Quando os finais infelizes batiam à porta, Amanda atendia-os na melhor peça do guarda-roupa. Como a avó ensinou. Tendo escolhido o vestido azul turquesa, de corte império, bordado de rendas claras na faixa abaixo do busto, e uma bolsa preta de alça bordô para guardar a carteira e os óculos, optava pela discrição. E acabou por se destacar na presença asséptica dos uniformes bem cortados, assentando nos corpos, e nos rostos, enfadados, mas cordiais, dos médicos e das enfermeiras do hospital municipal.
A mulher da recepção até fez um elogio pouco sincero antes de informar o quarto do paciente, virando o corredor. À esquerda. O hospital pela manhã seguia silencioso, um homem na fila de espera tossiu. Amanda agradeceu a recepcionista.
No quarto, porém, encontrou a cama vazia. Ela assentiu o revés pouco preocupada, pretendia voltar no dia seguinte àquela mesma hora e, não conseguindo, tentaria no próximo dia, e no próximo, e no próximo... uma hora, encontraria alguém na cama ou o encontro nunca deveria acontecer, mas um auxiliar de limpeza, vendo-a sair do quarto, explicou:
— Os pacientes ficam na hemodiálise por essas horas, senhora. — Ele também apontou onde os encontraria. Amanda agradeceu descrevendo um par de passos indecisos à ala sul. O mais estranho, ficara irritada pela intromissão do homem. O olhar dele fazia um elogio obsceno sobre o vestido. De repente, decidiu que escolhera a roupa errada e deveria dar meia volta. Ela encontrou a sala de hemodiálise em seguida, tarde demais para retornar.
O único presente, sentado ao lado do aparelho, tinha uma mangueira saindo do braço. As pálpebras caídas no rosto ossudo, o cabelo ralo tombado de um lado da cabeça, a respiração cadenciada. Parada na porta, Amanda demorou a apagar uma imagem do mesmo prostrado em meio ao salão da funerária, embora, ninguém aceitava, para enxergar um velho conhecido.
— Antônio.
O paciente abriu os olhos, devagar.
— Amanda? — E sorriu, animando-se. A aparência até melhorou. — Há quanto tempo... Nossa! É você? Veio me visitar?
Ela assentiu, pousando a mão no ombro dele, mas não resistiu e abraçou-o. Podia fechar os olhos e fingir abraçar uma escultura de gravetos, pois era no que ele se convertera. Sofria há meses de problemas nos rins e fazia hemodiálise diariamente desde então, estava se recuperando, mas piorara no último mês depois da aparição de outro problema, no estômago.
Amanda recebeu aquela notícia quando chegou na cidade, após um longo período vivendo fora. Voltava pelas boas lembranças, pelo pai, pelo descanso da avó, e por todos os momentos agradáveis perdidos no passado e passara a primeira semana entretida decidindo fazer uma visita apenas na noite anterior.
— Nossa... Quanto tempo?
— Vinte... — Ela franziu os lábios, poderia ser mais, vinte um, vinte e dois anos desde o último encontro.
Ele concordou, surpreso. De cabelos loiros e olhar provocante no passado, agora, próximo da meia idade e doente, os anos cobraram o soldo a sua aparência. Estava pior do que diziam. Amanda se sentiu culpada pelo vestido, pela boa aparência, via-se no reflexo do alumínio polido na base do aparelho, diferente dele, ainda preservava a insolência e a beleza da juventude.
— Ouvi dizer que você tinha voltado, mas... não esperava que viesse me visitar. — Antônio ficou pensativo depois do comentário, sorrindo como se a simples presença dela significasse algo importante. Nela, a culpa preenchia o silêncio. Amanda mordeu a língua porque às vezes diminuía o nó na garganta, o tremor no queixo. Os movimentos mais simples na maré das emoções entregavam-na às lágrimas, não poderia ser diferente.
— Desculpa... eu... vinha antes... mas...
— Não tem problema — Ele gesticulou, tentou levantar e a mangueira no braço o impediu. — Você não mudou nada. Tanto tempo e não mudou nadinha. Olha só, igualzinha.
Ele riu.
— A Heloísa também não mudou. Já viu ela?
— Não. — Foi o suficiente, ela secou as lágrimas. — Ainda não.
— Azar... Santa Olga é pequena como um ovo até você precisar encontrar alguém. — Antônio riu outra vez, afundando-se na cadeira. — A minha vida continua igual, vamos falar da sua então. O que tem feito da vida?
Ela bufou, seria uma história demasiado cansativa para contar de pé. A sala de hemodiálise continuava vazia e com uma fileira de cadeira à espera dos próximos pacientes, no entanto, olhando indecisa um dos assentos, escolheu ficar de pé. Observava o aparelho, uma peça girando abaixo do painel, conforme falava. O sangue devia passar por lá, era certo que uma peça exposta daquele modo teria uma importância vital no mecanismo, e dali voltava ao corpo magoado do homem que tanto machucou sua vida e que ela tanto prejudicou. Mas tudo fazia parte do passado. Os gestos e os assuntos tratados afirmavam, ela enterrou as mágoas onde ninguém as encontraria enquanto Antônio aceitava e evitava o único assunto sensível aos dois: a Heloísa.
Colocar os assuntos em dia levou a hora restante do tratamento, em seguida, antes da peça importante parar, uma enfermeira entrou na sala e pôs fim a visita. Amanda prometeu fazer uma nova visita e saiu do hospital duvidosa se cumpriria a promessa.
O sol da manhã retinia nos paralelepípedos da rua vazia. Ela mantinha os óculos escuros guardados na bolsa, para evitar falatórios, e também decidiu voltar os dois quilômetros que distanciavam o hotel do hospital a pé. Da segunda decisão, não pretendia evitar nada, caminhava porque precisava afastar os pensamentos e observar as ruas, as pessoas, as árvores e os passarinhos.
Era um dia quente e dias quentes foram feitos para as caminhadas.
E foi num dia como aquele, noutra vida, que ela sentou numa calçada morna, os dentes de leite firmados numa careta de dor, ela apertava o que dois minutos antes equivalia ao dedão do pé direto. Os meninos continuavam jogando no meio da rua. Dois pares de chinelos serviam de traves. Uma bola remendada rolava de um lado a outro. Recebendo um toque perfeito e driblando o irmão menor, Pedrinho, o culpado pelo dedão, chegou na trave sem defesa. Amanda apertou o dedo ensanguentado. Ele falaria daquele gol pelas próximas duas semanas, comemoraria feito um louco e teria de aguentar tudo calada, mas foi ela quem comemorou quando uma Brasília 82 surgiu na esquina, antecipando o gol.
Ambos os times subiram às calçadas, dois meninos voltaram pelos chinelos. E todos esperaram. Pedrinho segurava a bola debaixo do braço, a menos gasta e por consequência a melhor da rua, e jogou-a no chão, com força, assim que o carro parou entre as traves.
— Bem feito. — Amanda mostrou a língua. Ele era mais velho, mais alto, mais forte, numa idade em que as crianças correspondiam a uma massa indefinida sem leis próprias, poderia bater nela e ainda cobrar a razão por aquilo, no entanto, ela era a Amanda, sem diminutivo, e ele sendo um Pedrinho esperto, o que não era, evitaria contato visual até a história do dedão ficar no passado.
O jogo acabava empatado. Ninguém foi para casa. Dentro do carro, Amanda contou três pessoas, o homem no volante olhava a casa do lado. Ele aparecera perguntando se alugavam aquela casa dois dias atrás e ela respondera que sim. Agora, contudo, o murro recém pintado de branco estava demarcado por um círculo de sujeira, qualquer um adivinhava a origem: um chute errado e uma bola desgovernada. O homem desceu do carro, depois uma mulher o seguiu. Uma menina, de nariz empinado e uma cara azeda, foi a última. Enquanto abriam o portão gradeado, Pedrinho se aproximou, batendo a bola no chão. O excesso de contato visual atestava sua burrice natural.
— Ei, quem é?
— Os novos vizinhos. Quem mais?
— Viu a menina?
— Vi.
— Bonita, não é?
— É. — Ela esfregou a mão na calçada, a mistura de sangue e areia criou uma mancha escura amarronzada. Conferiu o estrago. A unha cairia dentro de poucas semanas. — Bem bonita.
— Tá doendo? — Pedrinho arqueou a cabeça e fez uma careta. Amanda, olhando o ferimento, quase estreou o novo palavrão, ouvira alguém dizendo no bar quando fora comprar a cerveja do pai e àquela altura pronunciava-o a perfeição, porém aquele pilantra diria a mãe dele, a Dona Joana faria uma reclamação formal e ela, inocente, levaria uma surra. Assim, mordeu a língua, passou um punhado de areia na ferida e voltou a casa.
A curiosidade pelos vizinhos morreu naquela mesma tarde. Passou a maior parte do dia seguinte dentro de casa, ouvindo o sermão da avó e escondendo o machucado do pai, que trabalhava o dia inteiro e chegava muito impaciente para conferir se tinha coisa errada. Ela saiu apenas dois dias depois, à tarde.
O par de chinelos posicionado no meio da rua, a bola rolava, os meninos corriam, tudo estava igual a última vez, porém, do portão gradeado, a nova vizinha acompanhava a algazarra entusiasmada apesar dos pés descalços, perfeitos e intocados à luz amarelada do entardecer, revelavam nunca ter tocando numa bola, e do portão, a menina viu-a. Os olhos se encontraram pela primeira vez, por um instante, antes da menina empinar o nariz e dar às costas.
Pedrinho vinha mancando na direção da calçada, uma cara de choro. Sentou-se.
— Sabe qual é o nome dela?
— Heloísa. — Ele apertou o dedão estragado, falava entre dentes. — Ela disse que é Heloísa. Com h.
— Humm! Com h?
— É... Com h.
— Grande coisa... — Decidida a nunca dar uma palavra àquela metida, minada e bem feia, Amanda prometeu que nunca voltaria a olhar o rosto da tal Heloísa com h, contudo, antes daquele verão acabar, as duas já eram melhores amigas. Ela encarou o dedo de Pedrinho, lavado em sangue, e sorriu. — Tá doendo?
Vielen Dank für das Lesen!
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