viniciusarierreff Vinícius Ariérreff

Quando a luz da aurora começa a clarear a noite, e o barulho do choro volta a se fazer presente, Cida resolve sair do quarto e enfrentar o demônio que ronda os corredores do convento.


Thriller Nur für über 21-Jährige (Erwachsene).

#abuso #violencia #conto #drama #suspense #terrorpsicologico #religiao #gatilho #misterio #escuro #noite
Kurzgeschichte
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O Canto dos Bem-ti-vis

Era quase manhã quando o silêncio da madrugada novamente se partiu. Cida abriu os olhos no mesmo instante em que os urros de dor e medo começaram outra vez, e então soube que a decisão que havia tomado dias atrás se cumpriria o mais cedo que pensara.

Colocou os pés no chão e descobriu-se da proteção de sua manta, o frio da noite a assediou em seguida, enchendo sua pele de um intenso arrepio. Agarrou o terço que dormia ao lado da cama, porém não fez menção de que iria rezar; aquele não seria um dia comum, pois estava disposta a enfrentar o assombro. Levou a mão para acender a vela e, dessa forma, dar sentido às sombras que a cercavam no quarto. Mas não. Conteve-se ao perceber que luz nenhuma a ajudaria, muito menos a barraria do que estava acontecendo.

O urro se repetiu. Abafado. Distante.

Cida sentiu a mão tremer e o suor brotar na testa, mesmo que o frio lhe afagasse a nuca. Apesar disso, pôs-se de pé e cobriu o corpo franzino com o grande pijama branco, que quase se arrastava pelo chão como um véu. Os braços finos alcançaram o cesto de costura, apanhando o material necessário para o confronto.

A porta pesada de madeira do quarto foi aberta da forma mais discreta que conseguiu. De forma alguma, podia chamar a atenção do ser demoníaco que vagava do lado de fora. O corredor, por sua vez, continuava como em qualquer madrugada: o chão de madeira velha e escura parecia se perder em meio ao negrume da noite, as paredes revestidas por pedras brilhava de forma inconstante com as luzes das velas, dispostas de duas em duas a cada cinco metros. As janelas se encontravam fechadas, mas ela sabia que a última hora do incandescer das estrelas consumia a área externa.

O urro voltou a se fazer presente, preenchendo o ar com baforadas de pura agonia. Vinha de mais a frente, ela percebeu. Não estava tão longe assim.

O primeiro passo para fora do quarto foi o mais difícil de ser dado, o corpo parecendo se recusar a sair da falsa proteção, contudo sabia que a única armadura necessária estava enlaçada entre seus dedos. O terço era a certeza da guarda de Deus, para onde quer que fosse, diante de tudo que tivesse que enfrentar. Andou, então, a passos lentos, constantemente a apoiar o corpo nas paredes gélidas. E, a medida que caminhava, não só os urros altos podiam ser escutados; aos poucos, os curtos sons de pavor, os pedidos de socorro iam saltando sobre seus ouvidos; o ser demoníaco se alimentava de mais uma vítima no convento.

Por mais que soubesse da urgência do que acontecia, não tinha condições de aumentar a velocidade das passadas. Continuou o trajeto, lenta, porém constantemente. A mão do terço tremia cada vez mais. A outra, entretanto, segurava o instrumento com firmeza entre as vestes volumosas.

Quantas mais ouviam atentamente o que acontecia, atrás das paredes e escondidas de baixo dos lençóis?

Enfim, chegou onde precisava estar. Aproximou-se da porta entreaberta, espiando sorrateiramente pela fresta. Não dava para ver nada dali, infelizmente; apenas o tremeluzir das sombras sobre a iluminação das chamas, embaladas pelo som baixo de dor e o barulho característico da besta. O coração se apertou no peito, os olhos se esqueceram como piscar, a respiração pareceu sem importância. De repente, pensou em desistir, dar meia-volta lhe pareceu a melhor opção, mas logo notou que aquelas eram as vontades dos seres obscuros, tentando impedi-la de prosseguir com a missão.

Empurrou vagarosamente o bloco de madeira, escancarando a cena de horror para quem quisesse ver. Irmã Alice chorava, fitando a imagem de Nossa Senhora e rezando baixinho. O corpo inteiramente desnudo sobre a cama, enquanto o ser asqueroso se colocava sobre ela, agarrando suas carnes enquanto se movimentava de forma sinuosa sobre seu ventre; movimentos repetitivos, sons profanos de prazer.

Irmã Alice urrou novamente de dor, implorando para que suas preces fossem ouvidas, ao passo que o demônio cobria sua boca sem cessar os movimentos. O corpo peludo, as pernas finas, a barriga volumosa. O suor, o cheiro, o toque rançoso… As lembranças saltaram na mente de Cida.

Segurando o terço com toda a força que seus braços frágeis podiam ter, ela se aproximou sem que fosse percebida. E quando estava perto o bastante para sentir novamente o cheiro inebriante do pecado, levantou com as duas mãos o instrumento que guardava. A tesoura do seu cesto de costura cintilou diante da luz, segundos antes de ser cravada nas costas da besta, que gritou de dor.

Irmã Alice se desvencilhou das garras, e caiu ao lado da cama, sem forças para ir mais longe, ao passo que a besta se contorcia sobre os lençóis, empapando os tecidos brancos de sangue. Gritou de dor, confuso, até que os olhos encontraram os olhos vidrados que o encaravam.

— Irmã Cida? — Padre Olavo falou, sentindo os pulmões fraquejarem.

— Meu Deus… — Irmã Alice continuava a rezar, caída nua sobre o chão de madeira.

Cida, por sua vez, conseguiu somente fitar o ser infernal sangrar cada vez mais. O ar lhe faltando, a vista se perdendo, o membro rijo se tornando eternamente flácido.

Até que o corpo cessou sobre a cama, e a tez branca do homem se tornou ainda mais branca com a falta de vida. Irmã Cida se sentou ao lado de Irmã Alice, colocando-a deitada em seu colo e acariciando seus cabelos grisalhos. Permitiu-se, então, chorar, como se finalmente pudesse colocar para fora todo aquela angústia resguardada. Choraram ambas, juntas. Sozinhas. Choraram até que não mais houvessem lágrimas. Até que restasse apenas o silêncio da madrugada.

Apenas o silêncio…

E, então, um barulho emergiu do nada, vindo de além das paredes de pedra, do chão frio de madeira e das portas pesadas do convento. Vinha de fora, ela percebeu. Dos pés de manga, ou de mexerica, talvez. Bem-te-vis cantavam, anunciando a aurora que chegava mansa. Um canto alto, vivo, e de repente as sombras não pareceram mais tão ameaçadoras, nem a luz da vela pareceu fraca demais.

Cantavam. Anunciando o novo dia que se iniciava, os raios de sol que apareceriam no horizonte em breve. Cantavam, trazendo esperança. Cantavam, e, por isso, Cida conseguiu sorrir.

14. März 2021 22:26 3 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

Über den Autor

Vinícius Ariérreff 25 anos/ Cirurgião-dentista/ Goiano do pé rachado/ Escritor de fantasia e ficção científica.

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Amanda Kraft Amanda Kraft
Vinícius! Que conto! Eu fiquei cismada com esse monstro dentro de um convento e, no final, eu estava certa quanto a ele. Contudo, a forma como você direcionou a saída da irmã, o medo, a chama das velas nas paredes de pedra, criando o suspense necessário para a leitura, foi magnífico. Parabéns. Adorei ler.
June 01, 2023, 21:59

  • Vinícius Ariérreff Vinícius Ariérreff
    Fico muito agradecido por sua leitura e por esse comentário tão generoso! Muito obrigado :) June 07, 2023, 13:52
Daniel Trindade Daniel Trindade
Saudações! Faço parte da Embaixada Brasileira do Inkspired. Estou aqui para lhe parabenizar pela Verificação de sua história. Espero que ela seja prestigiada por muitos leitores aqui em nossa comunidade. Sucesso e felicidade em sua arte! ♡
March 12, 2023, 19:59
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