gabileitao Gabi Leitão

Após o acontecimento envolvendo seu artista mais famoso, Heitor promove um evento para apresentar novos talentos ao mundo. Contudo, enquanto passeia pela galeria, acaba encontrando a filha do famoso Lua Minguante e, para sua surpresa, ela declara que odeia arte. Além do incidente com o pai, teria outro motivo para tal sentimento? O sofrimento sempre seria a fonte mais sincera da produção artística.


Kurzgeschichten Nicht für Kinder unter 13 Jahren.

#258 #arte #beleza #filosofia #drama #original
Kurzgeschichte
4
3.8k ABRUFE
Abgeschlossen
Lesezeit
AA Teilen

Capítulo Único

As paredes e corredores abarrotados enchiam os olhos dos mais experientes aos mais leigos apreciadores de obras de arte. Foi incrível como, em tão pouco tempo, artistas iniciantes do país todo se reuniram para celebrar um dia tão importante, mesmo conhecendo tão pouco do que ele realmente significava para o dono daquela galeria. Para a maioria era apenas a oportunidade perfeita de expor um trabalho que levou anos para ser concluído.

Sinceramente, Heitor Bianchi não se importava com esse detalhe.

Desde muito novo, Heitor ouviu histórias de seus pais sobre a importância da arte no país de origem deles e como ela ajudou a moldar muitas – se não todas as – culturas ao redor do mundo. Seu sonho era abrir uma galeria de arte que desse espaço para todos aqueles que o buscavam. Então ele construiu toda sua vida ao redor da ideia de que artistas deveriam ser reverenciados, não importasse quem fossem.

Foi extramamente difícil arranjar um espaço no início, ainda mais porque a maioria das grandes galerias e curadores não acreditavam na capacidade de um jovem compreender a importância de grandes artistas. Heitor estava à beira da falência quando encontrou um talento lapidado e incrível, que assinava como Lua Minguante. A fama chegou para ambos e de maneira instantânea, levando a galeria e seu dono ao estrelato entre os profissionais da área que o rejeitavam antes. Havia apenas uma parte do acordo de exposição que precisava ser cumprida à risca: manter a identidade do artista em segredo. Para Heitor, isso foi simples de manter.

Ver-se capaz de realizar tanto seus sonhos quanto de ajudar outras pessoas a realizarem os deles levou Heitor a um estado de pura felicidade e realização. Era um sentimento poderoso e profundo, que ele compartilha sem medo com seu amigo Lua Minguante. A vida estava perfeita e caminhando para um bom lugar. Sua felicidade foi muita, mas durou pouco.

Tudo que tão cuidadosamente construíu desmoronou quando Lua Minguante se suicidou durante o Inverno.

Como Heitor ficou sabendo? Simples. Foram dois anos de companheirismo e trabalho, o que levou a uma amizade improvável mas sincera – mesmo o artista sendo quase vinte anos mais velho do que o curador. Eles conviveram por muito tempo e Heitor sabia que, diversas vezes, Lua deixava de ficar com sua família para estar na galeria ou em seu ateliê particular, sempre sozinho produzindo sua arte.

Existiam mais coisas marcantes a respeito de Lua Minguante além de sua arte. A forma como falava era sempre séria e lenta, um contraste com as obras, cujos traços agitados e coloridos predominavam nos desenhos. A postura sempre rígida, diferente da relaxada que outros artistos da atualidade possuíam, era uma fonte de brincadeira constante entre eles. Todavia, o mais incrível eram seus olhos, cujas íris apresentavam o mais puríssimo tom de azul, – ou será que estava mais para branco? – como se fossem uma extensão de dias claros e ensolarados. Heitor nunca teve a coragem de perguntar se aquilo era uma marca de família ou se tinha sido resultado de alguam doença, mas sempre acabava encarando o artista por muitos minutos, afinal, o que era belo deveria ser contemplado, em sua opinião.

Um dos muitos defeitos do curdados – se é que devia considerar como um – era que se distraía com extrema facilidade. Isso ficava ainda pior quando estava distraído pensando no passado, por isso ele não percebeu quando uma pessoa parou ao seu lado, exibindo um enorme sorriso.

— Olá, Heitor — disse a pessoa, que também observava um dos muitos quadros novos. — Está tudo perfeito como sempre, meu amigo.

— Obrigada, Francisco. É bom receber você mais uma vez. — Heitor se virou para apertar a mão estendida. — Como está seu filho?

— Ótimo! Por algum milagre ele conseguiu passar de primeira no vestibular. Estamos muito orgulhosos.

Francisco era um dos diversos clientes frequentes da galeria e sua atividade favorita, além de gastar dinheiro em arte, era falar do filho. O garoto não era lá a pessoa mais tranquila do mundo, preferindo esportes a dedicar seu tempo aos estudos, então o homem gostava de comentar sobre todas as pequenas conquistas do menino que tinham a ver com estudos. Seria um assunto interessante para Heitor se fosse arte, mas não era. Ele apenas sorriu educado para o homem e agradeceu mais uma vez por sua presença.

Antes de poder ir embora, no entanto, Francisco sussurrou para ele:

— Sinto muito pelo que aconteceu ao Lua.

Para evitar que o assunto fosse para um lado mais sombrio, algo que o curador não desejava, ele agradeceu pelo sentimento e se retirou. O caso de Lua Minguante, por ser muito recente, ainda estampava as manchetes de todos os jornais do país, e foi até para além do Oceano Atlântico, chegando ao The Guardian. A dor imensurável que a família do artista sentiu – e sentia – não precisava de ainda mais exposição, então Heitor não queria ninguém bisbilhotando ou fofocando sobre isso.

A verdade era que a imagem da cena ainda era algo que assombrava seus pensamentos e foi a partir desse momento que começou a odiar paparazzi e jornalistas sensacionalistas. Uma coisa era contar uma história; outra era ganhar fama e visualizações com o sofrimento alheio.

Após uma longa respiração, Heitor passou entre os convidades. Ele sorriu e falou com alguns; cumprimentou outros e acenou para os que estava mais distantes. Havia um protocolo social a ser seguido nessas reuniões e era dever dele garantir que seus artistas teriam um ambiente aconchegante para terem suas obras apreciadas por todos os presentes. E o homem fazia isso com louvor.

Naquela noite, toda a galeria estava organizada para que as pessoas pudessem caminhar livremente entre as esculturas e, caso desejassem parar para olhar algo, existia espaço suficiente para o fazerem. As paredes pintadas de branco nuvem estavam repletas de quadros e foram separadas tanto por autor quanto por estilos, assim como as esculturas que eles criaram. Além dessas coisas, Heitor criou um pequeno espaço para as crianças, onde seus responsáveis poderiam deixá-las enquanto visitavam o local.

Era perfeito, alegre, bonito.

Contudo, um canto da galeria possuía uma aura sombria, e estava quase vazio demais. Assim como seu pintor tirara a própria vida, Lua parecia ter levado o interesse que as pessoas tinham por suas obras para o além. No canto dedicado às suas últimas pinturas – três quadros belamente desenhados – parecia existir uma barreira mórbida que afastava os convidados de lá.

Uma tristeza ameaçou tomar conta do corpo de Heitor. Lua fora tão homenageado e ganhara tantos prêmios em vida que era errado, em sua cabeça, que fosse esquecido tão facilmente. Um suspiro longo escapou por seus lábios e desapareceu em meio às conversar que se espalhavam pela galeria. A atenção de Heitor foi capturada por uma jovem que se atraveu a atravessar o véu que separava a ala do resto. Tomado por uma crescente curiosidade, o curador se aproximou dela e ficou surpreso ao reconhecê-la.

— Senhorita Rodrigues?

O eco de seu nome pelas paredes vazias fez com que virasse a cabeça. Os olhos tão diferente dos de seu pai – um preto tão profundo quanto o universo – se prenderam aos dele. Aurora, como a conhecia das poucas visitas que fizera à casa de Lua, não era muito alta. Sua postura altiva e graciosa era oposta a de seu pai e, pelo que se lembrava, ela sempre tinha um sorriso a oferecer aos outros. Naquele momento, no entanto, ela estava séria e distante, quase reflexica demais.

— Heitor... Quanto tempo.

Ele sorriu, mas não havia nada mais a ser dito. Aurora logo voltou a encarar o quadro pendurado na parede. Era uma peça curiosa e de enorme significado. O curador sabia que deveria dizer algo para ela em relação ao falecimento do pai, mas a jovem quem iniciou a conversa.

— Você sabe quando ele terminou essa pintura?

Não era o tipo de questão que ele estava acostumado a receber.

— Na verdade, não. Lua não gostava de conversar sobre seu processo de criação. Ele apenas entregava os quadros prontos.

— Entendo.

A resposta vaga, que não passava de um murmurar fraco, o deixou com uma sensação não muito boa e, discretamente, ele se pegou analisando a jovem. Ela não tinha mais de vinte e cinco anos, mas o brilho que a envolvia demonstrava todos os obstáculos que enfrentara durante a vida. Era como se Aurora tivesse uma atmosfera própria e o puxasse para perto – exatamente como seu pai era capaz de fazer. Qualquer que fosse o motivo, Heitor não conseguiu ficar calado.

— Gosta da arte de seu pai?

— Não. Eu detesto arte.

A fala baixa, mas cheia de desprezo, fez com que o curador ficasse boaquiaberto. Aurora não se surpreendeu ou ofendeu pela reação incrédula. As pessoas tendiam a assumir que um filho deveria apoiar seus pais em tudo. Quando ainda era vivo, o pai gostava de “acusá-la” carinhosamente de ser uma pessoa que se sentia bem chocando as pessoas. Mal sabia ele que a jovem pensava o mesmo a seu respeito.

Distanciando-se mais uma vez daquela conversa, ela voltou a encarar a pintura que era exibida com tanto orgulho na parede branca. Não era uma das peças comuns das coleções do Lua Minguante. A tela fora pintada com tinta a óleo – quando seu pai claramente preferia aquelas às base de água – e fora toda criada para representar o pequeno ateliê que ele possuía escondido em algum lugar da cidade. Dentro do quarto retratado na pintura existia uma tela e, em frente a ela, um garotinho que encarava o fundo branco atentamente. Em volta do garoto, muitos brinquedos foram espalhados pelo chão, mas ele carregava consigo apenas um pincel longo.

E, pendurada no teto, uma corda.

Aurora simplesmente odiava tudo que aquilo representava.

— O senhor sabe o significado de belo, senhor Bianchi? — perguntou de repente.

— Tenho algum conhecimento sobre isso — comentou confuso. — Aonde quer chegar, senhorita Rodrigues?

— Aurora — corrigiu-o automaticamente. — Pode me chamar de Aurora.

Ele acenou com a cabeça enquanto a jovem o observava com atenção. Sentiu como se ela, com seus profundos olhos escuros, pudesse ler sua alma, o que era engraçado levando em consideração que pensava o mesmo a respeito dos olhos do pai dela. Ela logo desviou o olhar e voltou a falar:

— Meu pai, apesar de ser um artista, nunca conseguiu entender o real conceito de beleza — explicou. — Na verdade, conscientemente, ele era uma negação, por mais que tivesse um jeito curioso de exprimir sua visão.

Se Heitor fosse uma pessoa impressionável, estaria chocado. Existia um conhecimento artístico profundo dentro da pessoa que, há poucos segundos, proclamara com frevor odiar arte. Parecendo ter entrada em um transe, Aurora apenas continuou a falar.

— Ele acreditava no conceito de Platão, de que o belo era absoluto e eterno e que nenhuma manifestação material humana, como a arte ou a literatura, poderia expressá-lo de maneira correta. — A voz dela, aos poucos, ia perdendo o volume, ficando mais baixa e grave. — Na verdade, ele gostava de dizer que suas obras nada mais eram do que uma mera imitação do verdadeiro belo. Já o ouviu dizendo isso?

— Diversas vezes — admitiu suave.

Apesar de estar falando com ele, Aurora não o via ali. Heitor suspeitou que ela nem mesmo estava conversando com ele de verdade. Era como se outra pessoa ocupasse o espaço dele. Outra pessoa que ela enxergava no garotinho que observava a tela em branco na pintura.

— Depois — Aurora continuou —, ele se convenceu de que Aristóteles é quem estava certo. O belo se tornou algo concreto que, assim como a natureza humana, pode sempre melhorar e evoluir. Foi em meio a essa busca incessante, obsessiva, pelo significado de algo insignificável que ele se perdeu em si mesmo e acabou desenvolvendo uma depressão.

Ela inpsirou profundamente, como se dizer aquelas palavras tivesse o mesmo efeito em seu corpo de uma corrida de dez quilômetros. E talvez fosse isso mesmo. Há vários meses Aurora corria para compreender o porquê, temendo cair no mesmo problema que seu pai.

— Papai nunca nem chegou perto de descobrir o que era o belo de verdade, só foi se afundando mais e mais em uma realidade que não existia, mas ele conseguia fazer existir em suas obras. Esse quadro foi a última coisa que ele pintou antes de... Bem, do que houve.

Heitor, que ficou envolvido pela voz melancólica e bonita, analisou com mais cuidado o quadro pendurado. Por muito tempo, ele se negou a ver todos os indícios do que estava para acontecer. Ninguém desejava admitir um problema como esse, ou enfrentar. Talvez... Um nó se formou em sua garganta, o obrigando a abaixar os olhos para fugir da cena do menino, cuja vontade era apenas pintar e a existência era ameaçada.

Uma pergunta surgiu no interior dele. Uma única pergunta que o assombrava desde que tinha encontrado seu amigo no ateliê: Será?

— Nunca... me dei conta dessas coisas — murmurou, sua voz carregada de culpa e arrependimento. — Me desculpe.

— Por que se desculpa?

O curador, que tinha entrado em uma espiral de dúvidas, tomou um susto com a pergunta. De certa forma, ele sempre julgou que a família dela o culpada. Heitor abriu e fechou a voca, sem saber o que dizer. Até aquele momento, Aurora dominou a conversa com sua presença contida e lógica rodeada por uma aura de pura desolação. A voz dele se sobrepôs às conversas vindas do resto da galeria; aos artistas explicando os conceitos de suas obras; à sensação que ele tinha do próprio corpo. Heitor dera um jeito de evitar o luto ao se afundar no trabalho e só percebeu isso naquele momento, graças à Aurora.

— A culpa não é sua, sabe? — Aurora disse, oferecendo a ele um sorriso triste. O esboço do primeiro sorriso em semanas. — Ninguém deve se culpar.

— Eu poderia ter feito algo.

— Todos poderiam, muitos tentaram, afinal, os sinais estavam lá — retrucou. — Contudo, nós somos humanos, Heitor, e ainda estamos buscando significado para nossas vidas. Às vezes nos tornamos cegos para a busca alheia.

— Isso é muito ruim.

Aurora olhou para ele com as sobrancelhas erguidas – exatamente como seu pai fazia quando não concordava com algo que tinham a dizer. Heitor engasgou com a própria saliva e deu um passo para trás, assustado. Aurora, por outro lado, não hesitou em corrigi-lo – também como Lua faria.

— Não existe isso de muito ruim. Papai sabia o que tinha, mas não aceitava. — Ela suspirou e os ombros, que se mantinham tensos e erguidos, vacilaram. Claramente não dizia aquilo apenas para ele. — Nesse mundo de constantes brigas e descobertas, não podemos nos condenar pelas decisões de cada um. Pessoas só podem ser ajudadas se quiserem. Temos que confiar que, em algum lugar, alguém vai tomar a decisão certa.

— Certo e errado são conceitos tão subjetivos...

Ela abriu o maior sorriso até então, mas não menos triste: — Então você entedeu a questão.

— Só não entendi — Heitor iniciou para mudar de assunto, sentia-se exposto e confuso demais naquele momento — o porquê de odiar a arte.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos, ainda encarando o quadro. Era um assunto doloroso para ela – ainda mais do que falar sobre a obsessão do falecido pai. A capacidade de falar fugiu dela e toda a boca ficou seca, forçando-a a lamber os lábios. Fazia isso quando não sabia como responder alguma coisa. Lágrimas pinicaram seus olhos, fazendo-a piscar por alguns segundos.

— A arte roubou, de certa forma, um membro da minha família.

Heitor manteve o silêncio em respeito a ela e esperou que se recompusesse. O peito de Aurora subia e descia rápido, mostrando os ânimos alterados. Ainda era um acontecimento recente, com o qual todos estavam aprendendo a lidar, e devia ser mil vezes pior para ela. Mas estavam vivos, certo? Precisavam seguir, não? O curador não tinha tanta certeza, no entanto, a força que ela mostrava era muito maior do que ele estava oferecendo.

Demorou algum tempo, mas Aurora voltou a encontrar sua voz.

— Antes do que aconteceu — ela sussurrava, então Heitor precisou se curvar para ouvi-a —, eu e papai tivemos uma briga. Uma das muitas que vinha acontecendo nos últimos tempos. Ele insistia em querer falar sobre estética comigo, mas não estava aberto a me ouvir. Acabávamos ficando sem nos falar por algum tempo...

Aquela era a primeira vez que ela falava sobre o assunto e isso ficou claro. Heitor optou por se manter em silêncio, pois também não sabia como reagiria. Tudo na postura de Aurora mudou. Toda a calma e controle que exibia antes estava desmoronando. A palidez sobressaia a maquiagem que enfeitava seu rosto e as olheiras apareciam. A jovem não passava de uma sombra do que um dia fora.

— Só queria que ele compreendesse que o belo é muito mais do que uma imagem, uma escultura ou uma pessoa — Aurora vomitou aquelas palavras, sentindo a raiva que guardava do pai tomar seu ser. — Filósofos e mais filósofos discutem o conceito de beleza desde muito antes de pisarmos nessa terra e ninguém nunca concordou em algo justamente porque não há como concordar. Alguns ainda acompanham as visões de Platão; outros de Kant; mais outros de Aristóteles. É algo tão mutável que nem mesmo no dicionário você encontra uma só definição, entende?

O vazio sincero que ela mostrava, misturado ao desespero que sentia, exalavam por todos os poros de seu corpo, preenchendo a sala vazia. Finalmente a filha que perdeu o pai apareceu e sua razão para estar ali ficou clara: ela queria respostas para o porquê de sua perda. Heitor já tinha lidado com muitos artistas desesperados, mas não com pessoas. Artistas concentravam essa energia em produzir, pessoas choravam.

Apesar disso, Aurora não parecia perto de derrubar nenhuma lágrima. Ela recuperou o controle o suficiente para perguntar:

— O que você acha?

Aurora pensou um pouco. Ficou divida entre responder a pergunta que ele fazia ou a pergunta não feita, mas optou pela primeira. Era mais segura.

— Prefiro a visão de Plotino — respondeu prontamente e, de cabeça, recitou algo que lera tantas vezes quanto pudera desde o começo de sua graduação. — Devemos sempre ver o belo como algo assimétrico e sem uma medida, porque, no fim, a beleza física é muito mais plástica e tão facilmente alterável que, com um pouco de trabalho ou muito dinheiro, pode ser ajeitada para se enquadrar em padrões pré-definidos. O belo intelectual e mora, a personalidade e as ideias são deixadas de lado nesse caso.

— Isso é muito ruim.

— Muito ruim.

Aurora mexia sem parar na gola de sua camisa, alargar o pano foi a forma que encontrou de discontar um pouco de sua raiva. Heitor era apenas alguns anos mais velho do que ela, talvez seis no máximo, e percebeu que Lua não tinha sido um grande artista apenas para suas obras. A garota e sua irmã mais novas – cuja reação à situação era a pior de toda a família – era a prova viva de que Lua excedia em todas as coisas que criava.

— Posso perguntar uma coisa? — Aurora suavamente passou a mão pelo rosto, afastando algumas lágrimas. — Por que sabe tanto sobre conceitos de belo?

Desde que aquela conversa começara, estava curioso. Heitor, sendo uma pessoa formada em história da arte, tinha noção de alguns daqueles conceitos, mas o conhecimento dela era profundo e exato. Aurora parou de mexer em sua blusa, agora que tentava desfiar o pano, e deu de ombros.

— Eu queria ajudar meu pai — explicou, perdendo mais uma pouco da postura séria que tentava manter. — Então decidi entrar em uma faculdade de filosofia. Pareceu a coisa certa, já que as maiores questões dele eram sobre isso. — A atenção dela vagou pela ala dedicada a Lua. — Acabei de ser aceita em uma universidade americana para cursar um mestrado em filosofia da arte, mas...

Aos poucos, a voz dela foi sumindo até que não resto nada. Não era como se qualquer pessoa precisasse de um complemento para saber o que não estava sendo dito. Lua Minguante, ou melhor, Manuel Rodrigues não estava mais vivo. A jovem deveria se perguntar diariamente se tinha tomado a decisão correta para sua vida e devia ser isso que a impedia de seguir em frente.

O silêncio voltou a perdurar entre eles, parecendo a coisa correta a acontecer nesse momento. A cada segundo daquela conversa o barulho do resto da galeria ficava ainda mais distante. Era impossível notar o resto do mundo – como sempre acontecia quando as obras de Lua estavam presentes. O último quadro de Lua, nada mais do que um prelúdio fúnebre do final sombrio de um artista de alma torturada, possuía uma aura sufocante e grandiosa, que sugaria qualquer pessoa que parasse para observá-lo por mais de dois segundos.

Heitor piscou, não aguentando olhar para o garotinho com o pincel, e voltou sua atenção para Aurora. Pelo visto, Lua tinha uma base de apoio incrível em casa, mas não foi capaz de se libertar das marras que o prendiam. Sentindo que devia dizer algo, o homem limpou a garganta.

— Sabe — comentou acabando com a aura que os envolvia —, tem um conceito japonês muito interessante sobre o belo. — A curiosidade brilhou na expressão entristecida, Heitor recebeu isso como uma autorização para continuar. — Yugen. Não há uma tradução exata, mas quer dizer “senso profundo e misterioso da beleza do universo e a beleza triste do sofrimento humano”.

As sobrancelhas muito bem feitas dela se contraíram para aquilo. Seu coração ainda estava pesado, dolorido e muito inacessível. Ouvir algo diferente do que conhecia não era fácil, ainda mais quando alguém fazia alusão a beleza no sofrimento alheio.

— Está dizendo que há beleza no sofrimento humano?

— Quando não há beleza?

Heitor gentilemente a segurou pelo braço e apontou levemente para o resto do público. O curador prometeu que sempre existia uma ala apenas para Lua, então a sala em que estavam era dedicada a isso. Alguns dos convidados paravam na porta, olhavam para dentro e voltavam receosos. Outros, um pouco mais aventureiros, entravam no lugar e observavam as pinturas com verdadeira admiração.

— Poderiam ser apenas curiosos para descobrir mais sobre um suicída — Aurora o desafio, ainda incomodada com aquilo.

— Poderiam — Heitor concordou. — Mas, se fossem, estariam tirando fotos e fazendo perguntas em vez de apenas apreciar a arte de seu pai.

A expressão dela comprovava que não conseguiria entender o verdadeiro amor pela arte de alguém quando, tão intimamente, tinha sido afetada por isso. A cada segundo, a raiva que ela sentia pela arte ficava mais exposta. Heitor suavizou ainda mais a voz para continuar.

— O legado que seu pai deixou em meio à confusão do ser dele é algo que nunca será esquecido — prometeu. — Ele conseguiu transmitir, para muitas pessoas, a luta de sua alma e, mesmo que tenha cedido, provavelmente ajudou vários outros a lidarem com esse demônio interno. Perdi as contas de quantas vezes o vi conversando com artistas mais novos, incentivando a continuarem sempre.

Um tremor tomou conta do corpo dela. Pela primeira vez, a postura endurecida fraquejou e um véu de lágrimas cobriu seus olhos. Era uma mulher, uma adulta, mas se encontrava na posição de uma menina perdida. Aurora sentia que estava dormindo e acordaria a qualquer momento com um abraço de seu pai e um desejar de “bom dia”.

— Está tudo bem?

Ela negou com a cabeça. Seus ombros subiram e desceram acompanhando a respiração agitada. Seu rosto perdeu a cor toda, fazendo o curador temer que tivesse uma crise.

— Minha irmã mais nova não consegue dormir, minha mãe não consegue comer e eu ando obcecada com tudo que tenha a ver com arte e criação. E todas nós sentimentos falta dele. Eu não consigo pensar em uma coisa positiva sobre o trabalho que fez com que papai passasse tantos dias e noites longe de nós. Isso é estar bem?

Certa raiva se misturava à voz dela. Todo o corpo tremia sem para agora e as mãos se tornaram punhos. Aurora olhou para a pintura com tanta intensidade que Heitor pensou que pudesse destruir a obra ali mesmo. Ele deveria impedir?

— Eu só queria que ele voltasse...

Aurora deu dois passos para frente e tocou a tela. Seus dedos traçaram as linhas da pintura um com cuidado estranho. Aurora tinha ido até ali apenas para ver aquela pintura e, mesmo proclamando que odiava arte, queria usá-la para permanecer conecta a seu pai.

No fim, sabia que arte era aquilo. Uma mensagem constante sobre sentimentos e emoções que todos tentavam evitar a qualquer custo. A beleza disso tudo estava na forma como pintores, escultores e escritores envolviam seu público; em como faziam as pessoas verem, entre linhas coloridas ou palavras escolhidas, um ou vários pontos de vista sobre o mundo.

Entrentanto, as pessoas também podiam ignorar o que diziam. Como Heitor fez ao fingir que estava tudo bem com Lua. Como Aurora fazia ao dizer que odiava arte. Era como o conceito japonês dizia: o senso misterioso e profundo da beleza estava nos detalhes das emoções mais humanas – e a mais sincera, e talvez mais forte, fosse a tristeza, o medo.

— Manuel — assim que disse o nome dele, viu Aurora se retesar — dizia que sua obra mais perfeita eram suas filhas.

Ela olhou para trás, para ele, e mostrou as lágrimas que caíam.

— Uma vez ele comentou que nunca iria conseguir repetir tal proeza, porque você e sua irmã não podiam ser imitadas — explicou. — Essa era a razão de nunca pintar vocês duas.

Heitor se lembrou do que sempre carregava dentro do bolso, perto do coração. Ele retirou um caderno, que estendeu para Aurora. Relutante de se afastar da pintura, Aurora folheou as páginas. Reconhecia a letra de seu pai, assim como o caderno. Em uma das últimas páginas, ela encontrou rabiscos dela e da irmã. Eram crianças e seguravam suas mãos, a data: quase uma década antes.

— Seu pai tinha seus próprios fantasmas, mas nunca deixou de amar vocês — Heitor murmurou enquanto ela analisava o desenho. — Tente não ter raiva dele. Acho que ficaria feliz se pudesse apreciar a arte pelo que ela é.

Ficou estampado nos olhos dela, sob as lágrimas, a pergunta: “o que era”?

— Uma expressão do sentimento humano — respondeu. — Seu pai tentava dizer por meio de suas pinturas o que sentia. Talvez, só talvez, consigamos entender melhor o que se passava pela cabeça dele através de seus desenhos.

— E se não conseguirmos?

— Então, ainda teremos, para sempre, um pedaço dele entre nós.

Ela chorou mais abertamente agora. Era como se tudo que tentava manter inteiro dentro de seu peito desmoronasse de uma vez. Heitor continuou ali, fazendo companhia para a garota que finalmente compreendia a perda que sofrera; que reavaliava tudo que conhecia e que pensava sobre o mundo. Ele não a deixaria sozinha, não quando o pai o fizera.

Do lado de fora da sala, as pessoas seguiam sua vida alheias ao sofrimento vocal de Aurora ou o silencioso de Heitor. Ela apenas vagavam pelos corredores da galeria, sorrisos estampando seus rostos, os corpos relaxados enquanto ouviam sobre as obras dos artistas. Estavam ali para apreciar o que viam, o que achavam saber, e não se importavam com o além, o profundo. Ninguém queria saber o que cada um daqueles artistas sofria, o que passava. Eles só queriam algo bonito para pendurar em suas paredes, para expor em suas salas. E, talvez, a arte também fosse sobre isso.

De um lado, a expressão dos sentimentos mais profundos do inconsciente humano. Do outro, a necessidade de ter a coisa mais bonita, vistosa e grandiosa que existia. Um conflito de egos. Um sofrimento profundo. Arte.

8. April 2022 18:38 1 Bericht Einbetten Follow einer Story
3
Das Ende

Über den Autor

Kommentiere etwas

Post!
Norberto Silva Norberto Silva
Menina! Mas que história mais bonita! Incrível como, mesmo sendo apenas uma conversa, num mesmo ambiente, onde os personagens mal se movem, você conseguiu "desenhar" um texto tão cheio de sentimentos. Como pai, atesto o e repito aqui o que o Heitor falou como uma das frases do Lua que mais me pegou: "Sua obra mais perfeita eram suas filhas". Lindo demais. meus mais sinceros parabéns!
February 15, 2023, 18:11
~