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Neste livro, Lima Barreto se mostra por inteiro, nos seus ressentimentos e idiossincrasias, na sua reconhecida preocupação social, nas farpas e ironias políticas, na vida pessoal infeliz, na preocupação com a situação precária do negro na Primeira República


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CAPITULO 1

“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça; porque serão satisfeitos.” Evangelho de São Mateus. Cap. 5, v. 6.

Pues ¿de qué suerte los piensas honrar? preguntó el caballero. Con mis estudios respondió el muchacho —, siendo famoso por ellos; porque yo he oído decir que de los hombres se hacen los obispos.”

El licenciado Vídriera , Cervantes.


1900

2 de julho


Quando comecei a escrever este,

uma “esperança” pousou.


CAPITULO 1


A antipatia do Largo de São Francisco fica mais acentuada nas primeiras horas da manhã, dos dias de verão. O Sol o cobre inteiramente e se espadana por ele todo com a violência de um flagelo. Pelo ar, a poeira forma uma película vítrea que fulgura ao olhar, e do solo, com o revérbero, sobe um bafio de forja que oprime os transeuntes. Não há por toda a praça uma nesga de sombra, e as pessoas que saltam dos bondes, caminham apressadamente para a doçura amiga da Rua do Ouvidor. Vão angustiadas, e opressas, parecendo tangidas por ocultos carrascos impiedosos. Os negros chapéus-de-sol dos homens e as pintalgadas sombrinhas das senhoras, ao balanço da marcha, sobem e descem como se flutuassem ao sabor das ondulações de um curso d’água. São como flores, grandes flores, nenúfares e ninféias, estranhas e caprichosas, que recurvassem as imensas pétalas ao Sol causticante das nove horas da manhã. A superfície lisa da fachada da Politécnica é o espelho, onde se refletem e concentram os raios do sol que quer o Largo vazio; e o trânsito se faz para e da Rua do Ouvidor, segundo dois recurvados filetes que terminam num e noutro lado daquela fachada. À violência do Sol nada resiste. O granito da portaria da igreja de São Francisco parece estalar. Os tílburis em fileira ao centro da praça rebrilham como ágatas e as suas pilecas, a aquele calor, dormem resignadamente. De quando em quando, por entre a fileira dos tílburis, um rapazola atravessa e lépido sobe as escadas da Escola Politécnica. São os únicos transeuntes que se lançam pela praça corajosamente. As aulas começam às dez horas e eles vêm vindo meia hora antes, em pleno suplício. No começo do ano é bom de ver o pátio central por essa hora. Os novos e os velhos, os crônicos e os distintos, encontram-se e põem-se a esgrimir espiritualmente, procurando cada qual dizer as mais maravilhosas coisas. Alunos há que só aparecem na Escola durante o primeiro mês; depois, vão-se e só voltam pelo começo do ano seguinte, para conversar, discutir e “trepar”. “Trepar” é um dos prazeres mais estimados entre os rapazes. Guarda-se, até, a tradição dos bons “trepadores”.

Você não conheceu o Bolsel, Costa?

— Como não? Muito!

Que trepador, hein?

Chi! Era feroz.

E os novatos arregalam muito os olhos e ficam em segredo desejando mais aquela glória do que os prêmios burocráticos que o regulamento promete.

“Trepar” é uma variante da maledicência nacional; mas enquanto esta, em geral, traduza sempre uma pontinha de ódio latente, a “trepação” se faz sem razão e sem causa. É um prazer, uma ginástica intelectual, uma satisfação do espírito, unicamente exigida pelo feitio mental dos rapazes e nunca provocada por qualquer ato da vítima. “Trepa-se” à toa, nos amigos, nos inimigos, nos indiferentes, nos vivos e nos mortos, em tudo e em todos.

Nos primeiros dias do ano letivo é que a trepação recrudesce. As reprovações, as desilusões nos exames e, sobretudo, a inocente vaidade dos antigos, em aparecer sobre-humanos aos novos, desenvolvem o humor agressivo dos rapazes.

— Que tal o visconde, hein?

— ? ?

Vai publicar uma nova edição da Geodésia...

É certo?

É; mas tirou aquele pedacinho “em terras como a nossa onde não há palmeiras”...

Em compensação, indaga um outro, continuará a aconselhar que os burros não podem carregar os instrumentos de precisão, pois lhes falta delicadeza para isso?

A roda ri-se muito e um outro conta que o Santiago, o lente de Canais, não se “aperta”. Começa em Canais, continua por Cinemática, põe Geodésia, mistura Máquinas e acaba em Canais. É um gênio!

De repente, a trepação, que ia viva, descamba para a ópera italiana. A conversa se generaliza e todos se possuem de paixão. Não há que admirar: a ópera lírica é a mais alta expressão da estesia dos nossos estudantes; no meio do ano, pela quadra própria, ela os absorve completamente. Fora da ópera, mesmo na música, para a sensibilidade deles não há arte...

Há ocasiões, porém, que a conversa passa da “trepação” e do “lírico”, para as questões de metafísica matemática. Toda a gente é iniciada nela. Há questões gerais que acirram as inteligências de todos; outras há, contudo, que só interessam os alunos de um dado ano e de uma certa cadeira. A questão se “du” pode ser substituído por “su” pertence à cadeira de Mecânica, mas os problemas das geometrias agita toda a Escola. Os paradoxais (sempre os há entre rapazes) deixam se arrastar pelo vôo doirado da segunda verdade; e gostam de levar, à candura dos positivistas, dúvidas sobre a existência de uma única geometria. Discutem a questão do espaço, uma forma subjetiva da nossa intuição, independente de toda e qualquer experiência, misturam a convenção dos postulados; e, com um esforço de filosofar risível, concluem que é uma ciência apriorística, e o mundo bastante plástico, para se curvar a qualquer uma e a todas que se queira inventar.

Os positivistas são inflexíveis. Contrapõem, à dialética dos metafísicos, algumas fórmulas esotéricas da doutrina, e declamam contra a anarquia mental e os sofistas anti-sociais. Há porém os euclidianos ortodoxos, positivistas ou não, que, por vezes, se opõem com vantagem aos paradoxais impetuosos.

Quando se contempla iluminados pelo Sol vitorioso de março, que esbraseia as telhas do edifício e vem dar, aos descorados arbustos do jardinzito do pátio, um beijo escaldante de vida quando se contempla aquela porção de rapazes, cujas inteligências moças ainda, no indivíduo e na raça, agitam-se tumultuáriamente ao influxo da filosofia européia, surge-nos aquela quadra espiritual da Europa pelo XII século, quando chegou às suas universidades a Enciclopédiade Aristóteles traduzida. As palavras com que Taine nos dá esse quadro remoto, poderiam ser empregadas para descrever este contemporâneo. É com a mesma sofreguidão, é com a mesma teima sombria, é com o mesmo tropel bárbaro que aqueles moços invadem, tomam de assalto, e varam as muralhas das difíceis abstrações e das fugitivas filigranas da metafísica européia. Talvez, como no XII século, daquele trabalho encarniçado, nenhuma idéia nova se venha juntar ao patrimônio humano.

Será, quiçá, um obscuro trabalho de disciplina mental, a que a raça infante se impõe para aproveitar quando adulta.


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No começo desse ano, pelo meado de março, ainda funcionavam algumas mesas de exames; as aulas, contudo, já estavam abertas e seguiam o trilho do horário. Como no início dos anos anteriores, os bancos do pátio estiveram povoados até às dez horas, tempo em que a maioria retirara-se para assistir as preleções. Um grupo pequeno ficara. Conheciam já a matéria das primeiras aulas para que ir?

Fernando Amoreira, que estava em estado de graça como ele dizia durante a manhã toda, continuava a expandir a sua verve. Sob o olhar desdenhoso de Osvaldo Litichart de Guimarães, rapaz do Norte, que na prosápia contava como antecedente um general holandês do tempo da ocupação, Fernando Amoreira discorria desembaraçadamente, de pé, com a mão esquerda no bolso da calça e a direita agitando o cigarro aceso. Osvaldo quase não sorria, a roda, porém, ria-se a bom rir das coisas do Fernando. O seu temperamento singular fazia as delícias dos colegas. Nada o alterava, nem mesmo as reprovações. Ria-se sempre dos acontecimentos e imaginava uma teoria risonha para justificá-los. Ninguém como ele seguia as nuances de uma idéia, ninguém como ele buscava com tanto afinco a contradição entre duas opiniões respeitáveis; por isso, quando lhe caiu em mãos aquele sutil livro de Poincaré, La Science et 1’ Hypothése, todo ele vibrou satisfeito, ébrio de contentamento podia duvidar também da geometria! Era um espírito livre e solto, desapegado de todas as certezas, inclusive a científica. Para nós, era uma espécie de Chamfort, de Rivarol; para outros, um palhaço com uma graça difícil e meditada. Seu prazer era conversar. Vivia a palestrar, durante o dia, nos corredores da Escola; à tarde, nos cafés.

Hoje, tive uma idéia.

Qual foi, Fernando?

Se as coisas continuam nesse caminho, respondeu ele indiretamente, dentro de dois séculos o estudo da geometria terá alguma coisa de parecido com a compra de fitas.

Como?

Eu explico. Você quer comprar fitas e vai à casa de armarinho. O caixeiro pergunta: “De que quer, de seda, de gorgorão, ou... . ?” Você responde: “De chamalote”. “De que cor?” “Azul”, responderá você. Dentro de dois séculos, o pai leva o filho ao professor de geometria. Este pergunta a aquele: “Que espécie de geometria quer que eu ensine? A euclidiana, a russa, a de Riemann...?” O pai pensa um pouco e diz: “A melhor”. “Todas são boas”, retruca o professor, “pois todas são certas”. “Então ensine

ao menino a russa, deve ser mais esquisita”. Eis aí.

Houve um sorriso fino no grupo. O Fernando, muito contente, tirou uma longa fumaça do cigarro, andou até ao gradil e olhou a praça em frente e exclamou:

Lá vem o Brandão, o Spinosa...

O príncipe negro, fêz um.

O riso, provocado pela última pilhéria do Fernando, não se interrompera de todo e recrudesceu a aquele epigrama do Sodré. Litichart, que até ali estivera calado, resolveu-se a falar.

Porque vocês não gostam do Tito?

Não, eu gosto muito dele. É inteligente, honesto, respondeu o Fernando.

Com franqueza, acho-o muito orgulhoso, respondeu o Sodré, que lançara o epigrama.

Que tem isso, Sodré? O seu orgulho é a força motriz de sua máquina viva... É a sua arma de defesa contra o mundo que lhe é hostil... É o escudo que o defende... É o impulso que o fará ir para frente e para cima...

Osvaldo dissera aquelas palavras ardentemente, sem refletir, e nelas acentuara tanta paixão, que parecia que se defendia e não ao amigo.

Mas podemos levar a vida pelos meios comuns.

Qual, Sodré, depende de onde se parta, quer se ir e onde se quer chegar.

O orgulho é um pendor egoísta, sentenciou um positivista. O aperfeiçoamento moral tem por fim reprimir os nossos pendores egoístas.

Tito Brandão entrava. Cortejou polidamente a todos, sentou-se e o Fernando ex aperto lhe indagou:

— Como se deve levar a vida, Brandão?

— Como quem quer subir aos céus... A vida é uma escalada de Titã.

15. Mai 2020 14:58 0 Bericht Einbetten Follow einer Story
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