"Monstros são reais, e fantasmas também. Eles vivem dentro de nós e, às vezes, eles vencem." — Stephen King
Bem no centro daquela região inóspita e lúgubre, de céu plúmbeo e nuvens vermelhas, existe um lago de água cristalina, onde às margens estremecem lírios alvos à mais singela das brisas.
Todos conhecem aquela região e aquele lago, mas poucos se atrevem a ali chegar, mesmo que o caminho seja o mais curto existente em qualquer mapa, de qualquer mundo.
Foi depois do estremecer de uma das flores que um jovem humano se encontrou por aquelas bandas. Esbelto e de olhos brilhantes, o peito vasto e cheio de alegrias, não compreendia como aquele lugar podia ser tão feio e vazio se no seu interior só existia luz e amor. Afinal, o mundo não é um reflexo de nós mesmos?
Ele sorriu gentilmente e estalou a língua, algo não estava certo. E como esse lago maravilhoso de água brilhante existia perene num lugar tão hostil? Como essas flores divinas brotavam por ali, quando tudo o mais parecia sem vida? Abaixando-se sobre o lago para beber um pouco d’água e aliviar a garganta seca, ele afastou uma mecha dos cabelos que lhe caíram sobre os olhos.
Sua mão parou a poucos milímetros da água limpa quando ele encarou seu reflexo e abriu um sorriso. Foi tocando de leve com o dedo os contornos do seu rosto. A cada toque na água, ele sentia um acariciar no próprio rosto, como um beijo das brisas farfalhantes. A cada toque ia se recordando de sua vida, dos caminhos por que caminhou, das escolhas que escolheu, das palavras que palavreou. A cada toque na água pura, o jovem humano se tocava docilmente, quase em torpor. E a cada toque chegava cada vez mais perto do que seus olhos se recusavam a enxergar, pois que, a cada toque, recordava-se dos erros que errou.
Erros. Erros. Erros.
Seu âmago estremeceu diante daquilo. No fundo, bem no fundo, não queria chegar ali. Melhor fechar os olhos para não mais enxergar, melhor afastar a mão para não mais tocar.
Mas as águas cristalinas eram mágicas, diziam alguns, eram demoníacas, diziam outros. E o jovem humano não pôde fazer nem um nem outro. Seus lábios ressequidos entreabriram-se e seu coração perdeu o compasso ao ver as águas do lago se remexerem. Algumas bolhas surgiram lá debaixo e o borbulhar aumentava ao escancarar de seus olhos.
O corpo petrificado ouviu temeroso a voz vinda do lago:
– Quem sou eu?
Uma charada? – pensou.
– Quem sou eu?
– Quem é você?! – desejou gritar.
– Quem sou eu? – repetiram as bolhas.
Os olhos marejados do jovem humano viram a água se aproximar lentamente, até que ele caiu no lago.
As águas cristalinas lambiam todo o seu corpo e as bolhas faziam-lhe cócegas. Ele quase se esqueceu do seu medo de há pouco, embebido que estava por aquele prazer líquido. E tomando isso por brecha, as bolhas acariciantes foram levando-o para mais fundo no lago.
– Quem sou eu?
A água limpa, tornava-se densa e escura com o nadar profundo das bolhas. O jovem humano sentiu que caíra numa armadilha ao notar que não conseguia afastar-se das bolhas falantes. Seus braços e pernas batiam e espanavam pela água suja e lodosa, algas negras e pegajosas agarravam-se nele sem qualquer cuidado. Sua boca se escancarou num grito mudo quando uma das longas algas cercou-lhe o pescoço, tal qual um colar de sombrio presságio.
– Quem sou eu?
Exigiam saber as bolhas.
– Quem sou eu?
Com olhos cerrados de medo, ele balançava a cabeça e tentava se afastar das algas e das bolhas, das águas negras profundas e do lago. O lago! Ele tinha que sair daquele lago! Era de fato um lago demoníaco que se travestia de divino!
E a esse pensamento, as bolhas falaram mais e mais alto, as algas o puxaram para mais e mais fundo. Novamente seus lábios se escancararam.
– QUEM SOU EU?!
O jovem sentiu seu coração batendo mais devagar, e algumas lágrimas misturaram-se às águas do lago. Seus braços e pernas deixaram de se debater. O ribombar do seu coração passou a tocar uma velha melodia que ele achava não existir mais dentro dele: erros...erros...erros...erros...
Àquelas notas melancólicas, as algas foram se acercando de cada pedacinho de carne macia, e as bolhas foram levando o corpo para o fundo do lago frio, enquanto elas repetiam suavemente em seus ouvidos:
– Quem sou eu? quem sou eu? quem sou eu? quem sou eu?
Para quem olhasse o lago de água cristalina cercado de alvos lírios que vivia naquela região inóspita e lúgubre, de céu plúmbeo e nuvens vermelhas, talvez sentisse uma certa paz. Pois que do espelho que era a água, nenhum estremecer se via.
A não ser que seus ouvidos capitassem:
Quem sou eu?
Vielen Dank für das Lesen!
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