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Pedro Brandão


Uma sátira policial que acompanha um sargento e dois soldados aprendizes pelas ruas de Salvador.


Kurzgeschichten Nicht für Kinder unter 13 Jahren.

#389 #contos #literatura-brasileira #cotidiano
Kurzgeschichte
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Enquadramento de Rotina

Os três policiais descansavam do almoço na sala do delegado. O sargento Lopes, com as pernas exageradamente abertas, sentava-se na ponta do velho sofá de corino vermelho ressecado, enquanto palitava os dentes distraidamente fazia uns quinze minutos. Era o mesmo tempo em que o tenente Santana falava sem parar, contando histórias exageradas do tempo em que fazia a escolta do secretário de segurança.

- Eles deram a volta no porto com a moto. Eu já sabia que ia ter alguma coisa.- falava o tenente num tom austero, alisando o grande bigode preto com o polegar o indicador – Mandei mensagem pro secretário dizendo pra não sair da agencia que tinha uma movimentação suspeita. – a animação o fazia movimentar os braços incessantemente como se revivesse a adrenalina do momento. – Pedi pra o motorista dá uma volta com carro, fui pra entrada do banco e ascendi um cigarro. Quando o sujeito da garupa desceu, eu vi ele tocar alguma coisa cromada na cintura. Não contei conversa... Saquei a pistola e “pei”,”pei”,”pei”. – os outros policiais na sala acompanhavam atentos, inclusive o delegado. – O maluco caiu no chão, o outro se embolou com a moto, levantou e partiu correndo. Ainda fui atrás dele mas o sacana conseguiu fugir. – Falava o policial gesticulando um movimento de corrida. – Foi naquela rotatória ali em frente à ladeira da Barra, sabe? – “Sim, onde tem uma livraria?”, perguntou alguém da plateia. – Sim! Um sebo! – Continuou o tenente aprovando a atenção do colega – Ainda dei mais dois tiros. – Fez uma pausa como se tivesse encerrado - Deixou a moto lá no chão. – Sorriu com sarcasmo.

Essa hora o soldado Silva acompanhado do soldado Moraes bateu na porta entreaberta. Eram novatos da carreira policial.

- Sargento – disse Silva para Lopes – Tá na hora da patrulha.

Sargento Lopes levantou do sofá espreguiçando e bocejando sua curiosidade.

- E o outro, tenente, morreu?

- Rapaz, ficou no chão estirado. – continuou o narrador – Não tinha morrido ainda não, morreu no hospital. – Ajeitava as calças na cintura com as duas mãos, estufando o peito e curvando a coluna para trás, transparecendo o ar orgulhoso de dever comprido.

- E o secretário? – Perguntou o delegado.

- É aquela história... eu sempre dizia pra ele deixar esse negócio de banco pra outras pessoas, tem assessor pra que? Ainda mais dinheiro alto. – Agora ostentava os bons conselhos num tom ainda atravessado pela soberba.

O escrivão que acompanhava tudo de pé, encostado na parede ao lado da porta com um copo de água na mão finalmente se manifestou.

- É, deu mole. – Retomando a postura e seguindo em direção a sua mesa para reiniciar os trabalhos do turno da tarde.

-Me agradeceu depois. - Perdeu-se num olhar vago sobre a mesa do delegado cheia de papéis – Acabou o mandato e me chamaram de volta pra cá. – Lamentou

Seguindo o exemplo do escrivão, endireitou-se na cadeira o delegado para checar o computador. O sargento Lopes catava seus pertences para seguir em companhia dos soldados Silva e Moraes. O tenente, gozava dos últimos instantes heroicos que aquela história lhe conferia e logo se pôs a procurar o que fazer.

Estava inaugurado o turno vespertino e gradativamente a maresia de pós-almoço cedia espaço á inquietação típica da décima vigésima trigésima... companhia de policia militar do bairro de..., em Salvador. As viaturas estacionadas à porta iam saindo uma por uma. O entra e sai de pessoas prestando queixa, boletins de ocorrências, denúncias... ressuscitavam o ambiente naquele horário diariamente.

Eram duas horas da tarde quando o grupo de três policias saiu para iniciar a patrulha ostensiva a pé pelo bairro. Uma função que nem todos os PM’s gostavam de fazer. A maioria, principalmente naquela companhia, a exemplo do tenente Santana, parecia mais inclinada às tarefas de herói: perseguições, enquadramentos, tapas cara... tudo que pudessem ostentar e ganhar, com uma arma e um cassetete na cintura, o jogo lunático da autoridade. Os iniciantes, no entanto, deveriam passar pelo patrulhamento a pé numa espécie de trote, onde aprenderiam a enxergar o mundo como um policial. Era o caso dos soldados Silva e Moraes que estavam no primeiro mês de polícia e eram assistidos numa espécie de tutoria pelo sargento Lopes.

Seguiam os três entrecortando as ruas do bairro no mesmo roteiro que faziam todos os dias. Seguiriam para a avenida principal e fariam a volta no final de linha. Entrariam na rua do colégio estadual e descansariam por trintas minutos ali em frente, se tudo ocorresse bem, prenderiam alguém. Depois, umas cinco horas da tarde, no cachorro quente, celebrariam mais um dia de trabalho. Era uma rotina disciplinadamente cumprida e as conversas sempre giravam em torno dos mesmos assuntos. Faltava intimidade entre os três, ou melhor, entre os dois soldados e o sargento.

“Coibir a criminalidade.” era a palavra de ordem, mesmo que não estivesse tão claro para os novatos o que seria coibir a criminalidade. Seria acabar com a criminalidade ou coagir os criminosos a cometer criminalidades? Uma frase tão vaga quanto “instaurar a paz no mundo”. Era uma pergunta que nem o sargento Lopes calava tranquilo na consciência. Aprenderiam com o mestre, ao longo dos meses, que “coibir a criminalidade” estava mais para “dar um jeito na criminalidade”, e com uma arma na mão e um cassetete na cintura têm-se boas ferramentas para dar um jeito em quase tudo, inclusive, “na criminalidade”. Inaugurando uma tentativa de aproximação, o sargento voltou-se para os rapazes enquanto passavam em frente a um mercado no final de linha do bairro.

- Possuem alguma formação? – perguntou

- Filosofia. – respondeu Moraes que arrancou um olhar súbito de surpresa do superior.

- É formado? – prosseguiu o sargento na investigação realmente surpreso.

O soldado confirmou com a cabeça.

- Estou cursando Direito. – foi a vez de Silva impressionar. – Quero fazer o concurso pra oficial.

- Direito é um bom curso pra pegar a manha... – orientou Lopes, conhecedor das dificuldades e dos atalhos da carreira policial. – Eu tranquei Direito no quinto semestre porque...

A comitiva interrompeu o assunto quando, em meio a uma correria, ouviram gritos frente a uma loja. O faro treinado do sargento o fez correr em direção à confusão e imediatamente, usando seus instintos policiais para compreender rapidamente o que acontecia, sacou sua pistola e apontou para um rapaz caído no chão sem a cabeça. Averiguou a cor da pele, endureceu a voz e perguntou:

- Cidadão, onde está a sua cabeça?

Alguns segundos se passaram e, sabe-se lá como, o garoto respondeu:

- Senhor, estou sangrando muito!

Pela voz e pela conveniência julgaram que aquele corpo devia ter dezoito anos. O policial se impacientou e repetiu ainda mais alto.

- Onde está a sua cabeça?

- O segurança da loja arrancou, senhor.

Os dois soldados acompanhavam tudo como se estivessem diante de uma aula, atentos à situação para não perderem absolutamente nada daquele aprendizado. Se pudessem, certamente anotariam, mas as mãos estavam ocupadas segurando suas pistolas que apontavam para o menino sem cabeça caído no chão.

- Documento, por favor, cidadão. – Disse Lopes com toda sua experiência e seguindo o protocolo da abordagem policial.

- Senhor... – O descabeçado garoto tentou dizer alguma coisa, mas o coturno que o sargento lhe apoiava às costas pressionou-lhe ainda mais contra o asfalto quente.

Os jovens aprendizes, a comando do mestre, caçaram pelos bolsos do suspeito os documentos. Encontraram uma carteira puída, furada. Tiraram a identidade e mais cinco reais que usariam para o cachorro-quente depois da exitosa operação. O sargento examinou rapidamente e disse.

- É, mas aqui você está com a cabeça. Assim fica difícil, cidadão. – Para um ouvido destreinado, parecia que o policial lamentava não poder ajudar o garoto que perdera a cabeça para dificultar a sua identificação. – Assim você não colabora. Tem passagem? – perguntou ele.

- Não, senhor. Eu só prec...

- Tem alguma coisa ai com você? – O policial investigava.

- Não senhor.

- Se eu achar algum flagrante a coisa não vai ser boa pra você, cidadão, é melhor dizer logo. – Mais uma vez parecia que o policial só queria ajudar.

- Não tenho nada, senhor. – Disse o jovem irredutível.

Nesse momento o mestre fez um gesto com a cabeça na intenção dos pupilos, que já estavam bastante treinados em alguns procedimentos padrões, que levantaram o corpo para revista policial que seguiria. Em Salvador, conhecida como baculejo. Em volta, já tinham alguns curiosos tirando foto, mas a maioria, na verdade, estava filmando. Se demorasse um pouco mais, alguma emissora de televisão certamente chegaria. Aquele era o justo horário em que repórteres saiam pela cidade atrás do cheiro de meninos sem cabeça. Afastaram-lhe as pernas com o rigor padrão e a revista fora feita. Encontraram um papel amassado no bolso que o sargento leu, desinteressou-se, amassou novamente para deixar do jeito que encontrou e atirou no chão.

- Pra delegacia. – Disse ele.

Os outros dois assentiram com a cabeça como se já esperassem que fossem pra delegacia, afinal, era o próximo passo da operação.

Fizeram uma chamada pelo rádio e logo uma viatura chegou para levá-los. Dois policiais, o motorista de óculos escuro, mascando seu chiclete e com um dos braços esticados ao volante num silêncio que dizia “eu sou o policial que dirige”; e outro pançudo e meio careca que desceu do veículo ajeitando as calças sobre as pernas finas, apenas para olhar o tal do meliante. Colocaram o rapaz no fundo do carro e sentaram os três, sargento Lopes, soldado Silva e soldado Moraes no banco de trás. O habilidoso motorista acelerou mostrando toda a potência do motor enquanto ligava o giroflex e dava uma chamada na sirene. “Fom”. A polícia estava em ação.

Na delegacia sentaram o jovem sem cabeça num banco de madeira diferente dos bancos da recepção, em uma salinha mal iluminada aos fundos. Pediram para o secretário puxar o documento do rapaz e o secretário numa disposição típica dos secretários das delegacias disse numa voz anasalada.

- Mas como vou saber se realmente é ele se não tem cabeça?

Lopes sabia que isso realmente era um problema e coçou a cabeça impaciente. Chamou o escrivão para consultar qual seria o procedimento adequado nesse caso. Ele não podia fazer feio frente aos seus dedicados aprendizes. O escrivão disse que sendo assim precisaria das digitais, mas o delegado teria que expedir um ofício junto à autoridade certificadora de digitais, mas que o requerente precisaria ter feito o cadastramento biométrico do titulo de eleitor. O sargento orgulhoso de compreender tão bem aquela complexa burocracia, não perdeu a oportunidade de mostrar para os seus soldados que a teoria era tão importante quanto a prática. Voltou para falar com o detido.

- Senhor, eu não tenho titulo de eleitor. Tenho doze anos e só posso...

- Mas você complica o tempo todo, cidadão. – Irritou-se e saiu da sala para consultar diretamente o delegado.

Bateu na porta e este estava no final de uma gargalhada, limpando os olhos umedecidos de tanto rir, todo vermelho. Estava na presença do escrivão e do tenente Santana que também riam de alguma piada que o sargento lamentou ter perdido.

- Estou ocupado agora, Sargento. Daqui a uma hora resolvo isso para você.

O sargento obediente fechou a porta e ainda pode ouvir o delegado perguntar entre novas gargalhadas.

- Mas o cara se mijou de verdade, tenente?

Voltou para a sala onde estavam os soldados Silva e Moraes observando o menino. Passou uma hora, duas, três... até que o delegado cruzou pela porta da salinha com um sobretudo pendurado nos ombros e carregando sua pasta preta de couro. Como quem se lembrava subitamente de algo, voltou com as mãos na cabeça.

- Sargento, esqueci completamente. Acabei enrolado com uns assuntos de uma viatura que deu perda total hoje numa perseguição. – Enxugou o suor da testa. – Vou ter que fazer um ofício requisitando um carro novo. – Assoprou pensando na papelada que o esperava. – Amanhã a gente vê isso, tá certo? – Deu um tapinha no ombro do policial e saiu.

Estava encerrado o expediente. Lopes desalgemou o menino e deixou ele ir embora.

- Se safou dessa vez, pilantra.

“Se safou... se safou de que?” provavelmente pensou o soldado Moraes, mas não teria a ousadia de perguntar. Ele compreenderia, mais cedo ou mais tarde, essas coisas que ainda lhe confundiam, afinal, estava treinando para isso. O soldado Silva acompanhou apreensivo com os olhos, e a mão na pistola, a cambaleante figura sem cabeça andar pela calçada até perder-se numa curva. Achou até que o viu tombar e cair no chão, preocupado perguntou:

- Mas senhor, assim ele pode fugir, não?

O sargento virou para o soldado, deu-lhe um tapinha nos ombros e disse.

- Eles sempre voltam, soldado.

E seguiram os três para comer cachorro quente depois de mais um dia produtivo daquela cansativa e heroica rotina policial.

1. Juni 2020 22:45 0 Bericht Einbetten Follow einer Story
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Das Ende

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