MEU CORAÇÃO AINDA ESTAVA PRESTES a escapar do peito quando abandonei o palco naquela madrugada de sábado; eu ouvia a plateia gritando meu nome e, pela primeira vez, o nome do segundo responsável por aquele momento libertador. Era o lançamento do meu terceiro e último álbum, Asas, e a noite mais importante de minha carreira. Mesmo antes de seu sucesso comercial, eu já sabia que aquele projeto mudaria nossa vida. Tudo que eu precisava fazer era concretizá-lo, e ali estava eu, inteiramente realizado.
Cambaleei entre os membros da equipe que me parabenizavam e senti meu rosto doer; eu não conseguia parar de sorrir desde que cantei a última música do show. Quando notei uma dúzia de jornalistas aguardando minha saída com seus pequenos microfones e suas grandes câmeras, desejei atender aos pedidos do público e ferver suas almas com música por mais tempo; era muito mais simples enfrentar centenas ou até milhares de pessoas que amavam meu trabalho. Imaginei Ícaro saindo do palco pelo lado oposto e se esforçando em uma correria alucinante para escapar da imprensa. Não fazia ideia se o cenário imaginado por mim se concretizara, mas não poderia negar que era do feitio de meu filho.
— Dédalo! Podemos fazer algumas perguntas? — indagou o jornalista mais próximo da fileira de seguranças.
— Essa foi a primeira — eu disse enquanto ignorava as bochechas doloridas e alargava ainda mais o sorriso. — Temos alguns minutos.
— Qual é sua expectativa para o novo álbum?
O novo álbum era minha liberdade. Obviamente, eu não poderia revelar meus conflitos internos mais intensos e secretos à imprensa oportunista; o que realmente esperavam ouvir é que eu desejava nadar em oceanos de dinheiro ou receber a aclamação da crítica especializada. Eu poderia alugar aquele microfone por horas se decidisse discutir minha carreira paradoxal: mesmo me livrando da vida empobrecida que atormentava a mim e ao meu filho, a música também fora minha prisão. A consciência valiosa dos anseios do público e da expectativa da imprensa me enriquecera, mas me conectar tanto às necessidades de terceiros limitara minha criatividade durante meus oito anos de carreira.
O projeto criado por mim e por Ícaro mudava minha realidade confinada drasticamente; pela primeira vez, eu adotava melodias que se originavam em meu íntimo e cantava letras que tratavam de assuntos reais e pessoais. Após tanto tempo trancafiado em minha zona de conforto, assumir uma nova identidade artística me soava perigoso, mas eu precisava me libertar. Por quanto tempo mais eu aguentaria dançar conforme uma música que não era minha? Qual seria o limite de minha sanidade ao ser confrontada com uma vida sob o domínio da notoriedade? Sem dúvidas, eu não estava disposto a descobrir a extensão de minha perseverança. Era a hora de alcançar novas alturas, longe daquele maldito labirinto construído pela fama.
Entre dois dos seguranças que me separavam das equipes jornalísticas, enfiei as mãos no bolso da calça jeans rasgada e me estiquei para falar perto do microfone.
— Espero que meus fãs se identifiquem com essa nova fase da minha carreira e que o álbum mereça o reconhecimento dos críticos.
— Qual foi o papel de Ícaro no desenvolvimento do projeto? — Uma jornalista que havia se espremido entre seus companheiros para me alcançar se responsabilizou pela nova rodada de perguntas.
A colaboração de meu filho fora essencial: seu frescor juvenil e sua ferocidade ansiosa foram os últimos ingredientes daquela receita de liberdade. Ícaro encarava a oportunidade como uma salvação tanto quanto eu; enquanto eu estava perdido na inevitabilidade da fama, ele permanecia capturado em minha sombra, sempre ligado à promessa de alcançar o mesmo sucesso que eu havia conquistado. Todavia, nossos triunfos recentes influenciavam a mente ambiciosa e sonhadora de Ícaro. Meu filho passara madrugadas inteiras trabalhando em nosso álbum; se afundava em remédios e, de acordo com minhas suspeitas, drogas que o estimulavam cada vez mais.
— O álbum não existiria sem a participação dele. — Protegi meu rosto instintivamente com o antebraço ao quase ser cegado por um dos flashes mais próximos. — Só recebemos esse calor maravilhoso do público na estreia de um álbum quando nosso trabalho os impacta verdadeiramente. Asas é exatamente sobre isso: a relação de pai e filho, com todas as suas bençãos e maldições.
— Como você se sente agora? — A pergunta de um terceiro jornalista se sobressaiu sobre as demais por ser exceção entre mais do mesmo.
Por mais que eu soubesse que deveria estar feliz, esse não era o caso. Enquanto eu ocupava o palco com Ícaro e levava a multidão ao delírio, euforia e júbilo extremos comandavam meu espírito; entretanto, como eu bem sabia, bastava refletir sobre minha trajetória até então para que qualquer orgulho ou satisfação se esvaísse. Não havia nada a ser feito: meu contentamento genuíno e duradouro não dependia de trabalho, dinheiro, fama ou conforto. Apesar de me orgulhar do quanto era próximo de Ícaro, meus infortúnios familiares iam além de meu filho; a impossibilidade que envolvia minha felicidade advinha de um erro que cometi no passado distante e que para sempre me assombraria.
Após o início meteórico de minha carreira, quando Ícaro ainda era uma criança traumatizada pelo abandono da mãe, eu deixei de ser o único da família a se aventurar pelo mundo da música. Recordo-me de receber uma ligação entusiasmada de minha irmã e de aceitar seu pedido inusitado: ser o mentor de Pedro, meu sobrinho, em sua busca pelo reconhecimento de seu talento musical. Excepcionalmente criativo e engenhoso, Pedro insistia em focar sua arte em experiências próprias, ignorando as tendências do mercado e a expectativa de seus poucos fãs. Apesar de reconhecer sua aptidão para a música, me enfureci ao testemunhar sua rápida ascensão; obter sucesso através de obras tão intimistas era algo inimaginável para mim naquela época.
Como aquele rapaz inexperiente conseguira se destacar tanto quanto eu? Tomado pelo orgulho, marquei todas as reuniões disponíveis e enterrei sua carreira musical antes que ela decolasse de fato. Minha decisão fora tomada em segredo, evidentemente, mas minha irmã me conhecia o suficiente para deduzir de quem partira aquela ordem; portanto, eu e minha família nunca mais nos vimos. Condenado a carregar a culpa pela morte precoce do futuro artístico de Pedro, sentia-me como Atlas, o titã que sustentava os céus nos ombros como castigo de Zeus. Minha transgressão se tornava ainda mais mordaz ali, enquanto eu usufruía dos benefícios de incorporar meu âmago em minha arte.
— Impossível estar mais feliz — eu disse enquanto meu sorriso enfraquecia.
Subitamente afligido pelo céu imposto aos meus ombros, me afastei dos jornalistas e segui o caminho curto até o camarim em passos nervosos. Fechei a porta atrás de mim e respirei fundo, tão aliviado quanto meus olhos, que finalmente estavam a salvo dos flashes insistentes da imprensa. O camarim era um cômodo vasto, com uma fileira de três espelhos, mesa redonda com aperitivos já gelados e poltronas confortáveis espalhadas pelas quatro paredes. Meu alívio foi interrompido quando percebi a presença de meu empresário; o sujeito estava sentado em uma das poltronas, a camisa social desabotoada e um dry martini na mão direita. Provavelmente alarmado por meu semblante exausto, ele se levantou de imediato e pigarreou baixo.
— Esse é o lançamento perfeito pro álbum. Ótimo show — disse ele.
A falsa expressão de satisfação do homem não me enganou nem por um segundo. Certamente estava orgulhoso de nosso progresso, ainda que fosse contrário à ideia de explorar assuntos tão íntimos, mas algo ocupava sua mente e tornava sua preocupação evidente. Ele evitava meu olhar e parecia buscar as palavras certas para me oferecer; sem tempo para hesitações, me aproximei e segurei seus ombros para obrigá-lo a me encarar.
— Diga o que precisa dizer.
— Estou preocupado com Ícaro. — Ele tomou um gole do coquetel antes de continuar. — Ele foi para o hotel com um grupo de fãs. Não parecia sóbrio.
Sem aguardar nenhuma outra palavra do homem, me retirei do camarim com pressa e, acompanhado por um dos seguranças, segui para o estacionamento da arena que abrigara meu espetáculo. Como aquele garoto irresponsável pôde se reunir com fãs no hotel em que estávamos hospedados? Eu esperava mais maturidade aos seus dezoito anos, mesmo com seu estilo de vida naturalmente boêmio. Em uma viagem de aproximadamente cinco minutos, parti para o hotel com o segurança no volante e o pensamento tomado pelas repreensões que eu derramaria sobre meu filho.
Enquanto o carro atravessava as ruas com a velocidade que minha urgência demandava, minha última conversa com Ícaro antes do show explodiu em minha mente como o pior dos maus agouros. Sempre vigilante, eu observara seus movimentos incertos e sua agitação imoderada e tentara fazer com que ele entendesse uma verdade incontestável: quanto maior o salto, maior a queda. Ainda que nossa liberdade fizesse com que voássemos alto, nunca poderíamos nos aproximar demais do sol. O sucesso e a fama traziam dinheiro, sexo e os prazeres carnais mais cobiçados por qualquer jovem daquela idade; entretanto, do que serviria a independência se seus regalos abundantes o confinariam em outras prisões e causariam sua ruína?
Meu corpo se tornou gelo e meu coração quase bateu até parar quando notei as ambulâncias na frente do hotel. Abandonei o veículo assim que o segurança estacionou; corri para o interior do hotel empurrando fãs seminuas, policiais nervosos e os malditos curiosos. A recepcionista me encarava com pesar conforme eu cruzava o salão de entrada e, seguindo o fluxo de paramédicos, alcançava a área externa do local. Lá estava ele, a pele branca mais pálida do que o normal, os cachos escuros abandonados no mármore molhado e o corpo tão frágil se agitando a cada tentativa de reanimação. Me aproximei aos poucos, sentia as lágrimas preencherem minha visão e a tornarem turva, mas consegui identificar a impotência na face do paramédico. Não havia nada a ser feito.
Antes do desespero causado pela morte de Ícaro me dominar, olhei aos céus e vi o parapeito da varanda de seu quarto destruído; aquele era meu castigo final. Meus erros passados inundaram minha mente e a percepção de um fato mórbido se fez presente: meu filho morrera na noite em que alcançamos a liberdade que tanto almejávamos. Minha desolação se tornava ainda mais dolorosa pela consciência de que condenei meu filho à maior das quedas ao tentar nos libertar das amarras que eu mesmo havia criado.
O relatório médico final concluiu que, apesar da causa da morte oficial ter sido o afogamento na piscina do hotel, sua queda fora causada por uma overdose. Sofrendo os efeitos imediatos de seus exageros, Ícaro quebrou o parapeito ao alçar seu voo mais alto e despencar para seu fim nas águas geladas de um hotel de luxo. Enquanto eu concedia entrevistas e me oferecia a opulência de desfrutar do reconhecimento público, meu filho preenchia seu organismo com as drogas que o mataram e permitia que seu ímpeto imaturo o destruísse. Aquela culpa e tantas outras se acumulavam em meu peito e me corroíam por dentro. Era impossível não sentir o céu pesar ainda mais em meus ombros.
Vielen Dank für das Lesen!
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