mariana fechou o canivete e enfiou de volta no bolso da calça. Sentiu por um momento seus sentidos diminuírem, e voltarem na mesma velocidade. Aquela vertigem funcionou como um tiro de sensatez, toda a tontura, todo o cansaço, toda a ressaca sumiu instantaneamente e ela experimentou a lucidez adulta, que há anos não tinha, explodir em sua mente. Talvez por isso deixou a cesta de ovos cair...

- Quem é você seu filho da puta!

- Oooolha como fala da minha mãe!

- Isso é que dá ficar dando trela pra doido!

Mariana empunhou o canivete novamente só para mostrar que sabia se defender, e no mais adorava uma boa briga. Mas o malandro não estava ali para isso e quando puxou a mão daquela mulher com canivete e tudo algo muito estranho aconteceu. O coração de Mariana se apaziguou e um silêncio reconfortante tomou conta dela. Essa mulher nunca havia experimentado algo assim, parecia heroína. Até as músicas de páscoa sumiram:

- Calma Mariana, somos todos iguais aqui, calma... Eu vim pra te dar luz.

- Luz?

- Sim, luz.

- Por que seu pai deixou?

- Deixou o que?

Já em prantos, Mariana não conseguia mais se conter.

- Levar meu filho porra! Se você é quem diz que é, deve saber!

- Eu não sei...

- Meu filhinho, morreu ontem! Ahhhhhhhhh.

Aquele homem ainda meio malandro tentava disfarçar que não tinha o mínimo jeito de segurar uma mãe. Uma mãe que perdeu seu filho. Mariana continuou:

- Ele só tinha 23 anos...

- Eu estou aqui e sempre estive garota.

- Por que ele deixou? Esse merda de Deus!

- Ele não merece ser xingado. E tudo tem um propósito e... essa raiva é toda sua.

- Como assim?

- Como, como assim? Quantas vezes ele te ligou desde os 13 anos e você não atendeu? Quantas vezes desde os 13 anos você pegou o telefone pra ligar pra ele e desistiu?

- Para com isso!

- Foram dez anos! E você? Virou as costas pra ele só porque ele te chamou de vagabunda uma única vez?

- Para!

- E antes disso! Quantas vezes você abandonou o moleque com os parentes? Ou com os amigos? Ou sozinho!! Só por causa de balada.

Mariana chorava com os dentes travados e com uma dor que ela nunca tinha sentido.

- Isso Mariana, não é nada! Essa dor não é nada!

Aquele homem abraçava Mariana como quem acolhe alguém sabendo que ela ainda nem começou a sofrer.

- Não temas. Mas você deve se preparar.

Ele respirou fundo e continuou:

- Agora você está achando que vai morrer, com essa dor desumana. Mas um dia, não muito distante de hoje, você vai descobrir que não vai morrer, e vai ter que acabar seus dias aqui na Terra sem seu filho.

Mariana não conseguia imaginar coisa pior e ela só torcia para que aquele homem não a deixasse ali.

- Quem é você cara?

- Um amigo apenas... um amigo que tem mil disfarces.

Mariana chorou e soluçou. E foi cuidada até adormecer no chão, caiu no sono depois que aquele homem de chapéu passou suas mãozonas por seus olhos, e cantando fez ela apagar profundamente:

"De olhos vermelhos, de pelos branquinhos, de pulo bem leve, eu sou tão bonzinho. Sou muito assustado, porém sou guloso, por uma boa alma, já fico manhoso. Eu pulo pra frente, eu pulo pra trás, dou mil cambalhotas, sou forte demais. Levei uma alma, com casca e tudo, tão triste ele era, fiquei mais chifrudo!"

Piuíííííííííííííí!

A maquinista acordou 12 horas depois com o apito do trem estourando seus tímpanos e com uma voz familiar gritando em seu ouvido:

- Acorda mãe! Voltei!

Faça isso hoje.

21. Mai 2022 20:24 0 Bericht Einbetten Follow einer Story
0
Das Ende

Über den Autor

Kommentiere etwas

Post!
Bisher keine Kommentare. Sei der Erste, der etwas sagt!
~